Nietzsche - A Gaia Ciência
Por Jacot Werner Stein | 23/03/2020 | FilosofiaNIETZSCHE - A GAIA CIÊNCIA
0. A Gaia Ciência (1881-1882), à sombra da 'morte de Deus', o filósofo medita sobre a moral, a necessidade da crença, o sentimento de potência, o romantismo.
Aurora é um livro que diz Sim, profundo, porém claro e benévolo. O mesmo, e no maior grau, vale para a 'gaya cienza': em cada quase frase sua, profundidade e petulância dão-se ternamente as mãos. Um verso que exprime a gratidão pelo mais maravilhoso janeiro que vivi -- todo o livro é uma dádiva -- revela bem a partir de que profundeza a 'ciência' aí tornou-se 'gaia':
Ó tu que com o dardo de flama
Partes o gelo da minha alma,
Para que ela se lance fremente
Ao mar de sua suprema esperança.
Sempre, mais clara e mais sã,
Livre na lei mais amorosa --
Assim exalta ela teus milagres,
Belíssimo Janeiro! (EH/EH, A gaia ciência)
1. Nietzsche (1.844-1.900) publicou duas versões distintas de A Gaia Ciência [Die fröhliche Wissenschaft -- FW/GC] , a primeira em 1882 e a segunda em 1887. A segunda edição se diferencia da primeira pelo acréscimo do quinto livro, de um prefácio datado de 1886, das "Canções §do princípe Volgelfrei" (colocadas em apêndice) e do subtítulo provençal "La gaya cienza". Além disso, a epígrafe de Emerson escolhida em 1882 é suprimida em 1887 e substituída por um breve poema de Nietzsche, onde declara, de modo significativo, que nunca imitou ninguém. A amplidão dessas alterações sugere que o ponto de vista retrospectivo de Nietzsche em 1887 não coincide inteiramente com aquele que adotara em 1882.
Adivinha-se que eu não gostaria de me despedir com ingratidão daquele tempo de grave enfermidade, cujo ganho ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou bastante consciente do que eu tenho em geral, com minha saúde mutável, de vantagem sobre todos os espíritos de quatro costados. (...) [FW/GC, Prólogo, §3]
2. A edição de 1882 se compõe de quatro livros, iniciados com um "prelúdio em rimas alemãs" que tem o título goethiano "Brincadeira, astúcia e vingança". A noção de "gaia ciência", que dá seu título à obra, suscita de imediato uma interrogação, na medida em que associa paradoxalmente a ciência com uma tonalidade afetiva, a alegria ou a jovialidade [Frölichkeit]. Esse paradoxo anuncia um deslocamento de problemática: Nietzsche pretende colocar em questão a tradição metafísica de busca meramente espiritual da verdade, ao defender uma concepção incarnada de conhecimento. Logo no §1 (livro I), a expressão "gaia ciência" é empregada para designar uma certa atitude frente à "comédia da existência", que alia "o riso [...] à sabedoria". Essa atitude consiste em rir de nós mesmos enquanto participamos, também nós, da comédia, 'inclusive quando acreditamos observá-la do exterior'. Assim, Nietzsche desenvolve uma reflexão sobre a inserção do olhar contemplador no espetáculo contemplado. Tomar consciência dessa inserção não pode nos libertar dela, mas provoca, no máximo, um riso sábio. A impossibilidade de um ponto de vista transcendente transparece, de novo, no importante §54 (livro I), intitulado "A consciência da aparência". No âmbito de uma meditação implicitamente evolucionista, o autor afirma que "descobriu" que os seus pensamentos e afetos se inscrevem na longa história da vida humana, animal e orgânica (uma história que, segundo o §11, §110 e §111, é a da incorporação de erros intelectuais fundamentais). Porém, tal descoberta não se equipara à supressão de uma ilusão. Pois ela é comparada ao fenômeno do sonho lúcido, que associa a consciência de sonhar com a continuação do sonho: o homem de conhecimento não deixa de participar da aparência da qual tomou consciência enquanto tal. O §333 (livro IV) confirmará que o conhecimento é apenas "um 'certo comportamento mútuo dos impulsos'", que não pode elevar-se por cima dos impulsos e, por conseguinte, da vida.
Origem do conhecimento. -- O intelecto, através de desconmunais lances de tempo, não engendrou nada além de erros; alguns deles resultaram úteis e conservadores, da espécie: quem topou com eles ou os recebeu como legado combatia seu combate por si mesmo e por osua prole com maior felicidade. Tais errôneos artigos de crença, que eram sempre legados mais adiante e afinal se tornaram quase o espólio e o fundo comum da humanidade, são, por exemplo, estes: que há coisas que duram, que há coisas iguais, que há coisas, matéria, corpos, que uma coisa é como aparece, que nosso querer é livre, que o que é bom para mim também é bom em e para si. Só muito tarde vieram os que negavam e punham em dúvida tais proposições -- só muito tarde vieram os que negavam e punham em dúvida tais proposições -- só muito tarde veio a verdade, como a forma menos forte do conhecimento. Parecia que com ela não se conseguia viver, nosso organismo era feito para o contrário dela; todas as suas funções superiores, as percepções dos sentidos e toda espécie de sensação em geral cooperavam com aqueles antiquíssimos erros fundamentais incorporados. Mais ainda; aquelas proposições se tornavam, mesmo no interior do conhecimento, as normas segundo as quais se mediam "verdade" e "inverdade" -- até nas regiões mais remotas da lógica pura. Portanto: a 'força' do conhecimento não está em seu grau de verdade, mas em sua idade, sua incorporação, seu caráter de condição de vida. Onde viver e conhecer pareciam entrar em contradição nunca se combateu a sério; ali negação e dúvida eram tomadas como tolice. Aqueles pensadores de exceção, como os eleatas, que a despeito disso estabeleceram e firmaram os contrários dos erros naturais, acreditavam que também é possível 'viver' esse contrário: inventaram o sábio como o homem da inalterabilidade, impessoabilidade, universalidade da intuição, como um e tudo ao mesmo tempo, com uma faculdade própria para aquele conhecimento invertido; eram da crença de que seu conhecimento é ao mesmo tempo o princípio da 'vida'. Mas, para poderem afirmar tudo isso, tinham que 'enganar-se' sobre seu próprio estado: tinham de se atribuir ficticiamente impessoalida e duração sem mudança, desconhecer a essência daquele que conhece, negar a tirania dos impulsos no conhecer e em geral captar a razão como atividade plenamente livre, originada de si mesma; mantinham os olhos fechados para o fato de que também ele haviam chegado às suas proposições contradizendo o vigente ou desejando tranquilidade ou posse exclusiva ou domínio. O desenvolvimento mais refinado da lealdade e da 'skepsis' tornou também esses homens, afinal, impossíveis; também seu viver e julgar resultavam como dependentes dos antiquíssimos impulsos e erros fundamentais de toda existência sensível. -- Aquela mais refinada lealdade e 'skepsis' tinha por toda parte sua origem ali onde duas proposições opostas apareciam como 'aplicáveis' à vida, porque ambas pactuavam com os erros fundamentais, onde portanto se podia disputar sobre o grau superior ou inferior da 'utilidade' para a vida; e igualmente, ali onde novas proposições se mostravam, decerto não úteis à vida, mas pelo menos não-perniciosas, como manifestações de um impulso lúdico intelectual, e inocentes e felizes como todos os jogos. Pouco a pouco encheu-se o cérebro humano de tais juízos e convicções, surgiu nesse emaranhado fermentação, combate e apetite de potência. Não somente utilidade e prazer, mas toda espécie de impulsos tomava seu partido no combate pelas "verdades"; o combate intelectual tornou-se ocupação, estímulo, vocação, dever, dignidade --: o conhecer e o esforço em direção ao verdadeiro acabaram por entrar como uma necessidade, na ordem das outras necessidades. Desde então não somente a crença e a convicção, mas também o exame, a negação, a desconfiança, a contradição, eram uma 'potência', todos os "maus" instintos foram subordinados ao conhecimento e postos a seu serviço e adquiriram o esplendor do permitido, honrado, útil e, por último, o olho e a inocência do 'bom'. O conhecimento tornou-se, pois, um pedaço da própria vida e como vida uma potência em constante crescimento; até que, enfim, o conhecimento e aqueles antiquíssimos erros fundamentais entraram em choque, ambos como vida, ambos como potência, ambos no mesmo homem. O pensador: este é agora o ser em que o impulso à verdade e aqueles erros conservadores da vida combatem seu primeiro combate, depois que o impulso à verdade se 'demostrou' como uma potência conservadora da vida. Em proporção com a importância desse combate, tudo o mais é indiferente: a pergunta última pela condição da vida é feita aqui, e aqui é feito o primeiro ensaio, com o experimento de responder a essa pergunta. Até que ponto a verdade suporta a incorporação? -- eis a pergunta, eis o experimento. [FW/GC, §110]
De onde vem o lógico. -- De onde surgiu a lógica na cabeça humana? Com certeza, da não-lógica, cujo reino, na origem, há de ter sido descomunal. Mas inúmeros seres, que inferiam de modo diferente do que nós inferimos agora, sucumbiram: poderia até mesmo ter sido mais verdadeiro! Quem, por exemplo, não sabia descobrir o "igual" com suficiente frequência, no tocante à alimentação ou no tocante aos animais que lhe eram hostis, quem portanto subsumia demasiado lentamente, era demasiado cauteloso na subsunção, tinha menor probabilidade de sobrevivência do que aquele que em todo semelhante adivinha logo a igualdade. A tendência preponderante, porém, a tratar o semelhante como igual, uma tendência ilógica -- pois não há em si nada igual --, foi a primeira a criar todos os fundamentos em que assenta a lógica. Do mesmo modo, para que surgisse o conceito da substância, que é imprescindível para a lógica, mesmo se, no sentido mais rigoroso, nada de efetivo lhe corresponde -- foi preciso que por longo tempo o mutável nas coisas não fosse visto, não fosse sentido; os seres que não viam com precisão tinham uma vantagem diante daqueles que viam tudo "em fluxo". Em e para si todo grau elevado de cautela no inferir, toda tendência cética, já são um grande perigo para a vida. Nenhum ser vivo teria sido ocnservado se a tendência oposta -- preferir afirmar a suspender o juízo, preferir errar e criar ficções a esperar, preferir concordar a negar, preferir julgar a ser justo -- não tivesse sido cultivada com extraordinário vigor. -- A sequência de pensamentos e conclusões lógicas, em nosso cérebro de agora, corresponde a um processo e luta de impulsos, que por si sós são todos muito ilógicos e injustos; de hábito, só ficamos sabendo do resultado do combate; tão rápido e tão escondido se desenrola agora esse antiquíssimo mecanismo em nós. [FW/GC, §111]
O que significa conhecer? -- 'Num ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere?' -- diz Spinoza, simples e sublime, como é seu modo. Entretanto: o que é esse 'intelligere', no último fundamento, senão a forma em que justamente os três primeiros se fazem sentir a nós de uma só vez? Uma resultante dos impulsos, diferentes e contrários entre si, do querer-rir, lamentar, execrar? Antes que seja possível um conhecer, é preciso que cada um desses impulsos tenha apresentado seu ponto de vista unilateral sobre a coisa ou acontecimento; posteriormente surgia o combate dessas unilateralidades e dele às vezes um meio-termo, um apaziguamento, um dar razão a todos os três lados, uma espécie de justiça e contrato: pois graça à justiça do contrato podem todos esses impulsos afirmar-se na existência e ter razão todos juntos. Nós, que só temos consciência das últimas cenas de reconciliação e cômputos finais desse longo processo, pensamos portanto que 'intelligere' seja algo conciliador, justo, bom, algo essencialmente oposto aos impulsos; enquanto é somente 'uma certa proposição dos impulsos entre si'. Através dos mais longos tempos considerou-se o pensar consciente como o pensar em geral: só agora desponta para nós a verdade, de que a maior parte de nossa atuação espiritual nos transcorre inconsciente, não sentida; penso, porém, que esses impulsos, que aqui combatem uns com os outros, saberão muito bem fazer-se sentir 'uns aos outros' e se fazer mal --: aquela violenta exaustão súbita, que põe à prova todos os pensadores, pode ter nisso sua origem (é uma exaustão no campo de batalha). Sim, talvez haja em nossa interioridade combatente muito 'heroísmo' escondido, mas certamente nada de divino, nada repousando eternamente em si, como pensava Espinosa. O pensar 'consciente', e em especial o do filósofo, é o menos forte e, por isso, é também relativamente o mais brando e tranquilo dos modos de pensar -- e, assim, precisamente o filósofo é o mais fácil de ser induzido em erro sobre a natureza do conhecer. [FW/GC, §333]
3. No livro II, que contém observações sobre a arte no sentido mais geral, Nietzsche se esforça para superar a oposição tradicional entre a arte e a ciência. Por outro lado, as próprias ciências chegam a conceber a ilusão e o erro como "condição de existência que conhece e que sente", como bem mostra o §107 que conclui o livro.
Por outro, enquanto "boa vontade com a aparência", a arte se revela psicologicamente necessária ao indivíduo que cultiva uma probidade intelectual e uma "paixão do conhecimento", como o refluxo do mar deve suceder ao seu fluxo (§107). Mas ainda, o homem de conhecimento tem que reconhecer que a aparência não dissimula nenhuma essência suscetível de ser conhecida objetivamente. O que se chama comumente de essência é uma espécie de 'aparência incrustada', que atua como essência em virtude de um prestígio acumulado no decorrer da história. O §58 (livro II), intitulado "Somente como criadores!", segue essa linha de reflexão para concluir que podemos transformar essas pretensas essências, mas somente ao criar novas aparências e verossimilhanças, especialmente por meio da linguagem. Desse modo, a 'Frohlickeit' de Nietzsche também corresponde à boa consciência de quem aceita a destruição implicada pelo ato de criar.
Somente como criadores! -- Isto me causou o maior dos cansaços e continua ainda a me causar o maior dos cansaços: perceber que indizivelmente mais importa 'como as coisas se chamam', do que o que elas são. A reputação, nome e aparência,a validade, o peso e medida usual de uma coisa -- na origem, o mais das vezes, um erro e uma arbitrariedade, lançados sobre as coisas como uma roupa e inteiramente alheios à sua essência e mesmo à sua pele -- pela crença que se tem neles e por seu crescimento progressivo de geração em geração pouco a pouco como que aderiram e se entrelaçaram à coisa e se tornaram seu próprio corpo; a aparência, desde o começo, acaba quase sempre por se tornar em essência e faz 'efeito' como essência! Que parvo não haveria de ser quem pensasse que basta indicar essa origem e esse invólucro nebuloso da ilusão para 'aniquilar' o mundo que vale como essencial, a assim chamada "efetividade"! Somente como criadores podemos aniquilar! -- Mas também não esqueçamos disto: basta criar novos nomes e estimativas e verossimilhanças para, a longo prazo, criar novas "coisas". [FW/GC, §58]
Nossa última gratidão para com a arte. -- Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado essa espécie de culto do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade, que agora nos é dada pela ciência -- a compreensão da ilusão e do erro como uma condição da existência que conhece e que sente --, não teria podido ser tolerada. A 'lealdade' teria o nojo e o suicídio por consequência. Mas agora nossa lealdade tem uma potência oposta, que nos ajuda a desviar tais consequências: a arte como a 'boa vontade' com a aparência. Nem sempre proibimos nosso olho de arredondar, de fingir até o fim: e então não é mais a eterna imperfeição que portamos sobre o rio do vir-a-ser -- então pensamos portar uma 'deusa' e somos orgulhosos e infantis nessa prestação de serviço. Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós, 'suportável' ainda, e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa consciência para, de nós próprios, 'podermos' fazer um tal fenômeno. Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo 'sobre' nós ou chorando 'sobre' nós: temos de descobrir o 'herói', assim como o 'parvo', que reside em nossa paixão do conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria! E precisamente porque nós, no último fundamento, somos homens pesados e sérios e somos mais pesos do que homens, nada nos faz mais bem do que a 'carapuça de pícaro': nós precisamos usá-la diante de nós próprios -- precisamos usar de toda a arte altiva, flutuante, dançante, zombeteira, pueril e bem-aventurada, para não perdermos aquela 'liberdade sobre as coisas' que nosso ideal exige de nós. Seria um 'atraso' para nós, precisamente com nossa excitável lealdade, cair inteiramente na moral e, por causa das exigências mais que rigorosas que fazemos a nós quanto a isso, tornar-nos ainda, nós próprios, monstros e espantalhos de virtude. Devemos 'poder' ficar também 'acima' da moral: e não somente ficar, com a amedrontada rigidez de alguém que a cada instante tem medo de escorregar e cair, mas também flutuar e brincar acima dela. Como poderíamos, para isso, prescindir da arte, como do parvo! -- E enquanto de algum modo ainda vos 'envergonhais' de vós próprios, ainda não fazeis parte de nós! [FW/GC, §107]
4. O livro III se abre com o famoso anúncio da morte de Deus. Formulado pela primeira vez no §108, ele será desenvolvido no §125 através da alegoria do "homem louco", antes de ser retomado, em 1887, no esclareceder §343 (livro V). Como sugerido nesses três parágrafos, a afirmação de que "Deus está morto" não significa que ninguém, na Europa do século XIX, acredita mais em Deus. Pelo contrário, a notícia da morte de Deus "não chegou ainda aos ouvidos dos homens" (§125) e as "so§mbras de Deus" continuam, talvez por muito tempo, a ser mostradas à humanidade (§108). Essas sombras podem ser comparadas à luz proveniente de um sol já extinto, que continua a chegar à Terra com um atraso devido à distância percorrida (§343). Nesse contexto, o conceito de Deus deve ser entendido num sentido amplo, não apenas como o fundamento da moral cristã, mas também como o princípio em que subjaz, implicitamente, toda a metafísica e a ciência ocidental. De fato, o §109 (livro III) mostra que a natureza foi, também ela, divinizada por meio de uma série de "sombras de Deus", tais como a própria noção de leis da natureza. Essa última vem ocultar a possibilidade de um mundo sem ordem, cujo caráter geral seria "por toda a eternidade, o caos". Assim se entende que a fórmula "Deus está morto" remete a um vasto processo de desvalorização dos nossos valores fundamentais: o "homem louco" o descreve como uma desaparição do horizonte, enquanto a edição de 1887 chamará de 'niilismo' a situação resultante, em particular no §346 (livro V). Em vez de abandonar-se a um niilismo passivo, o adepto da gaia ciência tem que desenvolver um niilismo ativo, ou seja, aprender a acolher com alegria e criatividade uma perda de referência na qual os espíritos menos livres veem somente um motivo de desesperança.
Guardemo-nos! -- Guardemo-nos de pensar que o mundo seja um ser vivo. Para onde se expandiria? De onde se alimentaria? Como poderia crescer e multiplicar-se? Sabemos aliás, mais ou menos, o que é o orgânico: e haveríamos de interpretar o indizivelmente derivado, tardio, raro, contingente, que é só o que percebemos sobre a crosta da Terra, como o essencial, o universal, o eterno, como fazem aqueles que denominam o todo um organismo? Isso me repugna. Guardemo-nos desde já de acreditar que o todo seja uma máquina; ele certamente não foi construído visando a um alvo, com a palavra "máquina" prestamos a ele uma honra alta demais. Guardemo-nos de pressupor algo tão perfeito em sua forma, como os movimentos cíclicos de nossas estrelas vizinhas, em geral e por toda parte; já um olhar à via-láctea faz emergir dúvidas, se não há ali movimentos muito mais rudimentares e contraditórios, e igualmente estrelas com eternas trajetórias cadentes em linha reta e coisas semelhantes. A ordem astral em que vivemos é uma exceção: essa ordem e a relativa dração que é condicionada por ela possibilitaram, por sua vez, a exceção das exceções: a formação do orgânico. O caráter geral do mundo é, ao contrário, por toda a eternidade, o caos, não no sentido da falta de necessidade, mas da falta de ordem, articulação, forma, beleza, sabedoria, ou como se chamem todos esses humanismos estéticos. Julgamos a partir de nossa razão, os lances de dado infelizes são, de longe, a regra, as exceções não são o alvo secreto, e o jogo inteiro repete eternamente sua toada, que jamais poderia chamar-se uma melodia -- e, por último, até mesmo a palavra "lance infeliz" já é uma humanização, que encerra, em si uma censura. Mas como poderíamos censurar ou louvar o todo! Guardemo-nos de lhe imputar falta de coração e irrazão ou seus contrários: ele não é perfeito, nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso, nem sequer se esforça no sentido de imitar o homem!
E nem é atingido por nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Também não tem um impulso de autoconservação nem em geral qualquer impulso; também não conhece nenhuma lei. Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há somente necessidades: nela não há ninguém que mande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida. Se sabeis que não há fins, sabeis também que não há acaso: pois somente ao lado de um mundo de fins a palavra "acaso" tem um sentido. Guardemo-nos de dizer que a morte é oposto à vida. O vivente é somente uma espécie de morto, e uma espécie muito rara. -- Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. Não há substâncias de duração eterna: a matéria é um erro tão grande qanto o deus dos eleatas. Mas quando chegaremos ao fim de nossa cautela e guarda? Quando todas essas sombras de Deus não nos toldarão mais? Quando teremos a natureza inteiramente desdivinizada? Quando nós homens, com a pura natureza, descoberta como nova, redimida como nova, poderemos começar a nos 'naturalizar'? [FW/GC, §109]
O que há com nossa serenidade. -- O maior dos acontecimentos recentes -- que 'Deus está morto', que a crença no Deus cristão caiu em descrédito -- já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Para os poucos, pelo menos, cujos olhos, cuja suspeita nos olhos é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida: para eles, nosso velho mundo há de aparecer dia a dia mias poente, mais desconfiado, mais alheio, mais "velho". Mas no principal pode-se dozer: o próprio acontecimento é grande demais, distante demais, demasiado à parte da capacidade de apreensão de muitos, para que sequer sua notícia pudesse já chamar-se chegada: sem falar que muitos já soubessem o que propriamente se deu com isso -- e tudo quanto, depois de solapada essa crença, tem agora de cair, porque estava edificado sobre ela, apoiado a ela, arraigado nela; por exemplo, toda a nossa moral europeia. Esse longo acúmulo e sequência de ruptura, destruição, declínio, subversão, que agora estão em vista: quem adivinharia hoje já o bastante deles, para ter de servir de mestre e prenunciador dessa descomunal lógica de pavores, de profeta de um ensombrecimento e eclipse do sol, tal que nunca, provavelmente, houve ainda igual sobre a terra? ... Mesmo nós, que nascemos decifradores de enigmas, que esperamos com que sobre as montanhas, postados entre hoje e amanhã e retesados na contradição entre hoje e amanhã, nós, primogênitos e prematuros do século vindouro, aos quais propriamente as sombras que em breve hão de envolver a Europa já deveriam estar em vista agora: de onde vem que mesmo nós encaramos sua vinda sem muito interesse por esse ensombrecimento, antes de tudo sem cuidado e medo por nós? Estamos ainda, talvez, demasiado sob as consequênciass mais próximas desse acontecimento -- e essas consequências mais próximas, suas consequências para nós, não são, ao inverso do que talvez se poderia esperar, nada triste e ensombrecedoras, mas antes são como uma nova espécie, difícil de descrever, de luz, felicidade, facilidade, serenidade, encorajamento, aurora... De fato, nós filósofos e "espíritos livres" sentimo-nos, à notícia de que "o velho Deus está morto", como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa -- eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto "mar aberto". [FW/GC, §343]
Nosso ponto de interrogação. -- (...) A inteira atitutde "homem contra mundo", o homem como "princípio negador do mundo", o homem, como medida de valor das coisas, como juiz de mundos, que por último ainda põe a existência mesma sobre sua balança e a acha leve demais -- o monstruoso mau gosto dessa atitude nos veio à consciência como tal, e nos ofende --, e já rimos quando encontramos "homem e mundo" colocados lado a lado, separados pela sublime pretensão da palavrinha "e"! Mas como? Será que justamente com isso, rindo, não damos simplesmente um passo adiante no desprezo pelo homem? E, portanto, também no pessimismo, no desprezo pela existência que nós podemos conhecer? Não caímos, justamente com isso, na suspeita de uma oposição, de uma oposição entre o mundo em que até agora nos sentíamos em casa com nossas venerações -- em virtude das quais, talvez, tolerávamos viver -- e um outro mundo, que somos nós próprios: uma inexorável, radical, profundíssima suspeita sobre nós mesmos, que se apodera de nós, europeus, cada vez mais, cada vez pior, e facilmente poderia colocar as gerações vindouras diante deste terrível ou-ou: "ou abolir vossas venerações, ou -- vós mesmos!" Este último serio o niilismo; mas o primeiro não seria também.. o niilismo? -- Esse é nosso ponto de interrogação. [FW/GC, §346]
5. Aprender a ver a necessidade das coisas como o belo é, justamente, a definição do 'amor fati' que Nietzsche dá no início do livro IV (§276). Essa expressão latina, que significa literalmente "amor ao destino", designa uma nova atitude frente à existência. Pois o 'amor fati' deve tomar por objeto todos os aspectos da realidade e todas as experiências da vida, conforme a epígrafe inicial de Emerson: Nietzsche quer se tornar "apenas alguém que diz Sim". Contudo, não se trata simplesmente de uma postura de resignação, pois, ainda segundo o §276, o 'amor fati' também permite 'tornar as coisas belas'. Ele participa, portanto, de uma gaia ciência ativa e transfiguradora. Na construção do livro IV, o 'amor fati' mantém uma relação direta com o pensamento do eterno retorno do mesmo, esse "mais pesado dos pesos" que é introduzido no §341, o penúltimo da edição de 1882. Com efeito, o §341 apresenta o eterno retorno do mesmo como um desafio existencial lançado por um demônio ao próprio leitor: será que ele pode aceitar a perspectiva de uma vida que se repetiria identicamente da sua vida no ponto de querer o seu eterno retorno? Nesse sentido, pode-se dizer que o eterno retorno do mesmo fornece um quadro de referência ao 'amor fati'. Ele se revela igualmente um instrumento de transformação ou até de metamorfose: tal pensamento, se o indivíduo conseguir incorporá-lo, "pesaria como o mais pesado dos pesos sobre [seu] agir". Mas Nietzsche não quer desenvolver essa ideia em A Gaia Ciência. O mestre do eterno retorno será Zaratustra: o parágrafo seguinte inicia a "tragédia" de Assim falava Zaratustra e conclui a primeira edição de A Gaia Ciência.
O mais pesados dos pesos. -- E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Essa vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma orde e sequência -- e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez -- e tu com ela, poeirinha da poeira! -- Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu ´s um deus, e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para não 'desejar' nada 'mais' do que essa última, eterna confirmação e chancela? -- -- [FW/GC, §341]
6. Parece surpreendente que Nietzsche tenha rompido retrospectivamente a transição natural entre o último parágrafo da A Gaia Ciência e o primeiro de Assim falou Zaratustra, ao acrescentar um quinto livro à Gaia Ciência. Talvez essa decisão denote uma vontade de modificar a perspectiva introdutiva, a fim de reapropriar-se, por assim dizer, de Assim falava Zaratustra (que sempre constituiu uma obra axiologicamente capital aos olhos de Nietzsche). O subtítulo do quinto livro, "Nós, os sem-medo", parece anunciar uma reinterpretação da figura do filósofo-espírito livre na qual o autor se reconhece. A esse respeito, pode-se interpretar como um ponto de divergência entre as duas edições o estatuto da "paixão pelo conhecimento" do filósofo. Esse conceito de 'Leidenschaft der Erkentnis', característico do início da década de 1880, implicava, em 1882, uma concepção de vida como experimentação do homem de conhecimento e até como meio de conhecimento, conforme o §324 (livro IV). Em 1887, Nietzsche desenvolve uma crítica genealógica muito mais radical da "vontade de verdade": "isso poderia ser uma velada vontade de morte", diz ele no §344 (livro IV). De fato, o §344 mostra que a verdade foi divinizada por razões essencialmente morais, que devem, doravante, ser colocadas em questão. À luz desse exemplo importante, pode-se observar que a gaia ciência se inscreve, em 1887, num projeto axiológico de maior envergadura. Ela vem a designar o estado de espírito de um filósofo que empreende uma 'transvaloração de todos os valores', ou seja, que pretende substituir "tudo o que até agora se chamou sagrado" por um novo ideal, conforme o importante §382 (livro V).
Em que medida nós também somos devotos ainda. -- Na ciência as convicções não têm nenhum direito de cidadania, assim se diz com bom fundamento: somente quando elas se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório de ensaio, de uma ficção regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimento -- sempre com a restrição de permanecerem sob vigilância policial, sob a polícia da desconfiança. -- Mas isso, visto com mais precisão, não quer dizer: somente quando a convicção deixa de ser convicção, ela pode ter acesso à ciência? A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções? ... Assim é, provavelmente: só resta perguntar se, para essa disciplina poder começar, já não tem de haver uma convicção, e aliás tão imperiosa e incondicional, que sacrifica a si mesma todas as outras convicções? Vê-se que também a ciência repousa sobre uma crença, não há nenhuma ciência "sem pressupostos". A questão, se é preciso verdade, não só já tem de estar de antemão respondida afirmativamente, mas afirmada em tal grau que nela alcança a expressão esta proposição, esta crença, esta convicção: "Nada é mais necessário do que a verdade, e em proporção a ela todo o resto só tem um valor de segunda ordem". -- Essa incondicionada vontade de verdade: o que é ela? É a vontade de não se deixar enganar?
É a vontade de não enganar? Pois também desta última maneira poderia ser interpretada a vontade de verdade: pressuposto que sob a generalização "eu não quero enganar" esteja incluído também o caso particular "eu não quer me enganar". Mas por que não enganar? Mas por que não se deixar enganar? -- Note-se que os fundamentos do primeiro caso ficam em um domínio totalmente outro do que os do segundo caso: não se quer deixar-se enganar, sob a hipótese de que é pernicioso, perigoso, fatal ser enganado -- nesse sentido, ciência seria uma longa prudência, uma cautela, uma utilidade, contra a qual, porém, se poderia, com justiça, objetar: como? o não-querer-se-deixar enganar é efetivamente menos pernicioso, menos perigoso, menos fatal? O que sabeis de antemão do caráter da existência, para poder decidir se a maior vantagem está do lado do desconfiado incondicional ou do confiante incondicional? Mas, caso ambas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde então poderia a ciência tirar sua crença incondionada, e sua convicção, que repousa sobre ela, de que verdade é mais importante do que qualquer outra coisa, do que qualquer outra convicção? Justamente essa convicção não poderia ter surgido, se verdade e inverdade se mostrassem ambas constantemente como úteis: como é o caso. Portanto -- a crença na ciência, que agora está aí incontestavelmente, não pode ter tirado sua origem de um tal cálculo utilitário, mas, antes, a despeito de lhe ter sido constantemente demonstrada a inutilidade e periculosidade da "vontade de verdade", da "verdade a todo preço". "A todo preço"; oh, nós o entendemos bastante bem, depois que oferecemos e trucidamos uma crença depois da outra sobre esse altar! --
Consequentemente, "vontade de verdade" não quer dizer "eu não quero me deixar enganar", mas sim -- não há nenhuma escolha -- "eu não quero enganar, nem sequer a mim mesmo"; -- e com isso estamos no terreno da moral. Pois basta perguntar-se fundamentalmente: "Por que não queres enganar?", especialmente se houvesse aparência -- e há essa aparência -- de que a vida depende de aparência, quero dizer, de erro, impostura, disfarce, cegamento, autocegamento, e se, por outro lado, a grande forma da vida sempre se tivesse mostrado, de fato, do lado do mais inescrupuloso 'polytropoi'. Um tal propósito poderia, talvez, interpretando brandamente, ser um quixotismo, um pequeno desatino entusiasta; mas poderia também ser algo ainda pior, ou seja, um princípio destrutivo, hostil à vida... "Vontade de verdade" -- isso poderia ser uma velada vontade de morte. -- Dessa forma a questão: por que ciência? reconduz ao problema moral: para que em geral moral, se vida, natureza, história, são "imorais"? Sem dúvida nenhuma, o verídico, naquele sentido temerário e útlimo, como o pressupõe a crença na ciência, afirma com isso um outro mundo do que o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse "outro mundo", como? não precisa, justamente com isso, de... negar seu reverso, este mundo, o nosso mundo? ... No entanto, já se terá compreendido aonde quero chegar, ou seja, que é sempre ainda sobre uma crença metafísica que repousa nossa crença na ciência -- que também nós, conhecedores de hoje, nós os sem Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós o tiramos ainda da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina...
Mas, e se precisamente isso se torna cada vez mais desacreditado, se nada mais se demonstrar como divino, que não seja o erro, a cegueira, a mentira -- se Deus mesmo se demonstrar como nossa mais longa mentira? [FW/GC, §344]
A grande saúde. -- Nós, os novos, os sem-nome, os dificeis de entender, nós, os nascidos cedo de um futuro ainda indemonstrado -- nós precisamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerária, mais alegre, do que todas as saúdes que houve até agora. Aquele cuja alma tem de viver o âmbito interio dos valores e anseios que prevaleceram até agora e de circunavegar todas as costas desse "mar mediterrâneo" ideal, aquele que quer saber, pelas aventuras de sua experiência mais própria, o que se passa na alma de um conquistador e explorador do ideal, assim como de um artista, de um santo, de um legislador, de um sábio, de um erudito, de um devoto, de um adivinho, de um apóstata no velho estilo: este precisa, para isso, primeiro que tudo, de uma coisa, da grande saúde -- de uma saúde tal, que não somente se tem, mas que também constantemente se conquista ainda, e se tem de conquistar, porque sempre se abre não dela outra vez, e se tem de abrir mão! ... E agora, depois de por muito tempo estarmos a caminho dessa forma, nós, argonautas do ideal, mais corajosos talvez do que prudentes, e muitas vezes naufragados e danificados, mas, como foi dito, mais sadios do que gostariam de nos permitir, perigosamente sadios, sempre sadios outra vez -- quer-nos parecer que, em recompensa por isso, temos diante de nós uma terra ainda inexplorada, cujos limites ninguém mediu ainda, um além de todas as terras e rincões do ideal conhecidos até agora, um mundo tão abundante em coisas belas, estranhas, problemáticas, terríveis e divinas, que nossa curiosidade, assim como nossa sede de posse, ficam fora de si -- aí, que doravante nada mais nos pode saciar! Como poderíamos, depois de ver tais paisagens, e com uma tal voracidade na consciência e na ciência, contentar-nos com o homem do presente? É pena: mas é inevitável que consideremos seus mais dignos alvos e esperanças apenas com uma seriedade mal mantida, e talvez nem sequer os consideremos mais. Um novo ideal corre à nossa frente, um ideal estranho, tentador, rico de perigos, ao qual não gostaríamos de persuadir ninguém, porque a ninguém concederíamos tão facilmente o direito a ele: o ideal de um espírito que joga ingenuamente, isto é, sem querer e por transbordante plenitude e potencialidade, com tudo o que até agora se chamou sagrado, bom, intocável, divino; para o qual o mais alto, em que o povo encontra legitimamente sua medida de valor, já significaria perigo, declínio, rebaixamento ou, no mínimo, dscaso, cegueira, esquecimento temporário de si; o ideal de um bem-estar e bem-querer humano-sobre-humano, que muitas vezes parecerá inumano, quando, por exemplo, se põe ao lado de toda seriedade terrestre até agora, al lado de toda espécie de solenidade em gesto, palavra, tom, olhar, moral e tarefa, como sua mais corporal, sua involuntária paródia -- e com o qual é posto o verdadeiro ponto de interrogação, o destino da alma muda de rumo, a tragédia começa... [FW/GC, §382]
Referências:
MARTON, Scarlett [ed. resp.] Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia Ciência. In: Obras Incompletas. Seleção de textos Gérard Lebrun; Tradução e notas Rubens Rodrigues Torres Filho; Apêndice Antônio Cândido de Mello e Souza; Introdução (pesquisa) Olgária Chaim Ferez; consultor da introdução Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
___________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. 2. ed. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
___________. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
SALANSKIS, Emmanuel. Nietzsche. Paris: Les Belles Lettres, 2015, capítulo 2.