Noblesse oblige
Por Osorio de Vasconcellos | 22/01/2012 | CrônicasResumo: Uma frustração consciente e exemplar ajuda a fortalecer o caráter.
Noblesse oblige
Um rapaz de vinte e cinco anos chamado Antonio escreveu um conto e pediu a opinião de Luca Matéria.
O rapaz é um dos que frequentam a casa de LM e participam dos saraus literários.
- Dou minha opinião, mas quero antes ouvir o que tem a dizer os demais membros deste grupo. Você concorda, Antonio?
- Concordo.
Dito e feito.
A reunião foi interrompida e convocada outra para a semana seguinte. A idéia era que todos pudessem ler o conto de Antonio com calma e opinar com segurança.
Antonio, depois de LM, foi o primeiro a tomar assento à mesa do sarau, na noite aprazada.
Em seguida chegaram Ritinha, Calixto, Leandro, Gaspar e Serafim.
Com exceção de Gaspar, os presentes eram frequentadores assíduos. Gaspar, o mais velho de todos, comparecia pela primeira vez, levado por Leandro, seu sobrinho, e acostado na fama de beletrista, autor de vários livros.
- Serafim, o que achou do conto de Antonio? – perguntou LM.
- Prendeu a minha atenção. Flui com desembaraço e arremata com elegância.
- Você, Calixto, o que nos diz?
- Excelente. Gostei de ver como o autor explora a cena de ciúme do caixeiro-viajante, extraindo dela uma ressonância cômica de rara sutileza.
- Leandro, por favor.
- Não gostei. Me pareceu muito erudito além de longo e démodé.
Antes que lhe perguntassem, Ritinha declarou haver percebido no ciúme do caixeiro-viajante uma derivação mais trágica do que cômica. De todos os modos, via na ambiguidade o mérito maior do conto.
- Senhor Gaspar, agora é a sua vez. Gostaria de dizer o que achou do conto de Antonio?
- Achei-o banal.
- Banal? Certamente nos dirá por quê?
- Por causa do tema.
- Que tema?
- O ciúme, ora essa. Nada mais banal que o ciúme.
Luca Matéria (caramba!) não estava preparado para ouvir tamanha imprudência. Sorriu constrangido e calou, olhando para o teto. Constrangido, nem tanto pelo parecer apresentado, quanto pelo argumento oferecido para justificá-lo.
O tempo passava, o silêncio doía, o sorriso congelara. Instantes perplexos. A sala pedia a mediação do mestre.
- Professor! Professor! – Ritinha sacudiu LM pelo braço.
Refeito, ele prosseguiu.
- Um só reparo ocorre-me fazer ao conto de Antonio. De fato, como observou Leandro, o texto poderia ser mais conciso. De resto, louvo a imaginação do autor, a prévia e minuciosa caracterização dos personagens, o zelo melódico da prosa, a adjetivação aguda e penetrante.
Luca Matéria deu às suas palavras a entonação característica dos discursos conclusivos, insinuando que nada mais tinha a dizer.
Em vão o fez, porquanto Ritinha levantou o braço e foi logo dizendo que não entendera o argumento de Gaspar. Não via como a banalidade do ciúme podia contaminar o conto. Cabia ao professor elucidar a dissensão.
Com efeito, o confronto parecia inevitável. A cortesia devida ao visitante –noblesse oblige - ameaçava sucumbir ao aparte de Ritinha, cuja curiosidade, lúcida e legítima, não podia ser ignorada. O fato de Ritinha estar noiva de Antonio de modo algum enfraquecia a arguição da moça.
A questão era saber se valia a pena deflagrar uma contenda nascida de um pensamento notoriamente truncado.
LM sabia que Gaspar cometera uma gafe imperdoável, tanto do ponto de vista social, quanto intelectual. A gafe social até que podia ser facilmente perdoada, à conta, talvez, de um temperamento rude, ou de uma enxaqueca mal curada. Difícil de contornar, no entanto, representava ser a falha intelectual. Não era admissível que um homem de letras, famoso, autor de diversos livros, não soubesse distinguir o plano das formas literárias – o plano onde se situa o conto de Antonio - do plano da vida mundana – o plano onde viceja o ciúme com toda a sua proverbial vulgaridade. O ciúme aparece no conto de Antonio, assim como, guardadas as devidas proporções, o adultério no Dom Casmurro, isto é, como matéria a serviço de uma intenção criadora.
Se banalidade houvesse no conto de Antonio, estaria ali, na arte de reconstruir a matéria da vida ordinária, nunca na matéria mesma.
Não, não valia a pena.
Enquanto LM chegava a esta conclusão, Antonio pediu licença para se retirar, alegando cansaço. Ritinha o acompanhou. Os demais foram saindo um após o outro, exceto Gaspar, que permaneceu palestrando com o anfitrião até altas horas da madrugada. Noblesse oblige.