Não Existe Música
Por Bernard Gontier | 25/04/2008 | CrônicasExistem musicistas, ou músicos. A música está no ar, nas
esferas, é um elemento moldável, sendo a tarefa proposta moldá-la a seu jeito.
Na porta do Teatro Municipal, há 25 anos atrás, e graças a um projeto de
incentivo à cultura, era possível assistir, o que hoje se diz "pocket show" ,
um grande artista por preço irrisório. Tratava-se de um sujeito chamado
Celso Machado. Nunca tinha ouvido falar, e nunca mais esqueci. Quem estava ao
meu lado, atrás ou na frente, deu pra perceber e dá pra intuir: está
boquiaberto até hoje. Inclusive eu. Que na hora, de cara, pensei uma coisa: tem
algo errado. Isso porque, ali, ao vivo e em cores, a imagem captada era a de um
violonista tocando um violão. Mas o que se ouvia eram 10 violões. A
última foi uma versão de Asa Branca, conduzida literalmente para embasbacar, e
concluir: ninguém pode tocar assim. Digo, um ser humano. Um extraterrestre
talvez, grande é o cosmo, misteriosos são seus recheios...Mas o Celso Machado
tocou assim, o que simplesmente leva à outra conclusão: O Celso Machado pode.
Hoje ele é bam-bam-bam numa universidade lá na Alemanha.
E prossigamos, pois esse artigo busca trazer à baila a capacidade de cada um
que se lançou nessa aventura, de traduzir a Deusa Música à seu jeito. Quando
isso acontece, e graças ao Altíssimo isso acontece muito mais do que se supõe,
o universo se enriquece. Marcas registradas imprimem nos nossos corações
indeléveis pegadas.
Diane Schurr. Essa mulher ao piano, e saibam, está há léguas de ser um "piano
ao cair da tarde", é quase Peterson, Oscar – e não por nada não, mas assim como
no futebol tem o Pelé, por aqui temos o Peterson. Dianne Schurr, exímia, sendo
que a questão não é ser exímio, mas sim o que o dono do exímio faz com o exímio
dele. Ela bota pra quebrar, e tem um cantar "comigo ninguém pode", que..,
calma, já, já chegamos lá, então, Dianne Schurr
consegue uma aliança perfeita com os ingredientes "bota pra quebrar + comigo
ninguém pode" que se transformam numa marca registrada, incomparável, por
sinal, como todas. Deus me concedeu o privilégio de assisti-la no Bourbon
Street, no final de 99, assim como também tive o privilégio de conviver com o
CD, "Music is My Life", onde, na contracapa, consta a seguinte declaração, mais
ou menos assim: "Se eu pudesse, te daria os meus olhos, para que você
enxergasse a beleza do mundo". Frank Sinatra. Porque Madame Schurr é
cega. (Frank deve ter dito isso pouco antes de se mudar para Andrômeda, que é
para onde vão os músicos e os poetas).
Elis? A Regina? Complicado falar de Deusas.
1. Assim me disse um sábio: ela não foi apenas uma cantora, ela foi uma
missionária. Ela veio para cantar o Brasil.
2. Na histórica entrevista do programa Ensaio, TV Cultura, feita em 1972, o
que fascina ali não é apenas vê-la/ouvindo-a cantando, mas quando ela
fala, vem dela a inequívoca autoridade, não no sentido da arrogância, mas
autoridade que segundo ouvi dizer, você tem no plano espiritual e projeta aqui,
no mundo da matéria, onde o tom da sua voz, o seu olhar, a maneira como dizes
seja o que for não deixa sofismas sobre o que és.
2A. Não me parece que ela "apenas" cantava, mas que vivia
intensamente e por conseguinte transmitia o papel proposto na canção.
"Quando olhaste bem, nos olhos meus...".
E o artigo continua. Porque de semi-deuses podemos falar, eles tocam um
instrumento e atingem essa patente quando, pelo toque, você já sabe quem é. E
isso não é para qualquer um. Isso requer além do talento, um esforço
sacerdotal.
"Eu queria ter soado como um Martini seco", Paul Desmond, palavras dele, e vai
tocar clarinete com essa classe assim no quinto dos invernos.
Não, não, perda de tempo dizer que aqui temos Paulo Moura e o Roberto Sion,
por exemplo. Porque, patriotada ou não, está na minha memória e eu grafito
embaixo, a abertura do festival de Montreaux, acho que 1977, onde o
apresentador diz: E agora o Brasil, que além de ser o primeiro no futebol, é
também o primeiro na música. Daí entra o Wagner Tiso tocando...
Mas esse não é o assunto aqui. Brasil é o paraíso dos gênios musicais desde os
tempos da Madame Gonzaga, só quem não vê isso são os próprios brasileiros e
nessa controvérsia não vou entrar.
Voltando pro Desmond, tem um disco dele com a sinfônica de Londres, mais um
guitarrista chamado Jim Hall. O nome da música é, I Should Care, e o solo de
guitarra do sr. Hall para mim, entrou para a história, nessa música. Porque aí
se torna uma referência, e uma referência significa um novo universo.
Que é também sobre isso que esse artigo tenta falar.
No filme Vinicius, tem uma fala do Edu Lobo (grande universo),
expressando que, quando todo mundo achou que a bossa nova, que já era uma
revolução, (com João), tinha, por assim dizer, assentado, aparece um cidadão
trazendo um baita universo: Baden Powell.
Percebes?
O que, os clássicos? Ah, os clássicos, bom, quando um sujeito sozinho escreve
aquele monte de coisa, melodias, ostinatos, células rítmicas e melódicas,
percussão, todas as dinâmicas, um único gajo escreve tudo aquilo, e tudo aquilo
funciona ferpeitamente (como diria Asterix) e..., que mais a dizer, nessa
vertente? Nada a não ser render graças ao sr. Guido Darezo, que em meados do
séc. XVII "inventou" a notação musical, que por sua vez tanto permitiu que
Verdi compusesse sua alquimia inigualável de vozes quanto o Antonio Carlos,
também graças ao Guido, escrevesse ali no pentagrama: dó, ré, mi, fá, mi, ré,
ré bemol, ré, fá, ré bemol, que, com a letra junto, fica assim: "Se você disser,
que eu desafino amor ...."
Assim, do clássico ao não clássico, desde 1600 três pontinhos música passa a
ter dono, porque afinal poucos seriam capazes de fazer o que este cara
fez. Vejam. Em torno da época do sr, Darezo havia um papa, que, uma única vez
ao ano, mandava o seu coral recitar determinada peça, que a Igreja achava
que mais vezes não podia porque exacerbaria o espírito, um coral de sei
lá quantas vozes, e ai de quem desobedecesse tal mandamento, até o dia em que
um dos meninos deu no pé, foi pra Veneza e escreveu tudo aquilo de cabeça,
porque ele havia decorado: Wolfang Amadeus Mozart. Foi excomungado e muito
espírito passou a se exacerbar porque afinal o som não estava mais trancafiado,
estava no mundo, e para o mundo.
Da música à música, que se plasma nos músicos ou que os músicos, plasmam. Como
queiram. Hora e vez da guitarra, um instrumento que deu muito o que
falar, que já queimaram e quebraram nos palcos da vida, mas que teve um
(vários, mas esse é especial) que a tratou com o devido respeito. Sras. e
srs., mister Joe Pass. E o papo dele rima com o nome – jazz. E o cara bagunça
tudo, virtuoso mesmo sem equívoco, e se a magistral canção diz um cantinho e um
violão, a canção dele era uma guitarra e o mundo. Se apresentou sozinho várias
vezes, nos 4 cantos do planeta, só em Montreux foram 2 ou mais, mas o caso é:
ele é uma referência.
Que, numa das vezes em que na nossa pátria esteve, deparou-se com outra
referência, sua eminência Helio Delmiro. Dizem aqueles que tudo sabem que sr.
Pass, diante do colosso Delmiro, pensou "amém". Ambos descortinaram maneiras de
"fazer a coisa", e tem muito fritador de escala que está até hoje tentando
imitar. Mister Joe Pass, em Montreux, trouxe à baila outro mago maior, ao
tocar "You Are The Sunshine Of My Life". Que aqui deve constar:
Stevie Wonder. Puxa aí no YouTube, mermão, WEB 2.0 é pra isso mesmo, você vai
ver ele magrinho, com a gaitinha, se é do seu tempo, vai negar que já não
cantarolou também as músicas do rapaz? Que apesar de não serem samba dava
vontade de assoviar e dançar. E o Stevie e o Gil se encontraram, porque o que a
lei da atração funciona pra músico não é brincadeira. Só não atrai dinheiro,
mas também, quando atrai...E o Gil, assim como o irmão branco dele, o Cae, mais
o paulistano mais carioca que já se viu, Francisco de Holanda, mais o branco
mais preto do Brasil, o diplomata de Moraes, mais a turma toda, que é
imensa, expressões individuais que atestam a teoria destas mal traçadas,
e...bom, quem é da minha faixa etária também atesta: crescemos junto com eles.
E nosso crescimento teria sido infinitamente mais pobre não fossem eles.
Simplesmente também porque eles acreditaram no taco deles. Foi questão de fé.
Não só os do parágrafo acima como de todos os palcos, acreditaram que aquela
maneira de tocarem ou cantarem ou ambos era o certo, porque era como eles
sabiam fazer, era assim que eles iam retirando do invisível a música, que
também não é visível embora às vezes eu ache que é.
Aliás, considerada a primeira das artes, justamente por ser imaterial, não
vivemos sem ela. E talvez ela também dependa da gente, vai saber, questão essa
que no mínimo já invalida o título do artigo mas não a continuação do mesmo.
Reparem, ouvintes de todos os credos, de onde vem os fluxos que a persistência
humana transpõe barreiras e transforma em alegria para os nossos dias sombrios.
Ou pros nossos brios. Vem de toda parte, do infinito local ao infinito
universal. E no local planeta azul, vide Ray Charles: comeu o pão pra lá de
amassado até, entre outras, arrancar do seu coração "Geórgia on My Mind. " E se
hoje a canção tornou-se hino do estado de mesmo nome, ontem Ray estava proibido
de por lá pisotear em virtude do racismo.
Duke Ellington contou à Rainha Elizabeth, que quando fez a travessia do pobre
sul ao rico norte americano, via seus irmãos de cor enforcados nos galhos das
árvores. E o Duke nos trouxe "In a sentimental mood", que se você não dançou
agarradinho junto dela, ainda há tempo, "mermão", porque nossos guerreiros não
vivem sem canção, muito menos sem carinho. Senão, como é que vai segurar esse
rojão? E os dois acima são frutos do sofrimento inominável também oriundo das
plantações de algodão, que entre um vestígio e outro de sossego veio o Blues,
com uma lista de nomes que dá a volta na galáxia, sendo que lá no principio
aquele jeito de tocar, pouca nota, ritmo tinhoso, o velho Blues teve dois
filhos, roqueiro que é roqueiro sabe quem é seu pai, jazzista idem, ele estava
lá, numa choupana perto do algodoal, com um pinho de 6 cordas dizendo aqui não
só nasce o Blues como nesse bordão nasce o "riff" ( item que o Guerreiro, aqui
do Recanto, explica com categoria), "riff", que a galera pop dos anos 70 fazia
com maestria. Todavia, lá do algodoal, com uma voz profunda e o acento da "blue
note" tudo exprimia lamento, e Lamento, num estalar de dedos singrou as
Américas de norte à sul, onde, num morro do Rio de Janeiro "Seu Alfredo" compôs
e Vinicius fez a letra, salvo engano, porque o plasma musical trafega no éter
com a mesma facilidade que você vai na banca de jornal. E ele só procura,
e sempre acha, quem lhe dê voz e expressão, sem fazer distinção, porque essa
força do Incriado não conhece tempo nem espaço. Por isso que por aqui além de
românticos podemos ser quânticos, e constatar a imbatível elegância do Ataulfo
Alves, na Record, em 67, acompanhado pelo Maestro Caçulinha, numa voz de
derreter qualquer vivente, entretanto, veja bem, 1967, o plasma musical vem em
ondas como o mar, já estavam acontecendo novos gêneros musicais, atropelando
toda a praia dos Ataulfos Magistrais (Vicente Celestino, Orlando Silva e grande
elenco), porque um novo elenco subia no palco com vigor de locomotiva, não há
meio de resistir, por aqui a gente sabe quem são, e por lá também, tudo a mesma
tribo, vozes de outros mundos, e se no pais tropical várias Teresas
requebraram sobre Folhas Secas e vendo A Banda Passar, pra começar, numa ilha
no canal da Mancha 4 moleques te tiravam da cadeira pra dançar "Can't Buy
Me Love".
Não, não, mermão, música é universal e cuspir no prato que comeu não é legal.
Quem foi que deu vez pro Sergio Mendes e pro Eumir Deodato? E para o gênio
chamado Victor Assis Brasil? E para tantos nomes que aqui não cabem? Pois não
estava o Antonio Carlos, num boteco em Ipanema, quando toca o telefone, era o gringo
da Gema, Sinatra, perguntando: quer cantar comigo? Los gringos,
hombre... te aquieta e escuta, e olha esse sujeito branquelo, não é musico, é
um avatar musical, Hermeto Paschoal. E o telefone também tocou pra ele, porém
lá em Nova Iorque,
porque ele já estava lá gravando um disco que delicadamente esfregava na cara
dos nativos: isso que vocês tocam? Tiro de letra...Mas o telefone tocou
realmente, ele atende, tudo em inglês (língua nativa), e ele diz: alô? Do outro
lado da linha um vozeirão (também em inglês) indaga: por favor, o sr Hermeto
Paschoal, ao que o avatar responde, sim, o próprio, quem quer falar? O vozeirão
responde: Miles Davis. Hermeto desligou sem delongas, mandando a voz catar
sardinhas. Dois minutos depois, de novo o telefone, e desta feita Hermeto manda
a voz, a mãe e a tia para a casa do escambal. Reza a lenda que o Sino de Ouro
tiniu no intimo do Albino, e quando telefone tocou pela terceira vez sua
atitude mudou, e a da voz também: moro no endereço tal, o que acha de
conversarmos? Que o pariu, é o final da interjeição que às vezes se usa, ao
ouvir o resultado desse encontro. Dizem que quando os aspirantes perguntavam ao
H. Paschoal o que fazer ele respondia: arpeje, meu filho, arpeje. E já que
quânticos estamos, migremos para o Canadá, berço de um fulano chamado Oscar.
Porque falamos dele? Porque estamos falando do Pelé, que num universo paralelo
trocou a bola pelas teclas, pois quânticos continuamos. Estudante de piano
clássico no Canadá, década de 40, quando a mãe não via Mister Peterson
juntava a galera e tocavam um lance muito louco chamando jazz. Belo dia, no
começo dos 50, Peterson e amigos vão se apresentar num boteco em Toronto. E o Plano do
Espírito dá um jeito para que uma rádio local transmita o show ao vivo. E nesse
mesmo instante, o maior caça talentos de NY está num táxi, a caminho do
aeroporto. Pero, lo taxista sintoniza na tal rádio, e o tal caçador de talentos
ouve: "estamos aqui, no boteco xis, ouvindo o pianista Oscar Peterson...". E o
passageiro ordena ao motorista: Esquece o aeroporto e toca pra esse boteco. Um
mês depois Oscar se apresenta no Madison Square Garden. Ele estava preparado.
Assim como o maestro Antonio Carlos estava preparado para apresentar ao
vivo, para 20 milhões de telespectadores, com Sinatra ao lado, "A" Garota de
Ipanema. Porque estar preparado faz parte do show. De qualquer um em qualquer
instância. E o maior bruxo musical, já visto por qualquer um no mapa astral,
chama-se Egberto, cuja pauta e a flauta entraram mata à dentro com o propósito
de encontrar, uma tribo peculiar, cuja crença milenar era cantar em prosa
autêntica que o universo nasceu de uma música. Senhor Gismonti já o
sabia, queria apenas confirmar, o que a propósito Dom César Camargo sempre
soube, pois em português, em inglês ou eslovaco, a trama da Deusa Musica também
toca cavaco, e beijou o "Prato Feito" do Toninho Horta e o singular
louvor do sr. Guedes, abençoou todos os cancioneiros e seresteiros, se espalha
em todas as gentes e seus continentes, e de cada um sai uma vertente, às vezes
não é mulata e faceira, mas decerto é feiticeira. E pensando bem acho que
existe.