No Senado ninguém é santo
Por Osorio de Vasconcellos | 28/09/2009 | CrônicasNo Senado ninguém é santo
Diferentemente do que se costuma dizer, é impossível distorcer os fatos.
Os fatos, como dados históricos, não podem ser distorcidos.
Suscetível de distorção é a linguagem que refere os fatos. Por isso, as distorções não se inscrevem na ordem factual, mas nas categorias voláteis do discurso.
Isso transparece por toda parte, o mais das vezes de boa fé, seja na súmula do juiz, que validou o gol inexistente, seja nas mentiras endêmicas, criadoras de verdades paralelas, que viabilizam o convívio e lubrificam as engrenagens sociais.
Todavia, o descompasso entre os fatos e a sua referência linguística toma aspectos menos isentos, quando viceja na esfera política.
Com efeito, sempre que os fatos denunciam a má qualidade dos serviços públicos, o político, confrontado com o dado histórico, desabonador e irrefutável, refugia-se nos meandros do discurso. Mas não de um discurso qualquer.
De índole formal, esse discurso, esse modo peculiar de significação chamado mito por alguns estudiosos, tem, dentre outras sutilezas, a missão de escamotear o entendimento, à feição da ideologia que espreita.
Eis um exemplo:
─ Prefeito, a cidade está imunda. Lixo por toda parte. O que o senhor tem a dizer?
─ Bem, antes de mais nada devo dizer que esse problema do lixo não é só aqui. São Paulo inunda toda vez que chove, porque os bueiros estão entupidos de lixo. Veja o que aconteceu
Na mesma linha ideológica, no Senado, há poucos dias, a televisão registrou esta conversa:
Repórter – Senador, até o líder da Oposição está envolvido no escândalo das viagens graciosas ao exterior.
Senador (contrito e sorridente)– Bem, aqui ninguém é santo.
Quer dizer, o pecado é original. Todo mundo peca. Pecar é a coisa mais “natural” do mundo. Fazer o quê?
Como ninguém argúi, seja por despreparo, seja por medo, ou conveniência, o mito se agiganta. Sem negar a realidade ─ a realidade é o lixo acumulado nas ruas ou no Senado─ o político trata de escondê-la, transformando a imundície flagrante em flagelo universal, do qual ele próprio se projeta como vítima indefesa, igual a todo mundo.
Mas a natureza do mito não aparece por inteiro na escamoteação da realidade. Sua essência lateja precisamente no caráter impositivo e inapelável da camuflagem. Isso se chama autoritarismo ideológico. O povo não tem como se defender.
Em todo caso, bem que as escolas podiam ensinar a meninada a identificar os focos de proliferação dos mitos.
O professor mostraria os mitos vivos da atualidade, sobre os quais a ideologia investe pesado. O Pressal é um deles, assim como a imunidade incondicional de José Sarney, o condão soteriológico do Bolsa-Família, e a cisão radical entre ricos e pobres.
Ainda que essa consciência não liberte ninguém, pelo menos possibilita o sarcasmo, que, como diz um sábio contemporâneo, é preferível a um ataque de nervos.