Na Ponta Do Lápis
Por Nara Junqueira | 02/03/2008 | PoesiasNa ponta do lápis
Não entendo as mulheres que fazem contas e contas de somar, diminuir, dividir para, no final do mês, entregar tudo, tudinho, na mão dos seus homens, possivelmente especiais. Não tiram uma só moeda para um simples batonzinho, ainda que daqueles desbotadinhos e baratos, ou aquela colônia que evapora rapidamente, uma ida ao cabeleireiro da esquina. Não, nada! Nada investem em vaidade e são felizes, muito felizes, com os produtos de limpeza com que deixam a casa cheirosa e limpa.
Rute vive assim desde que subiu ao altar com seu escolhido Cornélio, um homem simples, trabalhador e de pouca conversa. Acorda cedo para colocar o lixo na rua e já com a vassoura na mão começa a lida diária, deixando a calçada livre das folhas que teimam em descer das árvores, recolhe papéis e toda sorte de lixo que a população insiste em abandonar bem em frente da sua casa. Ainda na calçada, de chinelo nos pés e robe amarrado na cintura recebe o pão quentinho que o padeiro Vicente diligentemente entrega tão logo a boca do forno o autorize. No interior da casa, café fumegando, leite quente e mesa posta. Hora de acordar as crianças para que façam a higiene sem um til de barulho que é para não acordar o pai que chegou de madrugada. Os filhos, arrumadinhos e rápidos, pegam o lanche, a pasta de livros e sobem a rua direita que vai dar na escola. Rute estende a roupa no varal e ensaboa aquela outra que descansou a noite toda no fundo do balde. Trata também da roupa suja que o marido trouxe, coitado! Depois da primeira lavada, precisava de sol para voltar à cor. E toma o seu café em pé mesmo, e num só gole, que o tempo vai acelerado e tem muita coisa para fazer. Nesse instante, morta de saudade, vai até o quarto e pára surpresa, a observar o seu pobre Cornélio que, ainda dormindo, abre um sorriso como há muito ela não via. De repente, veio-lhe um pensamento esquisito, como o diabo a inventar histórias. Tentou se lembrar quando foi a última vez que viu aquele sorriso leve e de puro gozo. Em vão, nada conseguiu além da certeza de que Cornélio raramente distribuía sorrisos em casa. E não era porque estivesse assoberbado de coisa a fazer não, pois, sempre que vinha das suas andanças, a mulher lhe entregava as contas todas pagas com o que arrecadava da venda de bolos e docinhos feitos em casa. E, se não havia contas a pagar, também não havia cobranças de mulher casada oficialmente. Rute era um anjo de mulher, mais anjo que mulher.
Certo é que aquela manhã marcou um outro tempo na vida daquele casal. Aquele sorriso aberto despertou a desconfiança de que seu homem a tivesse substituído. E veio uma vozinha escondida lá no fundo da alma, que se encarregou de dar fermento ao ciúme. E se fosse verdade que Cornélio arranjara outra, não aceitaria calada aquele papel de enganada e desprotegida. Lutaria de cabeça erguida!
Certo mesmo é que seus pensamentos começaram a ferver, atormentando-a com dúvidas e casos de amigas e parentas igualmente traídas e igualmente caladas. Não, pensava, com ela o buraco era mais embaixo. E o que era paz e harmonia naquela família simples passou a ser planos da batalha que estava por vir e que haveria de restaurar a verdade. Passou, então, a vigiar Cornélio em todos os lugares, espreitando-o no quarto, no banheiro, nas conversas com as vizinhas em frente à casa. Em tudo via a possibilidade da traição! E passou a dormir pouco, o que lhe dava pouco ânimo para a produção e venda de docinhos e bolos. Também os filhos conheceram da mudança que se processava na mãe, que quase sempre acordava cansada, triste e já nem se esmerava tanto com os uniformes da escola, deixando a casa em segundo plano e a família também. E Cornélio, vendo a mudança da mulher, suspeitou de que algo errado estava se passando debaixo do seu nariz. E também ele passou a observar a mulher, dando corda e puxando, chegando fora de hora, cheirando vestidos, camisas e lenços. Ocupou-se melhor ainda da contabilidade doméstica e viu com surpresa que, nos últimos quarenta dias, a venda tinha despencado, tanto que recebeu cobrança do Juca Bananeiro, do Bié do açougue e também da padaria.
— Como pode essa mulher ter mudado tanto? pensava ele.E o que era inicialmente dúvida passou a ser evidência, para logo mais adiante virar convicção de que, na sua ausência, um outro viera ocupar seu lugar no coração e na alma da mulher. E nesse estado de perturbação em que os dois mergulharam, a casa toda silenciou. Rute emudeceu por completo, disposta a não tocar no assunto enquanto não se resolvesse qual rumo daria a sua vida, para onde iria e como abordaria o assunto com seus filhos ainda pequenos e também com a mãe, que lhe ensinara formas e jeitos de manter um casamento feliz; que lhe ensinara a cozinhar, passar, lavar e esperar o marido sempre cheirosa. Também Cornélio adotou a mesma estratégia, visto que ainda não conseguira imaginar o que responder ao pai e cinco irmãos mais velhos sobre o que se passara na sua casa, debaixo do seu nariz, e enquanto trabalhava duro para pôr comida na mesa. Todavia, não estava disposto a lavar sua honra com o sangue derramado de Rute. E porque nascera às avessas dos machos da sua família, o preço a pagar seria bastante alto, seria a completa desmoralização. Preferiu, então, se calar e tocar a vida como se nada houvesse passado.
Todavia, naquela casa, durante muitos e muitos anos, viveram Rute e Cornélio, cada qual na sua solidão até que a morte os encontrou calados, tristes e rabugentos um com o outro.