Não abra a porta
Por Paulo Valença | 13/01/2010 | Literatura
1
A noite está chegando.
As luzes dos edifícios acendem-se. O céu sobre estes se torna escuro-acinzentado, devido à iluminação das lâmpadas. Embaixo, os veículos circulam, um atrás do outro, na fila longa. Buzinas. Atritos de pneus nas pedras da avenida, tudo isso num som condensando, subindo.
- Mais uma noite se inicia.
Diz baixinho o homem gordo, baixote, na varanda do 8º Andar do prédio comercial, ao centro da cidade, com a atenção presa ao movimento dos automóveis, motos e pedestres nas calçadas laterais da avenida. Até quando ainda presenciará o que vê? Numa hora, tudo isso não mais existirá. Sim, por que...
As batidas discretas na porta, anunciando alguém. Quem será? Não avisou À Graciete, sua secretária, que não mais receberia ninguém? As batidas insistem.
- Porra!
Torna a falar, nervoso. Dará uma “bronca” na Graciete, para que ela não mais permita que alguém venha lhe interromper no que faz ou não faz.
Cruza a sala em passos ligeiros. E abre a porta.
2
- Dr. Eduardo? Boa noite.
A jovem loura, esguia, de cabelos longos, afilada, bonita. A voz sensual, feminina. O que desejará?
A moça sorri, fitando-o com os olhos grandes, esverdeados, as covinhas nas faces, a mão esquerda segurando a alça da bolsa ao ombro, a outra mão de longos dedos correndo os cabelos que caem na testa.
- Sim. O que deseja a senhorita?
- Posso entrar um instantezinho?
A beleza feminina sempre o fascinou e agora, já “maduro” que sente a velhice se aproximando... parece-lhe que a atração por mulher bonita cresceu, como se fosse o inconformismo ante a chegada da velhice e, como não permitir que essa jovem adentre em seu gabinete?
- Pode sim. Entre, por favor.
Ela passa. O perfume suave, de bom gosto dominando o ambiente e, com elegância senta-se à cadeira defronte do birô, o qual ele, Dr. Eduardo, ocupa e, espera.
Ela então retorna a falar:
- O senhor conhece o novo plano de vendas do “Morada do sossego?”.
Mas, o que será isso? Não responde.
A jovem continua falando:
- Eu represento a companhia que lançou aqui na cidade o plano para que a família descanse os seus entes queridos...
Ele entende. Uma vendedora de jazigos. Contrariado, se contém. Calma, não pode se exasperar mostrar-se grosseiro, afinal a educação faz parte do comércio, o trato com o próximo faz...
- O senhor está me ouvindo?
- Sim, claro claro.
Ela novamente sorri e repete o gesto de correr a mão sobre os cabelos finos, ondulados, louros.
Lá fora, da avenida embaixo, prosseguem com maior intensidade os sons dos veículos na hora do rush.
Cruzando a perna sobre a coxa longa, a recém-chegada sorri e se detalha para vender, prender o novo cliente que não a interrompe, fascinado pela carne dourada das pernas expostas.
-... O senhor está interessado em assinar o nosso plano?
- Deixe-me vê as cláusulas.
- Pois não.
Então os dedos bem-cuidados entregam-lhe o papel e entre ambos paira o silêncio que antecede a venda realizada e a vitória da beleza da desconhecida.
- Tudo bem. Onde assino?
3
Os homens se deparam com a moça com o rosto do lado esquerdo caído sobre a mesa de trabalho, os olhos duros, a boca semi-aberta, a palidez amarelada da morte banhando-a e...
- Cara vê isso aqui.
O outro sujeito magro, morenão, se avizinha curioso:
- Que é Pequeno?
Este mostra em gesto com a mão aberta o que lhe desperta a atenção:
- Aí no lado do pescoço, nessa parte de cima (a outra está apoiada ao forro do birô) os dois furinhos.
- Sim? E o que tem isso?
- Não percebe? Ela, como que foi mordida por um bicho. Vê: os buraquinhos ainda sangram.
Nestor fita, perplexo, entendendo-o.
O que realmente terá acontecido a essa coitada moça, atacada por um animal, que após o ataque lhe sugou o sangue? Sim, porque essa palidez amarelada...
- Tou vendo, Pequeno. Algo ruim a mordeu, mas...
Prático o colega se afasta:
- Vamos ver o outro morto, o chefe dessa moça, o diretor.
Cruzam a salinha e adentram na outra espaçosa, com quadros nas paredes, o birô ao centro e, com o rosto caído para trás, no espaldar da cadeira alta, o senhor gordo parece dormir, no seu descanso eterno.
- Pequeno observa: os mesmos furinhos paralelos.
- É isso aí. O que se conclui que o nosso “bicho” (ou seja, lá o que for) também atacou o homem...
- Mas, o que terá ocorrido de fato?
Nestor sorri e, gracejando:
- Cabe a nós, como policiais, descobrir.
O corpo também de cor amarelada, os olhos na perlexidade do ataque inesperado. A boca meio-aberta. As misteriosas perfurações...
- É cada uma que acontece nessa vida da gente!
- Com o laudo se descobre tudo, colega.
Silenciam. Intrigados. Pensativos.
Pela porta aberta além da varanda, da avenida embaixo, sobe o som dos carros, motos e buzinas cruzando-se, enquanto no céu, a luz do novo dia cintila, envolvendo as construções.
Cintila, como se nada houvesse ocorrido, afinal, tudo continua, nada pára, a marcha do mundo prossegue.
Discando o celular, Pequeno espera.
- Sim, é ele mesmo. Pode chamar a turma que o negócio aqui tá muito feio. É bronca!
Ao lado, Nestor com a mão trêmula acende o cigarro.
4
As batidas discretas, cadenciadas na porta.
- Quem danado será?
Indaga-se o “coroa” negro, alto, magro e, curioso, aproxima a face do olho mágico ao centro da porta. E vê a jovem de rosto afilado, olhos esverdeados, de longos cabelos louros, a bolsa presa ao ombro, às pernas exibidas pela minissaia.
Como rejeitar a essa beleza exposta, como se estivesse vivendo num sonho? Então, abre a porta.
- Sim?
- Posso dar uma palavrinha com o senhor?
A voz dengosa, sexy, o sorriso de covinhas nas faces coradas. Como resistir a beleza dessa criatura? Mais uma vez se indaga, fascinado ante a repentina cena da bela mulher.
- Pode entrar, faz favor.
- Obrigada.
A porta é fechada e... Acontece.
Novamente acontece.