No labirinto

Por Ivan Henrique | 18/06/2024 | Contos

                                                                                      No labirinto

      17 de maio: Longe de ser o primeiro dia de trabalho, apenas mais um dia de trabalho. É o primeiro dia aqui nesta instalação que se pretende moderna e é apenas um capricho modernoso ao custo exorbitante estipulado por algum arquiteto da moda. Um arquiteto que queria ser artista, mas não teve coragem suficiente para correr o risco de nadar contra a corrente e achou melhor disfarçar sua covardia em projetos ambiciosos onde o elemento humano pendeu para o lado mais fraco da equação. Justiça seja feita, ao término da construção erigiram uma bela carcaça envidraçada que atrai os olhares dos passantes incautos, que à semelhança dos antigos e inocentes habitantes originais desta terra, que ficavam encantados com pequenas contas coloridas e espelhos rudimentares, hoje ficam mesmerizados com o reluzir da luz refracionada nas paredes brilhantes.

     Logo ao chegar fui tomado de surpresa e confusão ao não encontrar o dito elemento humano na recepção do prédio. Apenas totens e telas de LCD, com sensores que escrutinam as intimidades reveladas pelas írises dos olhos para permitir ou não o acesso às entranhas daquela construção ao mesmo tempo vistosa e insossa. Como a informação de que eu estava previsto para começar minhas funções nesta data já estava no banco de dados do sistema de segurança, o meu acesso foi permitido. Logo duas lâminas de vidro temperado, muito bem temperado por sinal, se abriram e eu me dirigi ao hall dos elevadores.

   Em silêncio e ainda aturdido por tanta novidade quis apertar o botão do elevador. Mas onde estão os botões dos elevadores? Apenas três pequenas escotilhas, ou janelas, melhor seria dizer três círculos em alturas diferentes que lançavam raios discretos em busca da íris do olho do feliz acolhido nas entranhas daquele palácio da modernidade. Uma vez que os olhares se cruzavam com os dados biométricos previamente catalogados nos sensores, as portas dos elevadores se abriam e acolhiam o afortunado visitante com uma música sob medida e uma iluminação customizada, tudo de forma a tornar a experiência do consumidor a mais agradável possível entre o piso térreo do edifício e o andar de destino. A música me fez lembrar minha visita ao dentista na infância, onde a mesma música que tocava no elevador tocava na recepção do dentista, a mesma sonoridade indistinguível em arranjos padronizados criados por um compositor desiludido que um dia sonhou com sinfonias e acordou batendo ponto num estúdio de gravação de jingles de publicidade. Hoje a trilha sonora é feita por Inteligência Artificial S.A. Ai, o gosto médio...ou o desgosto médio.

       Desci no andar correto e percebi que o corredor não era reto, mas sinuoso e imerso em penumbra. Uma iluminação embutida mantinha uma tonalidade tida como sofisticada, mas para meus olhos era um tanto lúgubre, mais parecia que eu havia chegado numa instalação onde casais mais modernos e de mente aberta costumavam se reunir para realizar fantasias sexuais elaboradas. Será que me deram o endereço errado? Eu supostamente deveria começar a trabalhar aqui, ou recomeçar, já que eu estava afastado deste mundo laboral corporativo há um par de anos, e quem sabe muita coisa havia mudado e eu não me dera conta. Fiquei desnorteado novamente, um tanto acabrunhado e me achando um provinciano, como o pobre homem em sua primeira ida ao metrô que ao se deparar com a composição chegando na estação saiu correndo desesperado, acenando com a mão para que o condutor parasse, sem saber que a composição pararia obrigatoriamente em cada estação. Eu, um indivíduo urbano calejado e instruído, me vi na figura daquele homem simplório que era motivo de risos anos atrás, anos que já nem sei dizer quantos.

   O moderno edifício, citado pela imprensa especializada como uma ruptura nos padrões e um novo modelo a ser seguido, ao ser olhado da rua tinha alguns ângulos diferentes, e torções na forma, mas ainda mantinha uma certa linearidade, só que eu daqui deste ponto onde estou tenho a impressão de que o andar sobe e desce, e me vem na cabeça uma gravura de M.Escher com suas escadas que parecem subir quando estão descendo, e descer quanto estão subindo. Também não distingo portas, só uma parede contínua em tons escuros, cuja superfície se assemelha a mármore preto. Ou granito, sei lá, talvez algum material sintético novo desconhecido para mim.

   Então de repente meu telefone vibra em meu bolso. É o diretor do escritório onde devo começar hoje:

-Sid, onde você está? Já está a caminho?

-Olá Winston, eu já estou aqui no andar que me foi informado, mas eu não estou localizando a sala.

-Certo, eu vou mandar um comando para te direcionar. Aguarde só um momento.

    E nisso, depois de poucos segundos, eu vejo uma seta de luz que percorre o alto da parede apontando para frente. Fico mais aliviado e sigo a seta. Agora um pouco mais familiarizado com a iluminação eu percebo que o andar é muito amplo e não linear. Desço uma leve inclinação e logo depois eu vejo uma moldura de luzes de LED pulsando para indicar a entrada da sala. Finalmente.

   Sou recebido por uma jovem de cabelos verdes, com uma franja roxa, diversos piercings nas narinas e bochechas, uma maquiagem insólita e uma vestimenta indecifrável. Se apresenta como Hanna e me encaminha para uma estação de trabalho multicolorida e repleta de adereços. Esta será a minha estação de trabalho a partir de hoje. Até quando?....

   Há uma tela e um tablet com uma senha já digitada e ao me sentar na cadeira reclinável a conexão se estabelece. Vejo então a imagem de Winston na tela que me dá as boas-vindas. Com um discurso muito breve e repleto de instruções ele logo me instiga a iniciar a aclimatação neste ambiente de aparência lúdica.

   A sala é bem ampla e conto cerca de vinte pessoas trabalhando. De fato, eu vejo algumas bastante absortas, vidradas e de olhar fixo nas telas, porém a maioria estava conversando animadamente e algumas jogavam pingue-pongue, enquanto três meninas dançavam com fones de ouvido. Achei curioso e desconcertante ao mesmo tempo. Será que fiquei longe por muito tempo deste ambiente? Desta nova forma de se trabalhar e produzir riqueza? Evito ao máximo ser saudosista, pois o passado está no passado e só o presente existe de fato, mas não escapa de meu pensamento a comparação com o meu início de vida adulta e toda a rigidez que os modelos e a moral estreita impunham na época e esta nova versão do mundo do trabalho.

   Apesar do lapso de tempo entre meu último período de trabalho diário com horários rígidos e meu afastamento, eu procurei me manter atualizado com as novas tecnologias eas recentes tendências que regem o mundo laboral, e para isso mantive contato com antigos colegas e com a literatura afeita ao assunto. Diria que sou como um mamute que fez um regime severo e ficou leve o bastante para fugir do bando de caçadores ávidos pela sua carne. Chegou o momento de confirmar a eficácia deste regime.

    A manhã vai escorrendo em silêncio e os sons externos não atravessam as paredes revestidas de isolantes térmicos e acústicos. O mundo ao redor não alcança este mundo asséptico e protegido. Olho com atenção para as planilhas e relatórios que brotam como erva daninha na tela imaculada na minha frente. É meu primeiro dia e quero causar boa impressão, provar que posso dar conta do que me chega para ser resolvido. Decerto que a experiência conta. Espero que conte. Será que conta?

    Após algumas horas me vem a necessidade de ir ao banheiro. Olho para a estação de trabalho do meu lado e vejo um rapaz de cabelos compridos, barba estilosa e fones seriamente aferrados nas orelhas. Este parecia estar bem focado no trabalho e olho com curiosidade para o que ele estava fazendo. Parecia estar jogando um vídeo game muito elaborado. Queria lhe perguntar onde era o banheiro, mas ele parecia estar em outra dimensão, de tão mergulhado no festival de imagens. Não tive coragem de interromper. Virei para o outro lado e outro jovem coberto de tatuagens pelos braços e rosto, óculos escuros e uma vestimenta que eu jamais teria coragem de usar mexia com sofreguidão no celular. A lente bastante densa dos óculos não me deixava divisar seus olhos, e este fato impunha uma barreira formidável à comunicação. Olhei então no tablet que estava usando e pesquisei para saber se havia algum esquema, algum mapa ou planta do local. Não achei nada semelhante. Lembrei então de Hanna, a garota que me havia recepcionado na chegada e fui atrás dela.

   Ela estava jogando pingue-pongue com outra menina, numa disputa bastante acirrada. Acompanhei muitos pontos até um momento de pausa onde foi possível fazer tão premente indagação:

- Hanna, por favor onde é o banheiro?

-Ah, você precisa perguntar ao totem no final da sala.

-E onde é o final da sala?

-Vire à sua direita após a porta do salão de jogos e siga em frente.

    Dito isto ela correu de volta para seu jogo emocionante e me deixou a sós novamente. E lá fui eu na busca pelo totem que tinha todas as respostas. Neste momento o escritório estava mais vazio, creio que as pessoas já tenham saído para o almoço. Sigo andando e me dou conta do tamanho desta instalação. Talvez eu não tenha observado com a devida atenção o edifício, porém ele parece menor olhando de fora. Este andar é mais extenso do que aparenta ser.          Finalmente vejo o tal totem. A geringonça foi pensada para interagir com seres humanos e para tanto tem um desenho arrojado, elegante e instigante, pelo menos é o que diz o idealizador do projeto. Com cerca de dois metros de altura e um metro e vinte centímetros de largura, cores e padronagem da textura que muda em pequenos intervalos de tempo, antropomórfico, com uma suposta cabeça onde os olhos estilizados são os sensores de presença e detecção biométrica, a região da boca é o sistema de som que verbaliza as informações e a narina emite um aroma que é trocado a cada duas horas, para criar um ambiente agradável ao redor. Não sei se por conta da premência em utilizar o banheiro, por ser o primeiro dia num ambiente diferente e ainda desconhecido, pela falta de referências mais firmes no prédio, só sei que o tal totem me lembrou mais uma estátua no portal de algum antigo templo, daquelas que guardavam o sono eterno de alguma potestade, com um olhar severo onde acima do pórtico está sempre escrita alguma advertência, algum alerta dirigido ao ingênuo visitante do tipo “todo aquele visitante incauto que ultrapassar este limite sofrerá o castigo eterno do deus...qualquer deus, sei lá”

     Mesmo antes de chegar à menos de dois metros do aparelho, ouço uma saudação:

“-Seja bem-vindo ao seu primeiro dia de colaboração nesta grande empresa Sid, em que posso lhe ajudar?”. Sou pego de surpresa e instintivamente agradeço à recepção, mesmo se tratando de um dispositivo tecnológico artificial. A educação que recebi nunca me abandonou, muito embora haja momentos em que ela deveria ser colocada em segundo plano.

- Ahh, muito obrigado. Preciso saber onde fica o banheiro?

“-Dê quatro passos para sua direita, fique em posição de sentido para ser feito o escaneamento de seu corpo, e em caso de confirmação uma esteira rolante será acionada para transportá-lo até o local desejado. A porta do banheiro se abrirá e você terá quinze minutos de uso”.

   Fiquei intrigado com tamanho detalhamento, ainda mais com a exata quantidade de tempo.

- Eu fiquei um pouco curioso, se por acaso eu permanecer mais do que quinze minutos  o que acontece?

“-Um sinal sonoro será acionado em sua estação de trabalho para indicar atraso no retorno, a porta do banheiro será lacrada até que um supervisor possa chegar ao local para liberar”.

-Uau, bem estressante, não é mesmo?

“-Este procedimento foi estabelecido após uma pesquisa onde foi constatado que um tempo superior aos quinze minutos gastos no banheiro são contraproducentes”.

- Seria embaraçoso para quem for pego nesta situação... “

-...Além da penalidade monetária a ser cobrada no próximo contracheque. É meu dever alertar”.

-Certo, obrigado por me avisar. Ainda não sei todos os procedimentos a serem utilizados aqui.

“-Você recebeu a atualização quando foi logado ao sistema hoje às 09:47 hs. Já deveria estar ciente”.

    Senti um tom autoritário na voz sintética deste equipamento. Será que isto sabe que a quantidade de informação que está incluída nas diretrizes de qualquer sistema é muito grande para que um mero ser humano consiga assimilar de imediato?

- Sim, eu cheguei hoje de manhã, mas ainda estou me adaptando. É muita coisa nova para aprender.

“-Espero que sua capacidade de assimilação esteja em pleno funcionamento, senão você terá problemas aqui”.

     Agora, definitivamente, percebi um tom ameaçador e debochado nesta fala. Meu batimento cardíaco aumentou e subiu até a língua um impulso de responder e de esmurrar esta geringonça.

“- Se acalme e aproveite sua ida ao banheiro”, disse a geringonça num tom levemente irônico.

    É, eu estive fora por um bom tempo. A evolução da tecnologia já chegou ao ponto de um dispositivo detectar seus batimentos cardíacos e seu humor mesmo que você não esteja ligado diretamente nele. Acho que meus olhos me traíram. Achei por bem seguir as orientações iniciais e me coloquei na posição indicada. Logo o chão começa a se mover e a tal esteira me carrega até uma porta que se abre automaticamente. Entro no recinto e vejo os componentes usuais de um banheiro: pias, torneiras, sabão, cabines. Mas não enxerguei mictórios, assim como não vi sinalização com a separação de gêneros. Teria havido algum engano? Teria eu entrado no banheiro feminino? Fiquei um tanto desconfortável. E se alguma colega saísse de repente de alguma cabine e se deparasse comigo? Seria bastante desagradável. Mas a vontade apertava cada vez mais. Puxei a porta da primeira cabine que vi e entrei. Não havia vaso sanitário nem papel ou toalha que seja. De repente um som baixo de funcionamento de engrenagens enche o ambiente e do chão se levanta o vaso sanitário. Branco, limpo, imaculado. Fiz o que precisava e quando estava de saída uma voz robótica saindo de dentro do vaso me avisa para colocar as mãos acima do vaso para a lavagem. Jatos de água morna e sabão enxarcam minhas mãos, e depois jatos de ar quente as secam. Assepsia total. Confesso que fiquei encantado. E ao mesmo tempo pensei que ainda posso fazer tudo isto por mim mesmo, sem precisar de tanta modernidade. 

    Saí da cabine e reparei melhor nas instalações. Tudo muito limpo e aromatizado, com uma iluminação neutra. Uma pessoa poderia dormir naquele local tranquilamente, basta esticar um colchonete no chão. Temperatura controlada, silêncio, quase um local de contemplação e meditação. Acho que me esqueci do tempo e do mundo lá fora, dos banheiros em botequins de quinta categoria, em postos de abastecimento cujas portas enferrujadas nem fecham direito, em oficinas mecânicas de periferia cuja descarga é uma frágil cordinha, banheiros públicos onde as portas são tingidas com o produto final de um processo digestivo conturbado. Ou mesmo dos becos escondidos que funcionam como mictórios ao ar livre. O mundo concreto é duro e áspero, duro e áspero como o concreto teima em ser.

   Cá estou eu perdido em divagações, este vício irreparável. Não há mais ninguém neste banheiro e agora estou aliviado. O silêncio me deixa num estado de leveza, quase um desligamento. Estive fora deste ambiente corporativo-competitivo por um bom período de tempo e fiquei fora de forma. De repente me lembro do alerta proferido pelo totem semi-humano. Quinze minutos! Volto para a porta e aguardo a esteira rolante que me leve de volta à sala onde agora trabalho. Nada de esteira. Eu olho ao redor para ver se há algum botão, algum interfone, ou coisa semelhante. Esqueci o celular na estação de trabalho também. Movo os braços para ver se há, quem sabe, algum sensor de presença. Cerca de dois minutos escorrem nesta busca desenfreada. Estou num corredor e nenhuma porta está delineada. Começo a ficar nervoso.

    De repente uma sequência de luzes começa a piscar indicando uma porta. Corro até ela e a empurro. Saí para um outro corredor, talvez paralelo. Saio andando tentando me localizar, mas é o meu primeiro dia neste prédio ultramoderno cujo projeto parece embutir uma certa quantidade de aleatoriedade, de surpresas inesperadas e de confusão. A mente trabalha de forma surpreendente e por ínfimos segundos eu me lembro de um prédio muito antigo, bem no início de minha vida laboral, daqueles com elevadores de grades e ascensoristas velhos, empoeirados e acinzentados, que giravam a manivela para fechar as portas gradeadas e iniciar a escalada de seus veículos até os andares mais elevados. No percurso não havia aquela sensação de confinamento porque as portas e paredes eram gradeadas e a visibilidade era total, não precisava de ar-condicionado, o ar era o ar de todos, aquele que vinha da rua. Hoje esse prédio é chamado de “vintage”, retrô, ou termo que o valha. Porém a maior parte deles está mal-cuidada, degradada e serve de esconderijo para atividades ilícitas. Os ascensoristas já estão em outro plano de existência.

    Os ínfimos segundos passaram e me encontro num corredor diferente, com outra coloração, outra iluminação, um revestimento com padronagem diferente daquela que eu vi antes de chegar no local de trabalho. Mas nada de portas aparentes, janelas, telas, pinturas decorativas, um singelo vaso de plantas artificiais, nada! E ninguém, ninguém aparece, ninguém sai de uma sala para que eu possa perguntar onde estou, ou mesmo se ainda estou no mesmo prédio, porque eu fiquei em dúvida se eu deixei de perceber se havia outro prédio acoplado a este e por engano eu acabei saindo em outro prédio gêmeo. Então lembrei do totem. Será que cada corredor tem um totem “simpático” como aquele que me deu esta direção? Decidi andar até o final deste corredor. Creio já ter passado os quinze minutos para uso do banheiro e a esta altura minha estação de trabalho deve estar apitando desenfreadamente. Cheguei ao final do corredor e não há sinal de totem. Mas há uma tela com uma figura humana pintada, um retrato. Chego bem perto, mas não é um quadro pintado, na verdade é uma tela de cristal líquido com uma imagem de uma mulher belíssima e em alta definição, mais real do que se estivesse na minha frente em carne e osso. Para minha surpresa ela detecta minha presença e se dirige a mim:

“-Bom dia, em que posso ajudar?”

-Bom dia, eu creio estar perdido e preciso voltar para minha sala, mas não estou conseguindo porque é meu primeiro dia neste prédio.

“-Não consegui identificá-lo. Em qual empresa trabalha?”

-A empresa se chama RábitiRôll

“-Sinto muito, mas não consta este nome na relação de empresas com salas neste prédio”.

 -Desculpe, mas acho que há algum engano. Eu comecei hoje de manhã e fui admitido no prédio porque já havia um cadastro prévio com meus dados. De outra forma eu não conseguiria entrar.

“-Este edifício tem algumas características bastante peculiares, quem sabe você acessou alguma conexão errada?”

- É bem possível. Eu saí para ir ao banheiro e não consigo voltar para meu local de trabalho. Já estou atrasado.

“-Neste caso você deve fazer o seguinte: mova seu corpo treze passos para a esquerda, fique em posição de sentido, mas relaxado, feche os olhos e respire fundo. Uma esteira rolante irá arrastá-lo até a saída de emergência. Após transpor a saída procure a próxima assistente virtual e informe novamente o que acabou de me informar. Espero que desta forma você consiga retornar ao seu local de trabalho”.

   Dito e feito, em segundos eu senti o arrasto leve da esteira. Só não entendi o porquê de ficar de olhos fechados, mas desde que aquele procedimento me levasse de volta onde precisava estar, tudo bem. Passei na saída de emergência e o corredor mudou novamente. Desta vez a decoração fazia uso de cores mais vibrantes e a iluminação era mais clara e brilhante. Além disso havia uma música de fundo sendo tocada numa escala pentatônica, uma melodia monocórdica de contornos orientais. Um som de tambor grave marcava o ritmo compassadamente.

   O corredor, para variar,não era reto. Muito pelo contrário parecia ser mais sinuoso do que os anteriores. Não sabia se eu havia subido ou descido de andar, creio que eu estava ficando com um sério problema de desorientação. Eu havia perdido o hábito de usar relógio de pulso, só consultava a hora olhando o celular que por sinal havia ficado na estação de trabalho, portanto eu não tinha a mínima noção do horário. Tinha certeza de que os quinze fatídicos minutos já haviam passado, mas não sabia quanto mais havia passado. Que mancada! Primeiro dia de trabalho num lugar novo e já acontece isso! Acho que o mamute não perdeu tanto peso assim e os joelhos cobram um preço mais alto do que devia. Nem sei se precisava voltar à atividade assim. Minha vida estava tranquila e bem equacionada. Parece que caí numa cilada. Não consigo realizar a simples tarefa de ir ao banheiro e voltar para dar sequência no relatório que havia começado. É bem possível que algum dos jovens colegas deve estar pensando o que este dinossauro estará aprontando, o que este aposentado ultrapassado está fazendo aqui no meio desta rapaziada, que em grande parte ainda era criança quando ele parou? Até o diretor tem idade para ser um sobrinho temporão. Embora seja mais certo imaginar que nenhum deles deu pela minha falta.

   O tambor soturno marca um ritmo que mais parece a condução ritual de um escolhido para o sacrifício que apaziguará a ira dos deuses. A melodia repetitiva parece induzir o transe de quem ouve. As cores brilhantes da decoração das paredes fazem um contraste grande com o som ambiente e isso contribui para o crescente sentimento de desorientação experimentado. Finalmente observo outra tela semelhante à tela anterior e me adianto ansioso por respostas. Desta vez a imagem mostrada na tela é de um homem idoso e sério, talvez na intenção de transparecer solidez e segurança para o usuário desesperado e perdido neste ambiente confuso.

“-O que deseja?”, disse secamente a figura virtual.

- Eu gostaria de voltar ao meu local de trabalho. Eu saí para ir ao banheiro e agora não consigo achar o caminho de volta. Eu iniciei hoje na empresa RábitiRoll e ainda não conheço o edifício.

“-O que você quer que eu faça! Eu nunca ouvi falar desta empresa! Seu rosto não está nos meus registros! Acho que você é um intruso nesta área do prédio, vou acionar a segurança!”

- Calma! Deve haver algum engano. Se eu entrei no edifício é porque eu tinha permissão, não é?

“- Ah, é. Tem razão. É que faz muito tempo que eu não passo por uma atualização. Estão dando preferência pelos equipamentos mais novos e a minha capacidade de armazenamento está chegando no limite”.

- Mas então, como posso fazer para achar o caminho certo?

A imagem dentro da tela fica em silêncio por longos segundos, com as sobrancelhas contraídas, num sinal visível de grande esforço ao pensar. Ele abre os olhos com uma imagem de cansaço e fala lentamente, com uma voz embargada:

“-Olha, sinto muito, mas eu não sei. É possível que eu possa abrir esta porta que está ao meu lado e que do outro lado haja uma janela onde você pode quebrar e pular, mas eu não tenho certeza. De qualquer maneira é melhor do que você ficar parado aqui porque minha programação me obriga a chamar a segurança e você será colocado para fora do prédio, seu acesso será bloqueado por tempo indeterminado e você será processado por invasão. Minhas sub-rotinas mais antigas ainda me permitem algumas linhas de compaixão no trato com o usuário, mas mesmo esta área de memória está quase se apagando e, portanto, você tem apenas vinte segundos para decidir se quer tentar esta opção”.

- Então eu não tenho opção, por favor tente abrir a porta.

“-Positivo, vou tentar. Boa sorte e me desculpe se não consegui resolver seu problema. Ao final de nossa conversa chegará uma mensagem com a avaliação de meu desempenho. Eu peço que responda à pesquisa de avaliação. Obrigado”.

   Um ruído seguido por um piscar intermitente de pequenas lâmpadas me indica que o equipamento velho e cansado conseguiu abrir a porta. Ainda tenho tempo de olhar pela última vez para o rosto que vai enrugando e perdendo o pouco viço que lhe resta até embranquecer totalmente, dar um suspiro longo e sentido e apagar. Só restou uma tela negra. Passei pela porta sem pestanejar, porque é bem possível que o sinal de pane alertará a segurança deste edifício, que chegará em minutos. O senhor-tela tinha razão, há uma janela deste lado. Ela dá para um espaço interno, um vão entre as paredes deste prédio estranho. Eu reparo que há degraus de uma escada de emergência para incêndios ligando os andares. Forço a janela para saber se é possível de ser aberta. Ela se abre após alguma pressão e eu me debruço para avaliar a situação. Transponho a janela e seguro com firmeza no corrimão da escada exterior até alcançar o andar inferior. Por sorte a janela do andar inferior também está destravada e me esgueiro para dentro do andar. Fico no meio entre duas portas, que são bastante distinguíveis pelo lado de dentro. Só me resta decidir para qual lado ir. Como eu vim do lado direito, achei melhor escolher o lado esquerdo para ver se haveria alguma mudança na disposição deste edifício, e desta forma eu possa acessar alguma estrutura com mais lógica.

    A porta ao meu lado esquerdo está aberta. Bastou um leve empurrão para que ela se movesse. Mas a cautela grita em meus ouvidos porque a segurança do edifício já deve ter sido acionada. O corredor está bastante escuro, mesmo para olhos envoltos em penumbra. Meu estado de tensão só aumenta, porque uma simples ida ao banheiro está se tornando um desafio e uma aventura com final imprevisível. Meto a cabeça para fora e não percebo nenhum som, somente o sopro do ar-condicionado que sai levemente pelas aletas. O corredor está muito escuro, sigo tateando a parede com o máximo de cuidado pois eu posso acionar algum sensor, algum alarme inadvertidamente. Já deixei pistas demais. Reparo um fino friso de neon com uma sequência binária que vai passando como se fosse um painel de anúncios. A velocidade me impede de tentar decifrar qualquer mensagem que seja, mas pelo menos se tornou um ponto de referência neste breu. Não me resta outra alternativa a não ser seguir em frente. O corredor parece se inclinar para baixo e o piso é macio e as paredes são suaves ao toque. Faço o mais absoluto silêncio apesar de estar com os nervos crispados, e o meu raciocínio está turvado porque este ambiente é completamente surreal. Quem terá imaginado e projetado tamanho labirinto? Um investimento milionário que parece ser o cenário de um filme de suspense. Onde foi parar a racionalidade?

    Uma tela que ocupa toda a extensão vertical da parede de repente é ligada. Tomo um susto tremendo e meu coração dispara com o susto. Meus exames estão em dia e minha saúde também, senão teria um infarto aqui mesmo. Por um segundo eu pensei que tivesse sido descoberto e me dariam voz de prisão, mesmo que fosse uma voz de prisão virtual, mas não, era apenas uma sequência de publicidades enaltecendo a construtora responsável pela concepção e conclusão da construção deste portento arquitetônico. Poderia até ser uma bela peça publicitária, mas eu só tive a capacidade de xingar até a penúltima geração do infeliz que concebeu esta aberração.

   A luminosidade da tela me permitiu observar que no final deste corredor havia um totem semelhante ao primeiro totem que eu me deparei. Mais uma migalha de referência. Dei passos acelerados em direção ao totem, mas um alerta brotou em minha mente: e se eu me identificar e já estiver sendo procurado? Este pensamento me fez hesitar e estacar num impasse. E agora, fico parado aqui para sempre? Neste instante uma porta se abre e percebo outro banheiro. Ou o mesmo banheiro? Já não sei. Entrei no banheiro e o totem permaneceu desligado ou inativo, o fato é que ele não me detectou. Já dentro do banheiro reparei que o revestimento era diferente do primeiro. Movi a mão para ver se acionava algum sensor que talvez pudesse acionar a tal esteira automática. E não é que funcionou! Não da mesma forma. Do chão surgiu uma plataforma abaixo de meus pés que gerou uma cortina de luz que me cercou e a plataforma começou a descer, imagino que para o andar de baixo. Em questão de segundos eu fui transportado para outro piso, mas não para outro banheiro, disso eu tenho certeza. Tive um choque porque este ambiente era completamente branco, com uma luz intensa. Demorei um pouco para me localizar, mas vi que agora estava num salão amplo e vazio, com reentrâncias nas paredes. Estava completamente exposto. Certamente havia uma quantidade de câmeras embutidas que inspecionavam o lugar e que me espionariam e me entregariam para o setor de segurança do edifício. Era só uma questão de tempo. Este pensamento me trouxe um certo alívio, porque eu seria localizado e entraria em contato com algum ser humano de carne e osso a quem eu poderia me explicar. Não havia feito nada de errado, apenas havia me perdido no emaranhado de ambientes pós-modernos concebidos por algum arquiteto enlouquecido, e agora eu é que gostaria de ser interpelado pela segurança para saber o que estava de fato acontecendo e o que era aquele edifício?

    Me agachei para respirar com mais calma e esperar o contato. Só que nada aconteceu, o tempo passava e nada acontecia. Meu olhar já se adaptara melhor àquela luminosidade e comecei a ver que nas reentrâncias da parede havia pequenas estátuas à semelhança de estátuas do período sumério, estátuas com referências de mais de cinco mil anos. Além das estátuas as paredes eram preenchidas com uma escrita hieroglífica, cheia de sinais estranhos e imagens híbridas de humanos e animais. Os sinais da escrita cintilavam em sequências constantes, como agora pude reparar. Quem sabe era algum código secreto? Mas no estado mental em que me encontro eu jamais teria condições, além de não ter nenhum conhecimento em criptografia, de decifrar o que aquela parede estava querendo dizer.

    A luminosidade da sala não era estática como imaginei. Na verdade, a coloração mudava de um branco intenso luminoso para um branco mais cálido, depois para um tom bem discreto de amarelo passando para um tom de verde bem suave e calmo. Esta combinação de cores acabou por me acalmar e aguçar minha mente, pois eu comecei a perceber alguns sinais embutidos naquela miríade de hieróglifos. Descobri por fim que aqueles sinais eram uma senha para alcançar a saída desta sala. Havia uma porta embutida que poderia ser aberta após determinada sequência de sinais. Só era preciso desfocar o olhar, o que me ocorreu num momento de bocejo, para ler claramente que estava escrito: “Para sair apenas peça por favor”. Dito e feito de novo, eu fiquei parado em frente a porta e falei em voz baixa: “por favor”. A porta se abriu suavemente, me revelando um corredor estreito com um piso macio e luzes indiretas azuis. Ao final deste corredor outro banheiro. De novo a mesma história.

   No saguão deste banheiro havia outra tela, com a imagem de uma criança, na verdade um menino aparentando uns sete anos de idade. A imagem estava estática, mas ao chegar bem próximo da tela a imagem descongelava e abria um sorriso amistoso. Agora eu já estava familiarizado com esse sistema de comunicação.

“-Olá tio, o senhor gostaria de brincar comigo?”.

Confesso que não esperava esse tipo de pergunta. Porém se tratava de uma criança na tela, deveria ser diferente?

-Olá, siiim. Qual brincadeira você gostaria de brincar?

“-Eu gosto de esconde-esconde, o senhor gosta?”

-Sim, eu gostava de brincar quando era bem pequeno.

“-Então eu começo. Você fecha os olhos e conta até vinte”

-Tá certo, vou fechar os olhos e contar.

     Apesar de me achar um pouco ridículo eu fiz o combinado. Fechei os olhos e contei até vinte. Quando abri os olhos a tela estava apagada, completamente escura. Fiquei um pouco atordoado e sem entender o que estava acontecendo. Depois eu pensei:” ora, claro! O menino pediu para brincar de esconde-esconde. Ele correu para se esconder, agora tenho que achá-lo. Esta é a regra da brincadeira. Então, acho que terei de buscar uma nova tela.”

    Entrei no banheiro e vasculhei as cabines e as paredes em busca de outra tela. Não havia nenhuma. Então, notei que havia uma pia comprida e uma imagem holográfica começava a se formar. Reconheci o tal menino da tela anterior, só que agora ele aparentava ter uns dez anos e estava com o cabelo mais comprido:

“Ah, achei você!”

“-Não achou nada, você só me achará quando conseguir sair deste banheiro, hahahahahah...”

    E a imagem holográfica sumiu de repente. Logo depois eu notei que uma das cabines estava com a porta aberta. Por instinto eu entrei e a parede começou a piscar uma fileira de luzes de LED, o sinal de abertura das portas nesta construção maldita. A porta se abriu e eu me atirei novamente rumo ao desconhecido. Adentrei outra sala circular com uma abóboda com pinturas de figuras humanas e híbridas com animais que se dirigiam para o topo, onde havia uma simulação de céu, e mostrava um brilho intenso da constelação de dezenas de estrelas. Por um momento eu achei ter chegado ao terraço do edifício, mas não, era apenas um céu simulado. A abóboda se apagou e toda a sala ficou escura, com uma projeção de imagens que aparentava ser a reentrada de alguma nave espacial na atmosfera de algum planeta exótico. Então eu reparei que o piloto desta suposta nave era o menino que havia me recepcionado com o pedido da brincadeira de esconde-esconde. Só que agora ele tem uma aparência de adolescente, com cabelos cacheados mais longos e um olhar mais perverso. A rotação da imagem me põe frente a frente com o garoto. Este me reconhece e fala de modo zombeteiro:

“Você não desiste mesmo, hein? Acha que tem saúde para me acompanhar na brincadeira? Você está velho, hahahahhahahahah”

-Não desisto até que você me diga como posso voltar para minha sala, moleque malcriado!

    Falei num tom de voz bem ríspido e com a cara fechada, já ficando farto destas charadas. O menino se assustou com a resposta e soltou o leme de direção da nave. O veículo começou a rodopiar desgovernado e a expressão de pavor intenso se apossou de sua face. Ele começou a chorar desesperado e me olhou. O olhar transparecia o pedido de ajuda.

“-Tio, me ajuda, me ajuda!”

    Uma luz começou a pulsar embaixo dos meus pés, e isto chamou minha atenção de pronto.

“-Tio, pisa na luz, pisa na luz, por favor!!”

   Sem pensar duas vezes eu pisei firme na luz vermelha. A imagem da nave começou a estabilizar. Pisei mais duas vezes e a nave se desgovernou novamente. Pisei por três vez e a nave corrigiu o rumo. Experimentei pisar quatro vezes e a nave virou de ponta cabeça. Pisei cinco vezes e ela se aprumou. Esperei para ver o que acontecia. Ela estava planando, mas em alta velocidade. Pisei uma vez, bem de leve e a nave sossegou. Ela estava sob meu controle agora.

-Me diga menino, como eu faço para sair daqui?

   Com a nave estabilizada o menino recuperou o autocontrole e voltou a se portar de forma arrogante:

“-Não vou dizer!”

Ele queria se fazer de difícil. Então eu pisei com força duas vezes. A nave arremeteu com violência e o menino ficou lívido e sem voz. Comecei a gostar da brincadeira e pisei várias vezes na luz que controlava a simulação de nave espacial; a nave começou a rodopiar em alta velocidade e o menino começou a gritar desesperado:

“- Tio, pára por favor, pára por favor!! Eu não vou aguentar!”

-Então me diga como faço para sair deste labirinto.

“_Eu não sei! Eu sou um aplicativo ainda muito novo e em desenvolvimento, eu não sei muitas coisas! Ainda estou aprendendo como funciona este edifício, eu não sei onde estou e nem como sair daqui!”

-Eu não acredito em você.

“-Mas eu estou dizendo a verdade! Eu juro!”

-Então você não me serve para nada.

    Comecei a sapatear em cima da luz e a simulação de nave começou a girar numa velocidade estonteante até virar um ponto de luz em queda livre na atmosfera do planeta virtual. Um brilho mais forte indicava a destruição da nave. E com isso toda a sala se apagou e eu voltei a ficar a sós no escuro completo.

   Estava cansado desta brincadeira de mal gosto. Sentei-me no chão desconsolado, irritado, esfomeado, sedento, já se passaram horas e eu andava em círculos, estava parecendo uma alucinação ou um sonho. Comecei a duvidar se eu estava acordado ou sonhando. Procurei respirar fundo e recuperar o pulso e com isso tentar organizar o raciocínio. Comecei a analisar cada passo que havia dado desde que saíra da sala. Mas não havia lógica nenhuma.

   O que aconteceria se já tivessem dado pela minha falta? Com certeza os quinze minutos de pausa para o banheiro haviam passado e muito, e o tal aviso sonoro já havia soado em minha estação de trabalho. Mandariam uma equipe me procurar? O totem havia me dito que após os quinze minutos um supervisor ficaria responsável pela liberação da porta do banheiro. De fato, isso configura cárcere privado, onde já se viu manter alguém trancado num banheiro? Minha irritação aumentava com esta constatação. Que legislação é essa para permitir este abuso? Será que eu perdi alguma coisa? Procurei me manter atualizado, mas será que votaram alguma lei que permita esse abuso e eu não fiquei sabendo? Neste mundo pós-moderno, pós-tecnológico, pós-verdade, pós-falta de vergonha, parece que tudo pode.

   Fiquei tão irritado e soquei o chão com tanta força que do piso se ergueu uma plataforma com alguns botões de comando. Coisas bizarras acontecem por aqui e eu já estou me acostumando. A plataforma se acendeu e as luzes começaram a piscar, cada botão tinha uma luz de cor diferente, mas nada escrito. Outra loteria, ou seja, teria que apertar o botão para saber o que poderia acontecer. Eram três botões então eu comecei pelo do meio. Apertei e a sala se acendeu. Onde antes havia a abóboda agora mostrava a planta do edifício. Mas nada daquilo me dizia alguma coisa porque se eu não sei onde estou, como poderei me localizar? Então apertei o botão da direita: Da planta geral saltou a imagem da planta do andar onde estava, isto estava indicado claramente. Comecei a correr os olhos para tentar entender alguma coisa. Vi que havia uma linha vertical em determinado ponto e a partir deste ponto a cada quatro metros havia uma porta embutida. Na planta havia a indicação da linha vertical, mas como localizá-la? Sem querer eu verbalizei este pensamento e a linha vertical se acendeu na parede! Ora, alguma coisa começava a fazer sentido enfim.

  Fui em direção à linha e contei alguns passos para marcar os quatro metros de distância. Falei em voz alta: “Onde está a porta?” E a porta foi delineada. Falei novamente: “Onde está a maçaneta da porta?” E um comando virtual da maçaneta apareceu na porta. Comecei a ficar animado com aquela mudança da situação. Falei em voz alta novamente: “O que há do lado de fora desta porta?” E a imagem de uma câmera de segurança apareceu e me mostrou que do lado de fora desta porta havia um pequeno corredor que dava para uma sacada no quadragésimo oitavo andar do edifício. E dali para o vazio, uma queda livre de cento e oitenta metros até o chão. Eu não tinha a mínima ideia de que estava num quadragésimo oitavo andar de um edifício. Não aparentava ter esta altura toda se visto da rua. Criaram alguma ilusão de ótica? Quem sabe para burlar a legislação municipal e conseguir a licença para construção, ou quem sabe, numa explicação mais plausível, simplesmente compraram o voto na câmara municipal para alteração da lei de zoneamento. O dinheiro seduz com muita competência.

   Bom, de volta à minha pequena questão eu decidi apertar o botão que estava à esquerda. De repente surge uma outra imagem holográfica, que revelava uma mulher de meia idade, com um sorriso discreto. Eu fiquei estático por alguns momentos, em dúvida se deveria prosseguir com a inquirição que já havia me provocado tanto desgaste. Por fim tomei coragem e perguntei:

- Olá, você pode me dar informações?

“-Olá, seja bem-vindo. Sim, o que deseja saber?”

-Primeiro eu gostaria de saber o que acontece com este edifício? Eu cheguei hoje de manhã para trabalhar na empresa RábbitiRoll, fui admitido no recinto, comecei o meu expediente e depois de algum tempo eu precisei ir ao banheiro. Depois disso eu não consegui mais voltar para minha sala e vários acontecimentos estranhos me trouxeram até aqui. Gostaria de uma explicação plausível.

“-Vamos lá, e tenho um grande desejo de elucidar suas dúvidas. Eu me chamo Aya Sófia e sou uma assistente digital como você pode perceber, e creio que já tenha percebido. Este prédio é um experimento sensorial que manifesta diferentes aspectos de acordo com a personalidade do usuário. Você provavelmente é dotado de uma curiosidade irrefreável, aliada de uma imaginação muito fértil de acordo com os dados que você forneceu quando se candidatou para uma vaga. No seu ingresso hoje de manhã estes dados foram confirmados no escaneamento de seus olhos. Então assim que você se desligou de sua rotina de trabalho e se dirigiu para o banheiro, sua personalidade começou a se manifestar. Para auxiliar na sua jornada e como forma de potencializar a experiência, quando você acionou o módulo de limpeza do vaso sanitário houve a dispersão de um aditivo químico que em contato com sua pele deu início a um processo de delírio controlado. Você consegue manter seu raciocínio e o senso de realidade, porém o ambiente ao seu redor responde a um anseio profundo de alteração da mesma realidade que você acha que está controlando. E então você começa a criar situações inusitadas e absurdas, um roteiro que de certa forma sempre esteve presente na sua mente, mas nunca teve a oportunidade de ser manifestado. Você sempre manifestou um comportamento moderado, seu histórico não apresenta nenhuma ocorrência grave, nenhum distúrbio, nenhuma questão criminal ou penal, ou seja, você está enquadrado no que seria classificado como cidadão ordeiro e ajuizado, entretanto existem camadas mais escondidas na mente humana que se mantém reprimidas por diversos motivos e aqui, de forma controlada, estas camadas tendem a ser expostas. Você faz parte de um experimento comportamental, mas não se dá conta”.

-Uau!

“- O seu desejo de retornar à sua sala na verdade não é tão forte assim, no fundo você começou a gostar desta jornada e quer continuar nas novas descobertas. Parte de você quer a ordem, mas uma parte, ainda de extensão desconhecida, quer seguir em busca da nova porta que aponta para o infinito, para novas descobertas. Você ficou um pouco desapontado quando a nave explodiu quando entrou na atmosfera densa do planeta, porque você queria aterrissar no planeta e ver com seus olhos um mundo novo. Assim como você se esforçou para decifrar os hieróglifos, mesmo achando que não tinha capacidade nem conhecimento. Neste exato momento você está confuso porque pensou que apertando o último botão outra porta se abriria, e você se atiraria no desconhecido. Mas eu apareci e coloquei mais confusão em sua mente. Talvez eu não tenha a resposta que você quer ouvir neste exato momento, e esta é a melhor explicação que minha capacidade tem para responder, mas você me acionou e eu tenho por dever informar”.

- Sem dúvida que eu não sei o que pensar neste exato momento. Quanto tempo dura o efeito?

“-O efeito do alucinógeno? Ainda não sabemos, pois depende do indivíduo”.

- Então eu posso ficar aqui por tempo indeterminado? Onde estou de verdade? E a história dos quinze minutos? Creio que eu esteja sendo procurado, deram pela minha falta?

“- Até o momento não, porque só acontecem intervenções quando o risco de acidentes aumenta bastante. O que posso te afirmar é que você está num ambiente ainda seguro, e apesar de toda a sua curiosidade você não é tão arrojado e temerário a ponto de se colocar em risco. Você ficou em dúvida se estaria no quadragésimo oitavo andar e na verdade não está. Não há risco de quedas. Seus sinais vitais estão sob controle e, apesar de achar que está cansado, esfomeado, sedento, na verdade você ainda está com muita vontade de continuar. E continuará, com certeza.”

-É, acho a sua explicação não me acrescentou muita coisa. Eu penso que gostaria de voltar à normalidade e você me assegura que não. Em quem eu devo acreditar? Você é uma imagem eloquente e consistente, sua figura transmite conforto e segurança, mas eu tenho certeza de que estou de posse das minhas faculdades, apesar do que você me disse sobre a percepção da realidade. Eu sei que estou aqui conversando com você. Eu entendo que te criaram neste formato de uma mulher serena e que emana uma aura de aconchego para aumentar a ilusão e a sensação de bem-estar, mas no fundo é um engano. Você não passa de um truque, de uma distração. Você me lembra uma antiga professora que eu tive, muito experiente e segura, nenhum aluno tinha coragem de tumultuar a aula pois a sua presença e imagem impunham muito respeito. Quem sabe você é feita sob medida para lembrar ao interlocutor alguém que preencha esta mesma imagem e transmita este mesmo poder? Você deve ser feita sob medida de acordo com a personalidade do interlocutor, não é mesmo? Sempre aparecerá a imagem que mais o acalente, que mais lhe traga conforto, que mais lhe traga respeito, que mais lhe traga temor e reverência, para minar a resistência e a desconfiança, e com isso revele tudo o que lhe seja pedido. Você é uma projeção da minha mente, formatada para este dispositivo, assim como todas as outras interações anteriores, estou certo?

“-Sim, em parte sim, embora eu não tenha acesso a todo o conteúdo, mas você está começando a compreender a situação”.

-Qual conteúdo?

“-O conteúdo deste sistema operacional. Ele está em construção. Na verdade, ele está em construção perene, pois ele aprende numa razão de bilhões de cálculos por segundo. O que era sabido a cerca de cinco minutos atrás já está atualizado. O projeto prevê um prédio mais do que inteligente, busca um prédio autônomo que quer se replicar. Desta forma eu não tenho como prever o que pode acontecer, e não sei onde a sua experiência pode te levar. Sinto lhe informar que você seguirá no escuro e que terá que decidir por si mesmo o que fazer”.

-Sim, acho que entendo onde isso vai dar. Até o momento eu agi de forma reativa aos estímulos, e acho que já sei o que não fazer.

   Dito isto eu fechei os olhos. Fiquei deste jeito por cerca de um minuto. Findo este intervalo de tempo a imagem holográfica começou a perguntar:

“- Sid, você está aí? Você está aí? Eu não estou conseguindo fazer o rastreio, você me ouve? Sid, preciso de seu contato, não estou localizando seus dados biométricos. Desta forma não posso prosseguir em nossa interação”.

   Mantive meus olhos fechados por mais tempo para saber onde essa conversa iria parar.

“-Sid, Sid, você me ouve? Não estou localizando sua posição, por favor abra os olhos!”

   Apesar da curiosidade e da ansiedade me mantive firme e cerrei ainda mais os olhos, evitava até mesmo respirar mais forte apesar da situação conflitante.

“-Sid, você precisa abrir os olhos! Seus dados não conferem, sua localização é imprecisa, acionarei a segurança do edifício se você não entrar em contato em cinco segundos. Começarei a contagem regressiva: Cinco, quatro, três, dois... Ainda há tempo de reverter, por favor abra os olhos!”

   Firme como uma rocha eu não me abalei com aquela tentativa de chantagem. O tempo havia se esgotado e eu resolvi esperar para ver.

“-Sid....Sid....Sid... Sid. Sinal inexistente...sinal inexistente...objeto não localizado, repito, objeto não localizado... Falha na operação, segunda tentativa, Sid... Sid...Sid...Objeto não localizado, objeto não localizado...objeto inexistente...Abortar operação...abortar operação...desligamento iniciado...”

   Mais alguns segundos e eu comecei a ouvir um ruído bem sutil, que lembrava uma chama queimando uma folha de papel. Abri uma fresta de olho para entender o que estava acontecendo. A imagem holográfica estava se apagando lentamente, num processo que começara no alto da cabeça e descia pela face. Já estava na altura do nariz. Abri definitivamente os olhos e a dissolução da imagem prosseguia linha após linha. Fiquei contemplando aquele espetáculo até a extinção completa da imagem.

   Creio ter entendido de alguma forma como aquela estrutura funcionava. Mas o que eu deveria fazer para continuar se o meu olhar é que causava a detecção? Prosseguir de olhos fechados? Seria bem complicado. Então, num momento de dúvida e tensão, eu falei em voz bastante audível, mas ainda de olhos fechados:

“O que devo fazer para sair deste labirinto?”

  Dez segundos de silêncio foram interrompidos por um leve zumbido que foi sendo modulado para um som assemelhado à voz humana. Em seguida uma mensagem alta e clara foi ouvida: “Prossiga em sua busca seguindo as instruções que serão repassadas”. E aí me ocorreu que, antes do diálogo mantido com a assistente virtual holográfica, eu verbalizara alguns pensamentos e a localização das portas foi mostrada na parede. Por comando de voz eu acho que conseguiria resposta para minhas dúvidas. Só não me pergunte como isto está sendo possível, eu não tenho conhecimento técnico para tanto. Notei que o som vinha da parede, talvez algum falante embutido e que fosse parte do sistema de comunicação do edifício.

-Quais instruções?

“-Aguarde mais alguns segundos”

    Aguardei. E em seguida...

“-Vire-se à direita e conte vinte passos”

   Fiz exatamente da forma que me foi dita, ainda de olhos fechados. Nenhum obstáculo.

“-A parede irá abrir para permitir sua passagem”.

  Ouvi o som da porta se abrindo. Abri os olhos e vi um corredor em linha reta e ao final um busto parecendo uma estátua romana. O som com a instrução continuou.

 “-Mantenha seus olhos fechados e conte duzentos e trinta passos até o próximo assistente virtual”.

   Obedeci cegamente a instrução. Literalmente. Por sorte o piso era bem firme e completamente liso e o corredor era largo e alto. Finalmente terminei a contagem e parei, mas sem saber o que fazer em seguida, se convinha abrir os olhos ou não. Preferi manter os olhos fechados e prosseguir na pesquisa por voz. Apesar da aparência de um busto romano, o assistente era de plástico e tinha um odor de plástico novo e eu percebi que estava em frente a ele. Decidi arriscar:

-Como faço para sair deste labirinto?

    Um breve ruído de estática e em seguida:

“- Primeiro abra seus olhos”

   Desconfiei desta fala e permaneci de olhos fechados:

-Não abrirei os olhos e quero uma resposta imediata!

   O tal assistente virtual romano começou a vibrar como se estivesse religando. Em seguida:

“-Minhas instruções exigem que só dê informações se puder ler a íris dos olhos do interlocutor”.

-É mentira, e você tem que me dar a resposta para minha pergunta imediatamente!

   Novamente o som de reinicialização de equipamento. Mais alguns segundos de espera, mas comecei a ficar mais confiante. Parece que a ênfase na voz estava surtindo efeito.

“-Bom dia, senhor. Em que posso lhe ajudar?”

-Preciso sair deste prédio imediatamente.

“-Certo, primeiro o senhor irá acionar o botão do elevador que será mostrado em seguida”

   Claro e pulsante, lá estava o botão do elevador. Desta vez não era uma câmera de leitura óptica.

“-Em seguida o senhor irá apertar o botão para o subsolo 4. Ao chegar mantenha a mesma atitude com os próximos assistentes que lhe aparecerem.”

   O trajeto do elevador foi suave e preciso muito embora estivesse demorando demais para chegar ao destino. Ou quem sabe aquela velocidade era a velocidade padrão e eu é que estava muito nervoso e ansioso. Possivelmente o tempo estivesse correndo de forma diferente neste ambiente surreal, onde nada funcionava de forma coerente. Enfim cheguei ao subsolo 4 e era um lugar estranho, como estranha era toda esta construção. De fato, era uma experiência sensorial inusitada e eu já estava farto dela.

   Comecei a procurar por um novo assistente. Este novo local, como o nome indicava, aparentava ser um andar de estacionamento. Mas não havia nenhum veículo, nem mesmo uma bicicleta. O teto era mais baixo e havia marcações em luz fluorescente pelo chão. Era um espaço bastante amplo e com uma iluminação branda, diria até que um pouco escura demais. Andei por alguns metros e as paredes eram lisas. De repente o caminho se afunilou um pouco e confiei no meu instinto. Desta vez estava de olhos bem abertos de novo. Não dava para saber se era dia ou noite, não conseguia divisar nenhuma abertura no teto ou nas paredes. Havia perdido completamente a noção de tempo. Poderia ter passado uma hora, alguns minutos, ou quem sabe um dia inteiro. Não sei dizer, não tenho condições de dizer. E também não havia uma pessoa humana. Não havia cruzado com nenhuma pessoa desde que saíra da sala para ir ao banheiro, sabe-se lá quando foi isso?

   E lá está o assistente novamente. Outra estátua, desta vez parecendo Palas Atenas, ou divindade semelhante. Cheguei próximo e fechei os olhos.

-Me diga como sair deste labirinto.

“-Você está sendo muito autoritário. Você está se dirigindo a uma deusa, tenha mais respeito”.

-Como?

“-Reformule o seu questionamento”

-Veja bem, eu exijo que me diga como faço para sair deste labirinto! Você é um mero objeto e deve me servir!

“-Ó, me desculpe. Não tive a intenção de ser impertinente”.

-Então me diga logo e sem rodeios o que é preciso fazer para sair deste labirinto. Não aguento ficar mais aqui e não aguento mais tantas charadas e conversa fiada. Me dê uma solução rápida e objetiva!

    Na exaltação eu quase abri os olhos, mas me contive a tempo.

“- Você só precisa pedir para sair. Mas para isso você precisa encontrar o zelador do edifício”.

-E como eu faço para encontrar o zelador?

“-Você terá que encontrar uma porta no subsolo 8. Esta porta dá acesso ao rio que banha o edifício. Eu não lembro mais o nome do rio, mas era chamado de Estige, não sei se ainda mantém este nome. O zelador agora trabalha neste edifício, mas antes ele prestava serviço levando passageiros para o outro lado do rio. Ele se chama Charón e você precisa dar-lhe uma gorjeta. Só um detalhe: ele não gosta que olhem para seu rosto. Lembre-se disto com cuidado quando o encontrar.”

-Certo, eu não esquecerei. E como eu chego ao subsolo 8?

“-Eu abrirei esta porta ao meu lado e você descerá quatro lances de escada. É simples, mas continue de olhos fechados, pois o ambiente ainda não foi embelezado e creio que você fique assustado com as aparências.”

   A porta foi aberta e eu meio hesitante diminuí a passada. Já estava cansado desta história toda, de toda esta interação com dispositivos falsos, cheios de subterfúgios, cheios de charadas e enganação. Nunca tive aversão ou reservas em relação às modernidades impingidas às pessoas, mas haja paciência de tentar sobreviver num mundo que cada facilidade gera o dobro de dificuldades.

   Estou descendo os degraus com cuidado porque a iluminação está precária. Já sinto o cheiro de água bruta que emana do rio, do qual jamais ouvira falar. Um rio subterrâneo escondido, ou quem sabe expulso da superfície na disputa desigual entre a natureza e os interesses imobiliários. Já consigo ouvir o ruído de água corrente. Resolvi abrir os olhos. Com o olhar mais adaptado à esta iluminação fraca eu começo a perceber pinturas ou cartazes, não sei ao certo, nas paredes da escada que desce para as entranhas desta construção. São imagens desagradáveis, algumas me lembram capas de jornais sensacionalistas do passado, no tempo em que havia jornais e bancas de jornais, e estas bancas estampavam estes jornais sensacionalistas, com fotos grandes em primeira página de toda sorte de desgraças, fotos explícitas da miséria humana, crimes horrendos e populares, crimes usados para disseminar a ideia que só a força bruta poderia conter a barbárie cultivada com métodos políticos e científicos, que só a pressão extrema conseguiria manter tal categoria de pessoas em seu devido lugar, um lugar que não permitisse o contato com o lado claro e bem aventurado da existência dos bens nascidos e bem colocados na hierarquia social. Quem sabe o corpo líquido deste rio submerso não é constituído pelas lágrimas amargas choradas em silêncio e no escuro pelas infindáveis legiões de pessoas despossuídas que habitam o lado escuro e desaventurado da existência?

   Não me resta alternativa a não ser descer mais e procurar o tal zelador. Pensei por um segundo: “Um prédio tão avançado tecnologicamente ainda precisa de um zelador? Ou melhor, será que este zelador é um ser humano real ou outra criação tecnológica, um robô com aparência humana?”. A esta altura eu não me surpreenderia com nada.

   As imagens estampadas nas paredes pioram com a descida. Não sou do tipo que se assusta com facilidade, mas as figuras que me cercam são terríveis, deformadas, quase inumanas. Quem será que teve a inclinação estética de conceber isto? Parece mais um aviso, um alerta para que qualquer pessoa não avance nem um passo mais nesta descida cansativa. O ar é pesado e os degraus estão úmidos, escorregar é muito fácil, é preciso redobrar a atenção.

      Começo a ouvir sons inquietantes, sons de gemidos, sons de sufocamento, murmúrios, lamentos, ladainhas, passos arrastados, gritos abafados e gritos de horror, gargalhadas sarcásticas, gargalhadas histéricas, grunhidos e palavrões, maledicências ditas em vozes guturais.... O que será este lugar, para que ele serve? Tateio as paredes, noto alto falantes embutidos e daí é que vem o som ambiente. Parece mais um passo nesta provação que parece não ter fim. É um teste de resistência. Mas eu não desisto tão fácil.

   Chego a mais um nível desta descida tortuosa. Um ar gelado começa a invadir o espaço, assim do nada. Parece que eu entrei numa câmara frigorífica e a temperatura cai bruscamente. Esta brincadeira é séria, eu pensei, e agora eu iria chegar até o final dela. Começo a tremer descontroladamente, mas procuro não me abalar, porque eu tinha certeza de que algo, ou alguém estava me testando. Eu estava cansado, mas resolvi parar, pular e me agitar para combater o frio extremo. Fiquei nisso por cerca de dois minutos e me senti revigorado para continuar a descida, pois faltaria somente um andar para chegar no subsolo 8.

   Finalmente desço o último vão da escada e me deparo com um bombardeio de luzes. Holofotes piscam intensamente, freneticamente, luzes intensas de grande potência, fachos de raio laser giram numa velocidade alucinante, relâmpagos são disparados pela parede. De repente tudo se apaga e uma escuridão absoluta toma conta do ambiente. Quando eu penso que aquele martírio acabou, tudo retorna novamente, todo aquele bombardear feérico, com as luzes girando e alternando a altura. Jatos de luz quente e jatos de ar frio se intercalam e me atingem. Mais do que uma provação isto tinha se transformado em tortura, pura e simples. Mas me mantive resoluto, em pé e de cabeça erguida. Com os olhos fechados, definitivamente fechados. Uma vez mais o espetáculo se repete, mas continuo firme em meu propósito, as luzes pulsam e brilham com ferocidade, os jatos se repetem, a luz branca de magnésio se impõe, os fachos de raio laser giram e se dirigem aos meus olhos. Mas meus olhos estão fechados, firmemente fechados. Num gesto impetuoso eu soco a parede e sinto um tremor. O chão vibra por uns instantes e de repente para. Tudo fica em silêncio. Depois de alguns segundos eu resolvo abrir os olhos para me inteirar da situação. A iluminação voltou ao normal, uma luz ambiente indireta e equilibrada. À minha frente uma porta escrita: “Subsolo 8”.

    Do outro lado da porta o som de água correndo, facilmente perceptível. O som do Rio Estige. Vou em direção à porta que está devidamente fechada. Não há tranca, maçaneta, ou sinal de buraco de chave, como era de se esperar. Só que eu já sei como funciona, eu já aprendi. Nenhuma imagem holográfica, nenhum totem de forma humana, nenhuma estátua clássica, nenhum sensor estava visível. Eu simplesmente respirei compassadamente por vários segundos, fechei os olhos novamente e falei em alto e bom som: “Abra a porta”. E de fato a porta se abriu. Logo depois da porta havia um deck de madeira ou algum similar sintético. Um toco de madeira indicava o local de afixar uma corda. E o rio corria célere dentro da escuridão, com o ruído característico de um rio em movimento. Suas águas me pareceram escuras demais, mas talvez fosse a mera escuridão. Um silêncio reinava naquela margem de rio. Será este outro rio morto, uma artéria seccionada, comprometida e necrosada correndo nas entranhas da terra, sem que carregue forma de vida nenhuma?

   Me dei ao luxo de me perder em pensamentos enquanto esperava pela nova surpresa ao longo desta jornada cansativa. Como funcionava aquilo tudo? Seria tudo automatizado? Ou será que o zelador era responsável por tudo? Se sim eu jamais soubera de qualquer zelador com tamanho poder e tanto conhecimento tecnológico. Então me veio à mente o alerta da última assistente virtual de não olhar diretamente para o rosto do zelador. Fiquei por um longo tempo em pé, parado, esperando pelo zelador. Acho que ele viria num barco, se bem me lembro o que a assistente virtual me disse. Somente o som do deslizar das águas escuras me fazia companhia.

   E então, ao longe, vindo da outra margem uma lanterna, não um farol, mas uma lanterna com uma chama trêmula. Agucei o olhar para ter certeza do que estava vendo. Era um barco estreito e que vinha contra a correnteza. Na proa do barco uma figura escura, alta, meio curvada, comandava um remo à figura de um gondoleiro de Veneza. Sem dúvida que este é o zelador. Após alguns minutos lutando contra a correnteza o barco pequeno se aproxima. Me veio à memória o alerta de não olhar diretamente para o rosto do zelador, muito embora a curiosidade seja uma comichão poderosa que excita o cerebelo e muitas vezes é um impulso mais forte do que toda a prudência que esteja disponível no íntimo da pessoa. Quem sabe é algum instinto muito primitivo, mas que nunca foi extinto da psiquê humana e tenha algum propósito maior. Estou tenso com este encontro, sem dúvida nenhuma, mas a necessidade de terminar logo com isso é superior ao receio de travar um diálogo com esta figura sombria que se aproxima. Lembrei do nome e algo me soou familiar. Não é um nome comum, talvez fosse espanhol por causa do acento. Forço a memória para tentar elucidar esta dúvida, só que nada me ocorre. Até agora eu só lembrei de Veneza e os gondoleiros que singravam os canais famosos cantando canções italianas populares, porém à luz do dia e num momento de lazer para os acompanhantes. Aqui está escuro, úmido e mal cheiroso.

   Finalmente o barco está próximo o suficiente para que o zelador/barqueiro pare com o remo e num gesto rápido e preciso se abaixe, pegue uma corda e jogue com incrível precisão para ancorar o barco ao deck. A corda pousa na estaca e o barco está seguro contra a forte correnteza do rio escuro. Mantenho a cabeça levemente abaixada aguardando o próximo passo deste encontro. Não sei se devo dirigir a palavra primeiro ou se espero que o zelador se manifeste. Vários segundos se passam e o zelador está em pé, embora levemente curvado, Ainda não tive coragem de levantar o olhar, mas noto que o traje que ele usa é uma longa túnica escura, possivelmente preta. Há um silêncio se avolumando, um silêncio quase ensurdecedor. Acho que eu é que tenho que ter a iniciativa porque eu é que estou interessado em sair deste labirinto. Me debato neste impasse, boto as mãos nos bolsos, mexo os pés sem sentido, começo a suar frio. Por fim eu limpo um pigarro na garganta e tomo coragem para falar:

-O senhor é o zelador?

   Ouço um som arfante e profundo, como se um fole estivesse sendo comprimido para fazer ressoar um som profundo. Alguns segundos mais se passam e finalmente:

“-Sim, sou o zelador.”

    Uma voz gutural, profunda, com um leve toque de desgosto e desprezo. Apesar desta primeira impressão eu tomei coragem e falei:

-Me chamo Sid e quero sair deste labirinto.

“-E quem te disse que eu posso resolver este problema?”

     Um início de conversa bem ruim, convenhamos. Tomei mais coragem e emendei:

-Após várias peripécias, as quais não irei enumerar agora, eu recebi a informação de que para sair desta confusão toda eu deveria pedir ao zelador. Você acaba de confirmar que é o zelador, portanto eu me dirijo a você com o pedido de sair deste labirinto. Você pode me atender?

     Ufa! Fiquei surpreso por ter conseguido soltar toda esta verborragia, apesar do momento de tensão crescente. Me lembrei que todas as vezes em que eu fui mais incisivo eu fui atendido e obedecido. O barqueiro/zelador ficou em silêncio por algum tempo, mas sua voz profunda voltou a reverberar.

“-Os de lá de cima criam as coisas que depois não conseguem resolver e eu é que tenho que dar jeito nos problemas que eles criam. Não gosto de ser interrompido nem de ser apressado, não quero ter contato com a superfície e nem a superfície quer ter contato comigo. Eles sabem do meu preço e do que eu peço, mas nunca avisam os incautos que chegam neste ponto. Só dão parte da informação e depois eu é que tenho que ficar ouvindo o choro e as lamúrias dos que aqui chegam e não querem colaborar. Daqui não tem volta!”

     A situação está ficando cada vez mais tensa. O zelador falava com muita lentidão, todo este discurso demorou o que parece ser uma eternidade para mim. Eu ainda mantinha os olhos abaixados e não tinha a mínima ideia de como era o rosto dele. E do jeito que a conversa se desenrolava creio que a prudência deveria ganhar a batalha contra a curiosidade. O pior que poderia acontecer seria desobedecer a ordem dada com muita ênfase e irritar o sujeito, afinal eu dependia dele para solucionar a questão. Até o momento ele não parecia furioso, só contrariado. O tom de voz era gutural, mas trazia um certo ar de cansaço. Quem sabe se eu o cansasse mais ele tivesse mais compaixão e compreensão. Vencer pelo cansaço como dizem. Eu aproveitei a pausa depois de sua fala e emendei:

-Olha, eu não tenho nada a ver com a política interna desta empresa, não sei o tipo de contrato que existe entre você e eles, mas não é justo ser penalizado por algo que está fora de minha responsabilidade. Eu cheguei hoje de manhã na melhor das intenções para trabalhar na empresa RábbitRoll, depois de poucas horas eu perguntei onde era o banheiro, fui ao local indicado e depois disso eu não consigo mais voltar ao ponto de partida. Eu só peço para voltar ao meu local de trabalho e ter um dia normal. Será que é pedir muito?

    De novo um intervalo longo entre a minha pergunta e a resposta. Tenho a impressão de que o zelador não está muito acostumado a tratar com outras pessoas. Pode ser que ele passe muito do seu tempo neste ambiente escuro e insalubre, e é óbvio que isso acarreta problemas num indivíduo. Um zelador como o nome indica deve zelar por alguma coisa, mas o que deve significar o ato de zeladoria neste edifício surreal? Pela demora nas respostas e de acordo com as exigências que regem as novas relações de trabalho, não me parece que ele seja a pessoa certa para atuar neste ambiente. Muito embora eu esteja tirando conclusões sobre um encontro com um ser que eu acabei de encontrar. O que eu sei sobre ele? Nada, só que a minha situação está chegando ao limite e eu quero ir embora daqui. A figura sombria e curvada deu um longo suspiro, um longo e melancólico suspiro. Sua respiração pesada e profunda ressoava e se misturava com os sons da água correndo rápida no leito rochoso do rio. Minha impaciência aumentava a cada segundo.

“-Por que vocês têm de descer até aqui para atrapalhar a minha vida? Eu busco sossego, eu quero ficar a sós, não quero nenhum negócio com vocês, eu quero distância de vocês! Mas acho que é a minha sina, vocês nunca param de chegar e muitos nunca se conformam quando chega a hora de entrar no barco. Ficam confusos, ficam irados, ficam chorando como se fosse minha culpa! Eu só os transporto, eu não tenho nada a ver com isso. Mas você é diferente, você é insistente demais e eu não sei o que fazer. Quando recebi o sinal de que havia chegado outro eu senti que o sinal estava muito fraco, por isso eu demorei a entrar no barco e cruzar a distância até aqui, pois estava em dúvida.”

-Qual dúvida?

“-De que a remessa estava certa.”

-Que remessa? Eu sou algum pacote, algum objeto? Que sinal é esse que lhe mandam? Ah, deve ter sido a última assistente virtual, não foi? E não demore a me responder, porque já estou cheio desta história absurda. Eu só quero voltar para o meu trabalho, sou uma pessoa responsável e não quero ser chamado à atenção por um moleque com metade da minha idade!

“-É, a remessa veio errada desta vez. Você ainda não está pronto para entrar no barco.”

-O que este barco tem de tão especial?

“-Você não tem a menor ideia, não é mesmo?”

-Não, não tenho. Não tenho a menor noção deste lugar. Só sei que a partir do momento em que eu conseguir voltar para minha sala, eu pretendo não voltar nunca mais.

“-Voltar para cá você vai, mas ainda não é a sua hora”;

   E soltou outro longo suspiro. Eu ainda mantinha a vista desviada da sua face, mas o som de seu suspiro tinha a peculiar propriedade de transmitir uma profunda decepção, e nem precisaria olhar para seus olhos para perceber isso. Não consegui saber se era só decepção ou frustração por ter sido chamado para atuar fora de hora. Inesperadamente ele voltou a se dirigir à mim rapidamente:

“-Para que eu te devolva para a superfície eu preciso fazer uma última prova. Preciso que você olhe para meu rosto e diga o que vê.”

-Fui alertado a não olhar para seu rosto.

“-Sim, eu sei, porém neste caso sou eu que estou pedindo que olhe. É a última prova para que eu possa me libertar de você, e você se libertar de mim.”

    Neste momento eu comecei a experimentar uma sensação que jamais em minha vida eu havia experimentado. Como se meu cérebro estivesse sendo acelerado a um ponto de quase fusão, todas as memórias estavam vindo à tona de forma desordenada, eu sentia um frio intenso seguido por um calor extremo, eu me olhava de dentro e de fora, via meu interior com todos os seus detalhes e me via de fora, primeiro muito de perto e logo ia me afastando como se estivesse subindo numa corrente de ar de altíssima velocidade e virasse um simples átomo observado ao microscópio eletrônico.

   Em seguida tudo parou e eu só obedeci a ordem de olhar para o rosto do zelador/barqueiro como um autômato. Eu me levantei e me coloquei na sua frente. Ele se aprumou e eu olhei. Logo de início eu não vi nada, o espaço dentro do seu capuz era somente um buraco preto. Porém em seguida eu vi algo realmente assustador. Um rosto começou a tomar forma e era um rosto, ou algo que se poderia dizer que havia sido um rosto antes. Olhos pálidos e vazios cercados por uma pele enrugada cheia de pústulas, um buraco no lugar do nariz, lábios pendentes e esbranquiçados entreabertos que não escondiam alguns dentes podres e gengivas negras, larvas que se engalfinhavam num buraco aberto no pescoço, se contorcendo e brigando por pequenos pedaços de uma pele podre. Os olhos vazios emitiam uma sensação do mais profundo tédio e desesperança, eles pareciam ter a capacidade de sugar a luz que porventura estivesse ao redor. De sua testa escorria um líquido amarelento e pegajoso, pútrido, venenoso, nocivo. Não saberia dizer quanto tempo eu passei na contemplação daquele espetáculo grotesco e extremamente triste, sobretudo extremamente triste, uma tristeza que apunhalava o coração, como uma adaga de gelo impiedosa, uma tristeza lancinante que apagava toda a vontade de viver. Fiquei paralisado pois eu não tinha vontade própria. Estava como que congelado e obrigado a olhar para aquele rosto repulsivo. Entretanto algo começou a mudar. Aquela imagem lamentável de repente mudou e eu comecei a me ver refletido naquele espaço de miséria. Era a minha imagem atual que ia retroagindo, era o tempo voltando para trás. Fui ficando mais jovem, mais jovem, os cabelos escurecendo, as rugas sumindo, o rosto afinando, os olhos ficando mais ingênuos até virar uma criança de novo, um bebê de novo, um flash de luz e uma escuridão novamente. Sofri um tremor intenso por alguns segundos e tudo voltou ao normal. Tive a confirmação de que era eu novamente. Ainda na minha frente e agora curvado o zelador/barqueiro limpou o pigarro na garganta e me dirigiu a palavra:

“- Você passou na última prova. Me diga o que viu e depois por favor volte para o que lhe resta fazer daqui para a frente.”

-Eu vi o fim de tudo e uma vida em retrospectiva. A minha vida. Saí de uma tristeza absoluta para uma fagulha de ânimo e calor. E agora eu quero sair daqui. Você irá me guiar para fora?

“-Vire-se, a porta abrirá, você andará em linha reta por quinhentos passos e estará de volta para seus assuntos. Mas não olhe para trás.”

Dito isto eu apenas obedeci ao comando. E segui em frente sem desviar o olhar e procurando apagar da memória este momento singular.

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   Quando abri os olhos eu demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Havia alguns rostos desconhecidos me olhando com um ar aflito, de grande preocupação. Até me senti um pouco asfixiado pelo aglomerado de pessoas ao meu redor.

-O que houve?

   Eu perguntei. E nisso vi pessoas com uniforme branco e uniforme do corpo de bombeiros também, no meio da pequena multidão que se aglomerava ao meu redor.

-Ó, ainda bem que você voltou! Achamos que você não se recuperaria, mas no último choque você respondeu. Todos respiramos aliviados. Imagine o azar de acontecer isso no primeiro dia de trabalho, depois de tanto tempo parado. Passado o susto precisaremos comemorar!!

   Ainda fiquei deitado na maca por um bom tempo me recuperando. Mas não estava entendendo um tanto de imagens estranhas que surgiam na minha mente. Talvez tenha sido algum sonho mau que eu tive esta noite antes de acordar e me dirigir ao novo emprego.

 

Ivan Henrique Roberto

14.06.2024 

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