Navegando pela fala

Por Lenilson Xavier | 22/07/2016 | Literatura

Será que os habitantes de nosso líquido mundo moderno... preocupados com uma coisa e falando de outra? Eles garantem que seu desejo, paixão, objetivo ou sonho é “relacionar-se”. Mas será que na verdade não estão preocupados principalmente em evitar que suas relações acabem congeladas e coaguladas? Estão mesmo procurando relacionamentos duradouros, como dizem, ou seu maior desejo é que eles sejam leves e frouxos, de tal modo que, como as riquezas de Richard Baxter, que “cairiam sobre os ombros como um manto leve”, possam “ser postos de lado a qualquer momento. (Bauman, 2004).

 

 

 

Texto e hipertexto

 

Um texto é uma relação entre fios de subjetividade e de objetividade. Um texto é por isto feito de textos que o precedem e que o sucedem. Este preceder e suceder e  a circulação em diferentes esferas de atividade redefinem o texto, no papel ou na palavra  dada com renovações de seus suportes físicos e digitais que combinam com uma hiperedição culminando no hipertexto. O hipertexto e a hipermídia na cultura digital mudam nossa forma de ler, ouvir, falar e escrever. Nossos olhos já não estão presos à lógica linear de começo, meio e fim. Numa palavra pode estar o link para outros textos em outras linguagens que nos levarão para novas descobertas. Nossa compreensão e produção textuais agora são multissequenciais e multilineares o que confere aos textos uma polissemia mais vigorosa, mais vertiginosa.

 

A tecnologia está reconfigurando nossa forma de falar. Os sentidos de nossas falas continuam sendo construídos por interação e imersão social. Mas agora entra em cena a dispersão e a disseminação por contextos flutuantes e velozes em hibridismos. Conversamos como que navegamos pelo intertexto. Uma palavra, uma ilustração, um som, um vídeo nos recolocam em outras páginas com temas em trânsito que seduzem nossos interesses. É como se a digressão em vez de ancoramentos momentâneos em outras águas se convertesse em motores de sentido no texto falado. Falamos navegando em superfícies repletas de icebergs. Evitamos o choque e o atrito que nos reduzem a velocidade, que nos desaceleram. Os atritos podem nos afundar, e as profundidades não tem lugar no mundo contemporâneo. A profundidade revela a complexidade. Saltamos de superfície para superfície  para  evitar  o  emaranhado  que  nos  prende  o  tempo  e  o  espaço.  Fluxo.

 

Superficialmente, a fala é um desfrute de fluxo enquanto modalidade de linguagem ininterrupto inter-intrapessoal. Hipertextualizamos nossa fala, que harmoniza dispersão e conexão aos diversos centros de interesse, que para se constituírem tais quais precisam ser muitos, cambiáveis, ocos para serem preenchidos e rasos para conversar com outras superfícies. Nossa fala nos leva, como o hipertexto para a hipermídia, aos comportamentos flutuantes que podem ficar em nuvens, podem ser publicados como rotinas, ou ainda numa atmosfera fluídica serem deletados do encontro dialógico entre fala e comportamento. A dispersão em si inevitavelmente será deposta de sintoma de déficit de atenção ou de hiperatividade, para congregar com a disseminação a cultura de redes no ato da fala. As falas estão cheias de nós que são destinos e percursos, entrelaçadas com outras oralidades situadas por uma estabilidade enraizada nas conexões. Se navegamos pelas falas, também podemos naufragar.

 

Hoje, o sentido de um texto oral ou escrito é intermitente, dessituado de um padrão do falante/autor de um escutante/leitor e é, construção da língua viva e por isto, nesta concepção, guiada pelo tetragrama organizacional de Morin (2015): ordem, desordem, interação e reorganização. Lembrando que hipertextualidade e seu percurso que pode ser aleatório, disfuncional e problematizador da construção de sentidos nos faz rever  a fala como o entrelaçamento e desentrelaçamento de realidades quebrando a naturalização da interpretação como sequência da escuta e de outras leituras. A fala está nos comportamentos que estão nas falas. Clicamos com entoações, hesitações, os nós reais e virtuais de nossos dizeres, de nossa fala desdobrando em diversos gestos, posturas, comportamentos. Geramos, pois, no ato da fala, com o ato da fala a ordem e a desordem, a interação e a reorganização dos discursos (fios objetivos cruzados aos fios subjetivos do texto oral).

 

O modo de falar e de escutar na contemporaneidade tende a ser uma confluência da tecnologia digital e dos novos modelos de relacionamento que se desencadeiam a partir dos avanços desta tecnologia. O hiperindividualismo derivado de um ideal de autonomia (Rojo & Barbosa, 2015) é a marca da fala neste início de século ao mesmo tempo em que paradoxalmente é instaurada uma crescente cultura de redes sociais. Também nosso ler e escrever tornam-se cada vez mais sintéticos e acompanham as variações temáticas que assumem mais o caráter de informação do que de conhecimento. A fala segue ou dita esse regramento em muitas esferas de atividades de sua predominância. Nossa percepção é ensinada, acomodada aos conceitos e imagens e suas combinações produtoras de sínteses que agilizam o processamento da fala. Nessa modelização podemos dizer que há a pessoa conceito e a pessoa imagem

 

Pessoa conceito

 

Nada resume mais uma coisa do que o conceito que temos dela. O conceito forma um quadro no pensamento, uma definição que se cristaliza como referência no  léxico mental, que insere na palavra, no nome da coisa ou da pessoa um discurso pronto sobre a mesma. É algo como: pensou já sabe, já conhece. Portanto, este modelo de texto é socializado na fala com a função de sumarizar o conhecimento que temos das coisas e das pessoas. É a pessoa conceito. Uma das ilusões da linguagem para se concretizar nas instâncias onde se pede agilidade. Uma agilidade que por sua vez, expressa ilusoriamente a qualidade de rapidez de pensamento, de raciocínio. A rapidez é o desejo. E o desejo é uma busca por satisfação. Deste modo, podemos pensar tão rápido que nem parece que estamos pensando. De fato, o pensamento está pronto. Pensar é apenas captá-lo em falas. O que nos satisfaz é a ausência de truncamentos na passagem do mental para o social, do interior para o exterior.

 

A pessoa conceito é a ideia formada em discurso sobre pessoas que convivemos ou que de alguma maneira entram nas nossas esferas de atividades e ficam registradas pela superfície bidimensional: nome e imagem. Depois do registro qualquer movimento da memória pode reproduzir o discurso numa única palavra, geralmente o nome da pessoa, ou da coisa que fora a situação de nossa fala. Portanto, fica descrito que a pessoa conceito não é o conceito de pessoa, mas um discurso sim, que utiliza a conceitualização para sumarizar os referentes na fala. Estabelece-se a relação tema-tema, e a relação tema-rema, quando a pessoa conceito tem suas informações atualizadas. Depois, para conferir a naturalização da fala no falante, estas relações são praticadas cotidianamente conforme a variedade de situações e contextos em que o falante circula.

 

Pessoa imagem

 

Emprestando da teoria saussuriana (2006), temos o complemento da pessoa conceito: a pessoa imagem. Esta categoria é criada por associação física e mental do conceito e sua representatividade. Na imagem concentra o símbolo que carrega para  compor um signo, sua mensagem, sua motivação semântica. Aqui a pessoa incorpora a imagem que projeta de si sobre os outros dialeticamente com a imagem que os outros projetam dela. A pessoa imagem é mais que aparência. Forma-se a partir da conceitualização que ocorre nas trocas de leituras que se tem de si e do outro.

 

É o discurso que dará as cores e a tonalidade da imagem. Por isso que a ideia que fazemos sobre uma pessoa, evocando os seus valores afins ou contrários entra na formação de sua imagem por meio do conceito e seu arco reflexo: vejo o que sei, sei o que vejo. E é claro nesse momento, que muito de nossa visão de mundo é nossa própria "imagem e semelhança". Logo, sabemos que o conceito e a imagem são indissociáveis como todas as dicotomias saussurianas e não podem ser isoladas à título de ciência como língua e fala (langue e parole) porque são complementares na infusão das múltiplas formas de texto.

 

O fluxo e a fixação da fala e do falado

 

A linguagem se liquefaz constituindo a sociedade líquida e sendo constituída por ela. A corrente da comunicação humana está acelerada e cheia de sentidos breves e descartáveis. O que falamos entra no fluxo da troca, da interlocução aberta à  impermanência e à instabilidade que marca nossa época. Muitos de nossos discursos se perdem a deriva na polissemia levados pelos valores que agora não se ancoram  moralmente pelo peso da palavra. A palavra no mundo contemporâneo é uma ação coordenada pela inconsciência provocada pela rapidez de como os sentidos são construídos e desconstruídos. Esse deslocamento da fala vai deixando para trás a compreensão que é feita do sincronismo entre sentido, verdade e certeza. O sentido já não abre a página da verdade, que quando clicada abria a página da certeza. A atenção dura pouco em assuntos profundos. Não temos o fôlego de antigamente para uma contemplação filosófica do que dizemos e do que nos é dito. O falado está fixo no passado e não volta como a memória necessária. Estamos apressados em nossa textualidade oral.

 

Assim como na leitura de um texto escrito, falar apressadamente compromete nossa compreensão e entendimento da realidade. A realidade é uma interpretação e mais além é o hiato entre autorias que mudam de lugar com o tempo. Essa autoria é o recurso de nos inserirmos no fluxo e na fixação da fala. O que retemos é essencial ao que liberamos em nossa expressão. A analogia da navegação no ciberespaço remete-nos ao processamento dos avanços e retornos possíveis para a construção dos sentidos: toda escrita pode ser reescrita. Toda leitura pode ser releitura. O que é enunciado pode gerar novas enunciações ou se desdobrar em hibridismos tão distintos quanto os inumeráveis gêneros em que se manifestam. Os links, as conexões de que somos capazes como seres de linguagem nascem no momento em todos os fluxos se cruzam, atritam-se ou se harmonizam em redes de capacitação para a vida do texto. O texto já não está mais fixo em oralidade e escrita.  Não é mais de um só enunciador-autor.

 

Assume o dinamismo da liberdade fragmentária, colaborativa e complementar. Daí que se manifesta a nossa babel, o excesso de falas e a carência de seus sentidos. A fala é a falta.

 

Para onde vai a nossa fala?

 

Para qual ilha, para qual continente feito de terra, virtualidade, de órbitas interestelares? Como a tecnologia, sobre tudo as de comunicação, afetam nossa fala e o trânsito de suas mensagens? Este artigo é o levantamento de uma hipótese: a hipertextualização da fala. O que pressupõe uma navegação. Esse navegar impreciso, mas necessário como ato criador do próprio ser humano se faz de transculturalidade. Desde os primórdios a cada avanço tecnológico a evolução humana é impactada. A modernidade foi a concentração desses avanços. Quando essa concentração se dissolveu na liquidez da nova sociedade que esses avanços definiram, surgiu a pós-modernidade, ou como muitos estudiosos preferem a hipermodernidade. Destarte, a nossa navegação pela fala fica à mercê da natureza contemporânea e própria do ser humano.

 

A fala nos vem em ondas com ápices de sentidos breves. A fala entra no consumo,  o uso do sentido para fins que obedecem a ordem neoliberal e mais serve como retirada, saque de e do sentido existencialista de estabelecer relações de verdade, da verdade, de certeza e da certeza. A internet, de alguma forma está sendo internalizando no ser humano como uma matriz de linguagens e comportamentos fazendo emergir uma consciência líquida, maleável às reconfigurações e atualizações cada vez mais velozes. Se o nosso tempo confere a urgência dos multiletramentos, como a fala acompanha essa urgência?

 

Fica um convite para refletirmos sobre a fragilidade da fala humana bem como em sua flutuação dentro da variação linguística. A vida útil de nossa fala, de nosso pensamento, encurta-se, redefine-se e adquire desproporções atuais que se impõem nas dimensões singulares de nosso ser, que juntas formarão o coletivo cultural ao qual chamamos ainda, de sociedade.

 

 

 

Referências:

BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.

ROJO, Roxane; BARBOSA, Jacqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

 

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. Tradução Antônio Chelini, José Paulo Paes, Isidoro Blikstein. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

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