NÃO VERÁS PAÍS NENHUM

Por Luiz Sergio Fernandes de Souza | 06/02/2015 | Política

Há muitos e muitos anos nasceu um país, do jugo de seus dominadores libertado – não pelos aborígenes, estes dizimados, mas por convenção –, de terra fértil e gente brejeira, cuja riqueza natural tantos séculos de dominação não esgotaram.

Passou-se o tempo sem que a gente dessa terra generosa, fruto de intensa e contínua mestiçagem, pudesse escrever sua própria história, sempre conduzido que era o povo por ajustes e combinações da elite, que deixavam longe a ideia de um contrato social.

De fato, nesse país de vasto território, rico, mas cheio de desigualdades, havia lugares em que nem mesmo a tríade da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – ecoara. Foi quando um certo homem, buscando substituir a economia agrária por uma economia industrial, fez reformas de base, com sacrifício das liberdades políticas, investindo numa espécie de capitalismo protecionista.

Após breve hiato democrático, deposto o ditador – que logo depois voltaria ao poder, em eleições diretas,  nos braços do povo –, vieram novos governantes, cujo mandato foi sempre exercido sob a desconfiança das forças armadas.  Seguiu-se, então, nova ruptura política, momento em que os militares da terra, argumentando com a necessidade de renovação dos costumes políticos e pretextando afastar o risco de um governo totalitário, passaram, eles próprios, a controlar a vida das pessoas, o funcionamento de partidos políticos e instituições.

Os militares elaboraram, então, um programa de metas e bases que tinha em conta, sobretudo, a integração nacional. Mas o ufanismo e a retórica política – propaganda desenvolvimentista com a qual se buscava abafar o clima de agitação política existente nos meios intelectual e artístico, tanto quanto nas universidades e nos sindicatos – não mudaram substancialmente a situação da gente daquele país, pois subsistia a miséria, sobretudo em locais mais afastados, a má distribuição de renda e os desmandos, também cometidos por civis que se diziam próximos do governo militar.

A sorte daquela gente parecia estar assim selada quando os militares da terra, por força de um novo pacto político, afastaram-se do poder, transferindo-o a um civil que era, entretanto, legítimo representante de todas as mazelas existentes naqueles lugares distantes, onde ainda se esperava por notícias da Revolução Francesa.

A situação, naquelas paragens – que fazia lembrar a descrição que Rousseau, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, fez das ruas de Montpellier, “bordejadas de soberbos palácios e de choças miseráveis, cheias de barro e de esterco” –, não se alterou significativamente na sucessão dos governos civis, feita sempre na base de alianças das elites.

E aquele enorme país – cuja gente sem instrução, mesmo depois de um período de certo alento, fruto das ideias da social democracia promovidas pela intelectualidade outrora perseguida pelos militares da terra, continuava refém da classe dominante –, sem conseguir escrever, até então, a sua própria história, finalmente elegeu presidente um homem simples, trabalhador iletrado, oriundo dos rincões onde ainda não ecoara a Revolução Francesa.

Pensava-se, àquela altura, que tudo fosse mudar. Mas a camarilha não abandonou o poder e, em pouco tempo, aquele homem rústico fez-se emproado – ainda que lhe traíssem as pretensões a reduzida cultura e a falta de trato com a coisa pública.

Tudo que se dizia novo – no governo do “homem do povo” –, não era novo, copiado que fora do período anterior, no qual governaram os intelectuais de centro-esquerda, outrora perseguidos pelos militares. Além disto, a velha e rota política tradicional, que desde sempre comandara o país, continuou dando as cartas, agora sob o disfarce de um poder carismático.

As concessões de serviço público – impropriamente chamadas de “privatização” na época em que aquele “homem do povo” fazia oposição ao governo social democrata – multiplicaram-se; a política de juros continuou funcionando como fiel da balança entre consumo e inflação; a chamada ética de convicção, própria das relações políticas, cedeu lugar à prática de crimes associada a atos de improbidade que custaram a prisão de pessoas diretamente ligadas ao Presidente.

A chamada “Indústria da Seca”, fomentada pelos donos do poder desde os tempos dos grandes latifúndios, aqui, no governo do “homem do povo”, encontrou sua versão refinada, pois mais e mais recursos financeiros passaram a ser desviados a pretexto de se transformar a realidade das pessoas carentes. A prática do chamado “curral eleitoral”, também existente desde o tempo da autocracia latifundiária, aprofundou-se, pois, oferecendo alimentação, transporte e toda sorte de benefícios, desperta-se a prontidão na hora do voto. E o “homem do povo” logo percebeu que essa forma de violência simbólica torna-se ainda mais sutil e eficiente quando o ajutório vem a pretexto de reforçar os laços de solidariedade, de resgatar a dignidade do pobre, visto que ninguém legitimamente poderia se opor à assistência social.

Ocorre apenas que o plano para resgatar a dignidade do miserável não contempla – salvo elaborações mais recentes, fruto da crítica de gente um pouco mais esclarecida da terra – nenhuma contrapartida social, nenhuma estratégia de envolvimento ou qualificação profissional, com o que os assistidos correm o risco de viver no ócio remunerado (financiado com recursos dos que trabalham), sem falar no custo social e econômico de se manter parcela considerável da sociedade à margem do mercado de trabalho.

Embora o “homem do povo” e aqueles que o cercam tivessem planejado formas de controle institucional e de dispersão do discurso dissonante – algumas malogradas, a exemplo da que se pretendia desenvolver sobre a imprensa –, discurso este desqualificado sob a pecha de golpismo, revanchismo, elitismo, etc., muitos começaram a questionar a tão propalada capilaridade social das políticas de distribuição de renda então estabelecidas, pois o mercado não pode se alimentar basicamente das relações de consumo promovidas por práticas assistencialistas, de que dependem, segundo dados divulgados pelo próprio establishment, mais de cinquenta milhões de pessoas (aproximadamente 25% da população).

O “homem do povo” – uma espécie de figura messiânica, que já conseguiu garantir, duas vezes, sua sucessão – foi mais além, ao firmar parceria com empresários de faculdades particulares, muitas de qualidade duvidosa, para que estudantes que não tiveram acesso a um ensino médio e fundamental de qualidade pudessem diplomar-se no ensino superior, ganhando o empresário, de um lado, mas perdendo a sociedade e o estudante, de outro.

Explica-se: o empresário tem clientela garantida, cumprindo o Estado o papel de agenciador; o estudante, de outra banda, está sendo iludido, pois o mercado escolherá aqueles que possuem adequada formação (e não será a “faculdade” a suprir as lacunas resultantes de um ensino médio e fundamental de baixíssima qualidade).

Mais grave, ao investir recursos consideráveis no “ensino superior”, o governante da terra estará perdendo a oportunidade de resgatar a qualidade do ensino médio e fundamental; estará ainda deixando de investir no ensino técnico, não sendo ocioso dizer que, naquele país, já são muitos os engenheiros que trabalham como mestre de obras, o que aponta para o fato de que sobram engenheiros mal formados e faltam mestres de obra com alguma formação.

Não bastassem tantos erros – da perspectiva de quem raciocina com o bem comum, e não com o desenvolvimento de estratégias de poder –, a saúde vai mal no país, governado pela gente ligada ao “homem do povo”, sobretudo porque lá existe uma legião de jovens infelicitados pelo uso da droga, entorpecente que passa sem qualquer dificuldade pelas fronteiras, movimentando um mercado extremamente rentável, que ninguém tem efetivo interesse de desmantelar.

Há quem diga, aliás, que o tal negócio, extremamente lucrativo – pois não paga tributo, apenas propina –, alimenta o caixa das campanhas eleitorais em todo o território. Há quem diga também que influentes grupos políticos protegem o braço armado de suas agremiações e que, em contrapartida, os grupos criminosos assumem a autoria da ação criminosa, certos da impunidade, é claro. E o povo daquele insólito país – que alguns ainda insistem em chamar de pátria amada – encontra-se no meio desse fogo cruzado.

Aliás, o “homem do povo”, que subiu ao poder com base em sufrágio universal, e dele efetivamente ainda não apeou, não pensa em deixar o comando tão cedo. Ainda que se convencesse do contrário, tão profundas e indeléveis são as marcas de sua passagem no palácio – e de todos os que o cercam –, que dificilmente se recomporia a tessitura social, esgarçada pelas práticas que aprofundaram o clientelismo, a corrupção dos valores políticos e o sutil controle sobre o pluralismo de ideias.

Dentro desse quadro, remota seria a possibilidade de eleger quem se revelasse disposto a desenvolver uma política séria de distribuição de renda, sem todo aquele ranço assistencialista próprio dos governos populistas, quem se comprometesse com políticas públicas que, gerando o bem-estar social, ao mesmo tempo promovessem desenvolvimento econômico sustentável aliado a boas práticas do empresariado nacional.

Num claro cenário de divisão – não propriamente político-partidária, nem ideológica, mas de interesses –, o país escolheu para um segundo mandato a pessoa indicada pelo “homem do povo”, eleita graças aos votos obtidos nas regiões que concentram 51% das pessoas favorecidas por benefícios sociais, gente, em sua grande maioria, de baixo nível de escolaridade e pouco politizada.

 Preocupa saber que, quando se imaginava fugir de um jogo de cartas marcadas, ao eleger aquele homem simples pela primeira vez, tudo já pudesse estar adrede definido. Preocupa saber que os novos e sempre velhos governantes, depois que os militares deixaram o poder, não deram condições para a formação de outras lideranças, resultado de manifestações espontâneas, não contaminadas por velhas práticas clientelistas que ainda corroem a estrutura daquela sociedade.

Preocupa saber, outrossim, que a criminalidade organizada possa ser o braço armado deste ou daquele segmento da política, sobretudo porque os homens de bem, naquele país, estão desarmados, o que passa a ser uma questão de Estado, pois o direito de resistência ao governo ilegítimo encontra-se inscrito na consciência universal dos povos.

Preocupante também se revela a possibilidade de um aparelhamento fisiológico (e não ideológico) do Estado, a legitimar uma dominação carismática de consequências nefastas, que se alimenta da ausência de espaço político institucional (as pessoas não se sentem representadas pelos partidos) e da inexistência de canais de expressão pluralista de ideias (obstruídos pelo patrulhamento e pelo aparelhamento), tanto quanto da falta de corpos intermediários politicamente organizados, em condições de encaminhar reivindicações populares das mais diversas naturezas.

Causa inquietação, igualmente, o fato de o “homem do povo”, mesmo depois de haver conseguido se livrar dos fortes indícios de malversação do dinheiro público que para ele também apontavam – e isto sob a cândida alegação de que desconhecia o que se passava na sala ao lado, onde os criminosos, a final condenados pela justiça, integrantes de seu partido político e da base aliada, urdiam planos para desviar recursos do erário –, ter seu nome citado durante a apuração do desvio de bilhões de dólares pertencentes a portentosa empresa nacional, delação feita por uma das pessoas presas pela polícia tempos depois. A companhia, símbolo nacional, idealizada e construída no hiato democrático que antecedera o golpe militar, à custa do esforço e do trabalho da gente da terra, passou a figurar desde então no ranking das mais endividadas do mundo, e suas ações correm o risco de virar pó, já que as investigações estão apenas no início.

Embora a divisão do eleitorado – na eleição que consagrou, pela segunda vez, o candidato do “homem do povo” – seja um alento, a muitos conforta saber, de outra forma, que esta é uma história absolutamente surreal, que a eles não interessa simplesmente porque não existe, ou não existe simplesmente porque a eles não interessa. Importam, sim, o futebol, o carnaval, a cultura barata consumida na tela da televisão, do computador ou do smartphone. E, então, o título destas reflexões, tomado de empréstimo do escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão, ganha aqui um segundo sentido: “não verás país nenhum”, contanto que você não queira enxergar.

                       

(*) O autor, Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), é Professor Assistente-Doutor na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).