Nas Entrelinhas da Proteção
Por Isabel Ruiz | 25/06/2009 | Sociedade
Somos, a todo instante, bombardeados com notícias sobre a violência generalizada. Diante desse quadro é comum ouvir alguém perguntar o porquê de tanta agressividade e foi esse questionamento, entre outras coisas, que nos incentivou a procurar nas leis e na vivência uma resposta que mais satisfizesse nossa necessidade de entendimento.
Antigamente violência era coisa de adulto, homem, pobre, marginalizado pela sociedade... depois a responsabilidade pela agressividade passou a ser das drogas – lícitas e ilícitas. Hoje em dia não há mais um perfil pré-estabelecido. “Filhinhos de papai”, entediados, ateiam fogo em índios e mendigos, espancam mulheres indefesas e homossexuais. Agora, não há mais distinção, o estigma não pertence mais ao pobre, não é só ele que mata ou rouba por falta de oportunidades, qualquer um pode fazer isso sem necessidade de um grande motivo. Não é somente a fome, a miséria, a droga. É, também, a neurose do trânsito, é a alegria do time que venceu e a tristeza do que perdeu. Não apenas os adultos matam, criança também rouba carros, mata, assusta, aterroriza.
Nos áureos tempos de nossos pais e avós a coisa era mais controlada. Criança respeitava os adultos, qualquer adulto, não os interrompia nem contradizia. Pedia licença e sabia agradecer. Criança brincava! Subia em árvore, soltava pipa, jogava bola, brincava de casinha, de boneca, de peteca, de esconde-esconde e de roda. As únicas “maldades” que praticavam era amarrar sinos no rabo do gato, dar nó nas mangas da blusa da irmã, puxar as tranças da coleguinha de escola.
Quando adolescentes, flertavam, paqueravam e, mesmo tímidos, sabiam conversar com suas eleitas(os) - não precisavam de MSN, Orkut e outros meios. Namoravam de mãos dadas, caminhavam no parque. Beijavam por amor e o primeiro beijo se tornava inesquecível. O sexo como tabu era algo ruim, carregado de preconceitos e falta de informações, mas o exagero de hoje também não é saudável: as meninas engravidam cedo, se dão cedo demais, continuam desinformadas a respeito do sexo sadio e responsável. Para os meninos o importante é saber quem ficou mais, quem beijou mais e quem “comeu” mais.
Pode parecer pieguice, mas em outras épocas os pais sempre sabiam onde seus filhos estavam e o que estavam fazendo. As crianças eram contidas em limites que lhes norteavam os passos. Os jovens sabiam de suas responsabilidades e não tinham tanta dificuldade em seguir regras.
Havia violência? Sim, claro. Ela existe desde que existe o mundo. O homem extrapola e sempre haverá alguém exagerando na dose.
Por causa disso muitas crianças e jovens sofreram com a agressividade exacerbada do adulto. Por causa disso as leis precisaram ser revistas.
Lendo o estatuto da criança e do adolescente vimos, com alívio, seus direitos serem protegidos; as leis são claras e ampara aqueles que são o futuro da nação. Hoje a criança e o adolescente que se sentir ameaçado poderá denunciar seus agressores. Não há como negar o avanço de nossa legislação.
Mas uma dúvida insiste em permanecer: com todos os direitos assegurados o que dizer quanto aos deveres?
Por que essa crença de que crianças e adolescentes não precisam de deveres? Pode-se observar esse fenômeno em âmbito geral.
Segundo o Estatuto a criança não pode trabalhar. Concordamos, plenamente! Mas a menina a partir dos dez anos não pode ajudar a mãe nas tarefas domésticas? Aquelas mais simples como enxugar uma louça, arrumar o seu quarto... Um menino de dez ou onze anos não pode ajudar a lavar um quintal, lavar seu próprio tênis, arrumar o seu quarto? Aprender a ser independente e responsável é abuso? Mas as crianças não querem, dizem que é lei. Usam a lei como salvo conduto para ficar horas e horas frente ao computador aumentando a incidência de outro mal, a pedofilia.
Até a Escola (com raras exceções) aderiram a essa idéia. As crianças não levam mais lição para casa. Foi abolido o famoso “caderno de casa”. Os trabalhos são copiados da Internet e impressos. Não se escreve mais, não se lê mais e o vocabulário vai ficando cada vez menor. A tecnologia envolveu as crianças com seus mil braços e não há lei que as proteja.
O que estamos presenciando na atualidade é uma total falta de ideais. Criança também tem ideal, sonha, anseia, faz planos para o futuro, pelo menos deveria ser assim.
Para melhor elucidar fomos buscar falas infantis e o que encontramos foi muito interessante.
Foi perguntado ao Zezinho*, de seis anos de idade, morador de periferia, sem acesso a vídeo games e computadores e com uma educação nos moldes antigos, onde a voz do pai é soberana, o que ele sonhava ser quando adulto. Respondeu que iria estudar, trabalhar e dar uma casa à mãe. A mesma pergunta foi feita para o Pedrinho*, menino de classe média com a mesma idade do Zezinho, mas com acesso ilimitado a todas as modernidades e uma educação moderna, onde os pais são mais liberais, menos ditadores, e a resposta foi: “quero ser super, mega rico, ter muitos carros, uma casa bem grande e ter tudo o que eu quiser”.
Aqui abrimos um espaço para fazer uma referência às crianças de rua. A maioria delas sonha com um lar, pais amorosos e protetores, e acima de tudo com oportunidades e dignidade. Objetos e pertences materiais que normalmente encantam as crianças, para elas são, na maioria das vezes, conseqüências de se ter um lar, ou na falta deste um substituto para preencher o vazio – “se não posso ter uma família quero ter o tênis, o relógio...”
Mas, voltando a analisar a história de Zezinho e Pedrinho, podemos notar que embora Zezinho tenha uma vida ditada pelas regras da família como não brincar na rua, não sair sozinho, não falar com estranhos, arrumar os brinquedos sob pena de ficar algum tempo sem brincar com eles, de não se meter em conversa de adulto, de assistir apenas alguns programas da TV e ditada pela dificuldade material: não tem videogame nem computador (joga bola com os amiguinhos no quintal, joga “bafo”, bolinha de gude, pião). Apesar dessa vida que para o Pedrinho pode parecer sem graça, ele é um menino sorridente, falante, esperto. Já sabe escrever o próprio nome e lê com pequena dificuldade. Sonha ser aviador, conhecer outros lugares. É uma criança que tem perspectivas, que ousa sair do lugar comum, mas sabe que nada vem graciosamente, que precisa estudo, trabalho e empenho.
Pedrinho também é uma criança inteligente, sabe ler e escrever (apesar de não gostar), tem aula de inglês e espanhol; é menos expansivo que Zezinho e responde olhando para o videogame. É impressionante a sua habilidade em responder monossilabicamente às perguntas e ainda vencer o jogo. “Ele faz isso o tempo todo”, diz a mãe. Até leva o jogo pra escola.
É um bom aluno? A mãe responde que é uma criança agressiva e respondona. Quase todos os dias recebem reclamação da professora. Quando perguntado o porquê dele não obedecer à professora, responde que o pai paga o salário dela (como se ela fosse empregada dele). A mãe diz que o pai realmente fala isso diante de alguma reclamação. E se a professora deixá-lo de castigo? “Ela não pode, eu sou criança, meu pai processa ela”.
Não estamos generalizando, existem crianças rebeldes, desatentas e sem limites em todas as classes sociais bem como educadas, equilibradas e felizes.
Apenas usamos esses dois exemplos como uma forma de melhor situar o nosso pensamento. Pensamos que, criar leis que protegem o menor é necessário e salutar, mas tirar desse menor a responsabilidade e o conhecimento de suas obrigações, num mundo onde o Ter é mais importante que o Ser, é transformar esse menor numa arma perigosa (para ele e para a sociedade). Sempre foi preocupante o futuro das crianças de rua, a violência gerada pela marginalização, mas, hoje, essa não é a única preocupação: o destino das crianças e jovens com lar e família também se tornou aflitivo.
Pais desestruturados e ansiosos não sabem como conter a fúria consumista de seus rebentos porque tão pouco eles conseguem controlar o próprio consumismo. A educação baseada em um sistema de trocas (materiais) estabelece entre pais e filhos uma relação superficial, desprovida de hierarquia e repleta de culpa e medo (por parte dos pais). Vimos que Zezinho pensa em ajudar a mãe, em dar-lhe uma casa, consumar o sonho de seus pais em ter algo de seu, porque segundo ele, seus pais fazem tudo por ele. Há uma preocupação com o outro, uma situação de solidariedade e afeto. Pedrinho, ao contrário, sonha em ter para si, nem por instante pensa em seus pais, mas na conquista de um mundo que deverá estar aos seus pés, numa forma egoísta de se relacionar com o outro - quando uma criança não introjeta adequadamente as imagos paternais dificilmente poderá se relacionar afetuosamente. Haverá sempre um desejo de posse e um vazio que não poderá ser preenchido.
Mas o que acontecerá quando essa criança descobrir que o mundo não se curvará diante de seus desejos? É certo que a pergunta é de difícil resposta, pois o dinamismo da vida sempre nos oferece diversos caminhos e dizer qual Pedrinho seguirá seria penetrar no campo do “achismo”.
Mas o que há de real está na fala dos professores ameaçados em sala de aula por um pequeno de seis anos, desrespeitados por meninos e meninas na pré-adolescência e aviltados por jovens rebeldes e desestruturados.
Quando citamos o Estatuto da Criança e do Jovem, não é nossa intenção tirar-lhe o valor. Ao contrário, há que se reconhecer a necessidade de uma lei que proteja esses seres indefesos contra a fúria de adultos desequilibrados. O ponto é estabelecer até onde essas crianças e esses jovens podem viver sem uma norma que limite suas ações, que norteie o seu caminhar, que dê aos seus educadores condições de serem verdadeiramente educadores.
É necessário que nos perguntemos se não estamos subestimando os pequenos, tratando-os como incapazes e dando-lhes a noção errônea de que ouvir um “não” é traumatizante. Ora, se não posso ouvir, também não saberei dizer não para o abuso, para as drogas, para a manipulação. O que poderá fazer essa criança ante o sofrimento da perda, da frustração, da proibição? Diante de uma lei que protege há que haver outra que instrua e que delimite. É preciso notar que na ânsia de proteger a criança lançamos pais e educadores ao mundo perdido do “não sei o que fazer”. Precisamos urgente de leis que os ampare, os oriente, para não mais assistir crianças e jovens batendo, torturando, desacatando pais, avós e professores.
Somos todos a favor do grito de “não à violência” que mutila nossas crianças, que as matam. Mas a mídia não nos deixa esquecer que esses episódios não diminuíram, pelo contrário, está cada vez mais presente, que a lei parece não surtir o efeito esperado e que violência não existe apenas na forma física. Muitas vezes, o abandono é sentido pela criança como uma forma mais cruel de violência.
Outro dia, uma jovem disse: “Minha mãe não me ama, não gosta de mim”. Questionada do que a levava a pensar assim, respondeu: “Ela me deixa fazer tudo o que eu quero. Minha amiga tem horário para voltar das festas, a mãe dela é super preocupada, quer saber onde é e com quem vai etc. Ela diz que a mãe é uma chata, mas eu não acho. Gosto demais dela. Ela se preocupa comigo também. Às vezes me manda embora da casa dela pra eu não chegar muito tarde. Quando chego, minha mãe nem pergunta onde eu estava, quer saber por que cheguei cedo, se estava ruim”.
Essa jovem já brigou na escola, tem notas medianas pra não “chatear” muito a mãe e perder a mesada, mas tem dificuldades de se relacionar com professores e demais funcionários da escola. Fuma escondido, às vezes bebe um pouco em companhia dos pais, e diz que o melhor da vida é beijar muito. Como agirá no futuro? Desconhecendo os limites do bom-senso, como se portará diante de seus filhos, pais e avós.
O que falta a essa e a outros jovens em situação semelhante não é só o se sentir amada (o), isso seria uma conseqüência de uma vida com objetivos claros e definidos, mas ter um rumo, um porto seguro.
Ser adolescente é ter um turbilhão de emoções dentro de si, acrescenta-se a esse turbilhão falta de limites e de responsabilidades e teremos um jovem desgovernado, correndo em qualquer direção, sujeito a todas as vicissitudes e portando a pior de todas as armas: a certeza da impunidade.
E nos parece que a mola propulsora da violência está na impunidade, mas sua base certamente encontra-se na educação, pois como bem assinalou Pitágoras: eduquem as crianças e não precisará punir os homens. É isso ai!
* Zezinho e Pedrinho são nomes fictícios.