Nascimento do Destino - Primeiro Capítulo
Por Mário Constantino | 18/05/2009 | Contos26 de Março de 1845. Um grupo de soldados cercava uma casa sob o comando de John Ritchey, o Comandante. Ao sinal, todos rodearam a casa procurando saídas por onde os futuros prisioneiros pudessem escapar.
- Senhor, já temos a casa devidamente cercada, incluindo portas das traseiras, e entradas para a cave. – declarou o general, ocupando ele próprio o seu posto na porta da frente.
- Com certeza, general. Sugiro-lhe que prepare os seus homens para o confronto. Este homem já se revelou mais duro do que alguma vez poderíamos imaginar. Os últimos dois soldados que ele enviou para a enfermaria confirmarão tal facto. – preveniu-o John.
- Com certeza, Senhor Comandante! – respondeu prontamente o general.
A casa estava envolta num jardim muito bem decorado, com rosas e malmequeres nas extremidades. Por baixo do alpendre, podia distinguir-se um banco de jardim em madeira, provavelmente feito pelo próprio Gorem, o dono da casa.
John trabalhava para uma organização do reino, chamada Vicis Specialis. Os propósitos dessa organização eram-lhe indiferentes, mas as suas missões – nas quais John participava na sua grande maioria – eram no mínimo estranhas e arrepiantes, nas quais se incluíam, por exemplo, executar a ordem de prisão emitida a várias pessoas sem qualquer crime cometido por estas.
O posto avançado em que John se encontrava, permitia-lhe saber qual a razão pelo qual se faziam tais raptos, ao contrário de outros soldados em postos mais baixos. A razão pelo qual faziam sofrer tantos homens e mulheres era que essas criaturas pertenciam a uma classe que era sinônimo de evolução entre a raça humana, e que portanto era temida. Tais humanos eram chamados de Vicis Viators, e eram raptados para poderem ser estudados.
Infelizmente, os métodos de estudo da Vicis Specialis incluíam a tortura, que muitas vezes levava à loucura, e mesmo à morte dos prisioneiros. A maneira de reconhecer um Vicis Viator era bastante peculiar: ao seu nascimento, uma luz aparecia envolvendo o seu braço esquerdo. Tal destino era muito raro, e altamente indesejado por qualquer família pois qualquer pai saberia qual o destino do seu filho a partir dai.
John fez sinal, e os guardas avançaram, derrubando a porta. Ao se desprender das dobradiças, a porta caiu para dentro, provocando um estrondo e uma nuvem de pó maciça. Os soldados avançaram rapidamente, empunhando as espadas para o caso de Gorem estar armado e tentar resistir.
Por dentro, a casa era simples, com uma única divisão, uma mesa ao centro, e uma cama com respectiva cabeceira e armários ao canto direito. O bebé estava ao lado da cama, deitado num berço, com a sua mãe por perto. A mulher olhou surpreendida com tal aparato, e lançou um grito agudo abraçando o filho num abraço tão profundo que só uma mãe poderia dar.
Repentinamente, Gorem saltou detrás do armário gritando como louco, e empunhando uma pequena adaga no pulso. Foi tão rápido que conseguiu surpreender o soldado que estava à frente, apunhalando-o no pescoço e matando-o. Avançou para o segundo, fazendo um movimento em espiral com a adaga e só parou quando John lhe colocou a espada na garganta, impedindo-o por milímetros de causar a segunda baixa nos soldados.
- Entrega o teu filho, e tudo correrá para bem para a tua família. Caso contrário, levaremos o menino na mesma, e todos os teus familiares serão enforcados sob acusação de desobediência a uma autoridade.
- Nunca! – gritou Gorem. E avançou com a adaga ao longo da espada de John. John cortou o golpe com um movimento rápido da espada. Ouviu-se um barulho de lâmina a rasgar carne, e a ponta de uma espada trespassou as costas de Gorem até o perfurar completamente. O homem olhou para a sua família aterrorizada, o seu último olhar, e sorriu. Caiu sobre o seu sorriso e assim morreu.
John procurou pelo responsável de tal barbaridade. O general tinha a espada ainda em riste, como se Gorem ainda estivesse espetado nela. Do seu gume, pingava sangue.
- Queira explicar-se general. Porque razão atacou este homem? – A pergunta levava tanta raiva no seu tom que o general deu três passos aterrorizados.
- Ele estava a atacá-lo, Senhor, e pensei que… - balbuciou o homem
- Serei eu por acaso indefeso?
- Não, senhor, não era isso que eu…
- Silêncio! – trovejou John – você não é digno de tirar a vida a um homem que apenas queria defender a sua família e a sua honra. Nada! E eu repito, nada, lhe dá o direito de matar este homem nestas condições com a família aqui presente.
- Sim, senhor. Lamento muito, senhor. – disse o general atrapalhado.
- Apresente-se na esquadra amanhã. Garanto-lhe que haverá consequências.
- Com certeza, senhor. Licença. – despediu-se o homem correndo para a porta e desaparecendo.
A mulher estava já ajoelhada junto do marido, chorando grossas lágrimas dos seus olhos castanhos. Tinha o filho envolto nos seus braços. John não sabia o que fazer, e amaldiçoou toda a sua situação, o seu emprego, e mesmo a sua vida.
- Façam o que quiserem – disse saindo da casa e afastando-se.
Caminhou durante algumas horas pensando no que tinha acontecido. Que direito tinha alguém de tirar um filho aos pais? Todas as suas missões anteriores tinham sido com o objectivo de capturar adultos. Nunca lhe tinha sido dada como missão capturar uma criança. Sentia-se enjoado em saber que a tinha aceitado.
E aquele homem, tão determinado em defender a sua família, morreu por eles. “Amanhã, falarei com o supremo-comandante. Vou pedir-lhe para me retirar. Não quero continuar mais neste trabalho. Nunca mais empunharei uma espada para fazer um trabalho tão sujo como este. Raptar uma criança… que fui eu fazer?”
Dirigiu-se para a taberna do Smith, onde se sentou e começou a beber para esquecer. Recordou a sua própria família. “Que faria eu para defender a minha família? Matava todas as ameaças, sem a menor piedade. Limparia o sangue de todos os invasores. E foi exactamente isso que Gorem tentou fazer. Sinto-me tão mal…”
A esposa de John, Christina, carregava na barriga, acerca de 8 meses e meio, o seu segundo filho. Sarah tinha sido a primeira, e os pais acharam por bem dar-lhe um irmão, para que não se sentisse sozinha.
A criança iria chamar-se Adam no caso de ser um rapaz, e Sophia caso nascesse rapariga. Christina ignorava por completo qual o verdadeiro trabalho de John. O simples facto de a mulher descobrir, levava John a temer pelo seu casamento. Era simplesmente duro de mais para Christina saber que o pai do seu futuro filho tinha como oficio entregar pessoas a uma organização que os explorava até à loucura, ou mesmo até à morte. “É inconcebível a ideia de alguma vez lhe contar esta passagem da minha vida. Iria deitar tudo abaixo.”
John acabou o seu copo, e dirigiu-se à saída da taberna decorada com pipas e barris. Ao sair, esbarrou em qualquer coisa pequena, mas forte, que quase o deitou ao chão. Ao olhar para baixo, deparou-se com uma mulher morena, de olhos castanhos, e bastante anafada.
- Olá Amanda. Que te traz por aqui? Não vi cá o teu marido… - disse John espreitando para dentro da taberna, para se certificar do que disse. A taberna lembrava-lhe a casa onde estivera, pela sua calmaria àquela hora.
- Olá, senhor. Não, na verdade, era do senhor que eu estava à procura. Mandaram-me procurar no seu escritório, e até já fui a todas as tabernas, mas nada! - respondeu Amanda em tom urgente.
- Mas que se passa mulher? Porque estás tão aflita? Não me digas que o teu marido ficou com os copos e voltou a desaparecer?! Da última vez, ele estava a tentar ensinar um poste a atravessar uma rua, sabes… - disse John em tom de brincadeira.
-Não, senhor. Não é isso… embora não saiba onde ele está agora, por acaso… – tartamudeou Amanda meio envergonhada – eu vim para lhe dizer que o seu filho está prestes a nascer… a sua mulher Christina entrou à pouco tempo em trabalho de parto. A criança vem mesmo ai!
- Então do que estamos à espera? Vamos! Ela está em nossa casa, certo? – Perguntou John, sentindo uma pontada de dor no coração ao tentar adivinhar o destino da criança que acabara de condenar à uma hora.
- Certo.
E começou a andar muito apressada com John quase a correr atrás dela. Apesar de ser baixinha e de postura forte, Amanda era uma pessoa extremamente rápida quando a situação o exigia.
Quando chegaram, havia um amontoado de pessoas à porta, que esperavam por notícias da criança nascida.
- Com licença, deixem passar! Acho que tenho o direito de ver o meu segundo filho nascer, uma vez que não vi a primeira – ia dizendo ao desviar as pessoas do caminho para entrar na casa.
Ao entrar na sala, deparou-se com a Christina deitada dentro do banheiro de pedra. Os seus gritos ecoavam por toda a casa. Sem razão aparente, as mulheres que lhe seguravam as mãos eram as únicas a gritar incitando-a a forçar o bebé.
Sarah estava no seu berço, e complementava o concerto de sons agudos. Uma mulher que agarrava na mão de Christina repetia constantemente:
- Vá lá querida… só faltam os pés… só mais uma v… - e voltava a gritar tanto como Christina, que se esforçava por meter o bebe fora.
Em segundos, o ar encheu-se de guinchos e choros de mais uma criança. Era um menino. Estava tal como qualquer recém-nascido: a chorar e a fazer caretas.
- Já está! Já nasceu! É um menino! E vem perfeitinho! VIVA! – gritou Amanda, que tinha passado despercebida dentro da sala, pela sua reduzida altura.
- Hoje, todos beberão um copo na taberna do Smith e deixem em meu nome! O meu filho Adam nasceu, e vem fazer casal com a Sarah! Sejam felizes! Logo à noite faremos um baile em honra da minha mulher e dos meus filhos. Espalhem a palavra, estão todos convidados! – exclamou em plena felicidade – Agora, por favor, deixem-nos a sós. – acrescentou em tom mais calmo.
Aquelas últimas palavras tinham surpreendido todos na sua felicidade, e foi com alguma surpresa espelhada no rosto que, um por um, saíram da casa. Após ficarem a sós, John foi fechar a porta. Voltou-se para a mulher e esperou até ela se mover lentamente para o sofá. Estava claramente de rastos.
- Óptimo trabalho amor. Deste-me tudo aquilo que podia desejar.
Christina sorriu-lhe e, de seguida, adormeceu ali mesmo sem forças para falar. Era um sentimento incrivelmente bom ser pai de duas crianças tão lindas e perfeitas. Era como se o seu mundo tivesse sido complementado com o que faltava. John observava Adam quando, de repente, uma luz se acendeu no seu braço esquerdo. Sarah parou de chorar. A luz envolvia o braço esquerdo do menino, tal como uma braçadeira. Aproximou-se mais para observar. O menino parecia nem sequer ter reparado e continuava a berrar a plenos pulmões. A luz começou a desaparecer, mas, à medida que desaparecia, deixava uma pequena cicatriz em forma de setas cruzadas. “Não pode ser”, pensava John. “O meu filho não… simplesmente é impossível. O meu filho não pode ser um Vicis Viator, não pode.”
Pensou durante as longas horas em que Christina e as crianças se mantinham a dormir. “Mas, se ele é de facto um Vicis Viator, o que será aquela marca deixada pela luz?”
Tinha agora uma decisão pela frente: ou entregava o seu filho nas mãos daqueles para quem trabalhava, ou o escondia para sempre e arriscava a vida da sua família inteira. As leis da Vicis Specialis eram muito restritas e claras: quem esconde um Vicis Viator, condena a sua família à morte por enforcamento. Famílias inteiras já tinham sido dizimadas devido ao desrespeito das regras por parte dos membros da organização. “E agora? O que fazer? Condeno o meu filho, ou condeno a minha família?”