Na Língua Também Há Preconceitos

Por Ary Carlos Moura Cardoso | 10/08/2008 | Educação

A língua não é só um instrumento, nem um dado, mas um trabalho humano, um produto histórico-social.
Eni P. Orlandi

A mais extraordinária engrenagem na qual circula a cultura de um povo, sem dúvida, é a Língua. A relação, portanto, entre ambas (Língua/Cultura) é de profundaintimidade.Vejamos o caso de alguns preconceitos machistas patentes no português.

Se você encontra uma mulher grávida, provavelmente, caso seja necessário, fará a seguinte construção: "Aquela senhora espera um filho". Trata-se de encapotada discriminação contra a mulher. A malandragem aqui consiste no que conhecemos por "relação gênero e espécie". Ao masculino, aplica-se um sentido maior, mais amplo. Ao feminino, algo menor, específico. No fundo, é como se o feminino nada mais fosse do que uma "espécie de masculino". A expressão "o homem é um animal racional", conotando ao signo homem os dois gêneros, é ilustrativo clássico.

No terreno dos insultos e ofensas, as formas femininas predominam. Alguém, por acaso, usaria "você é um filho de puto"?Já ouvimos um sujeito dizer "seu filho do pai"?

Os provérbios estão abarrotados de machismos. Há inúmeros deles apequenando a mulher, diminuindo sua inteligência. Neste jornal, publiquei um artigo elencando uma série de aforismos assacados por cabeças consideradas brilhantes. Tertuliano, por exemplo, saiu com esse: "A mulher é um templo edificado sobre uma cloaca". O grande Antônio Vieira disparou: "A mulher só deve sair de casa em três ocasiões: para ser batizada, quando for casar e para o próprio sepultamento". Que dizer do dito maroto, capcioso: "Mulher ao volante, perigo constante"?

Na utilização de nomes de animais como metáforas aplicadas às mulheres, sobressaem achincalhamentos e apelos sexuais. Por exemplo: "Essa sujeita é uma galinha", "X não passa de uma piranha". Ao homem, embora haja certas aplicações também depreciativas, o corrente é aplicar a metáfora visando sempre à superioridade do macho. Afinal, quem diz "ele é um leão" ou "um galo" ou "um cavalo" faz, sim, um tremendo elogio ao homem.

Se a mesma palavra se aplica ao feminino e ao masculino, para aquela (feminino) a conotação é negativa. Para este (masculino), ao contrário, é positiva. Basta nos lembrarmos das palavras cobra e fera (Esse cara é cobra).

Repare que a maioria das palavras, promanadas do reino animal, objetivando atribuir carga depreciativa aos homens é feminina. Exemplos: "Pedro é uma besta", "Por onde anda a égua do teu irmão"? – ainda que essa construção possa cair na ambigüidade.

A coisa, claro, não pára aqui. Estudarmos esses fenômenos é instigante e desafiador. Existem no Brasil pesquisadores de águas profundas se debruçando sobre tais questões. Na esteira de José Lemos Monteiro, incontestável é "se os padrões sociais se refletem na língua, o português não oferece o mesmo tratamento para as noções de masculino e feminino". De modo que afirmar ser isso natural, inelutável, é demonstrar falta de senso crítico e estreiteza no que diz respeito ao conhecimento dos segredos velados nos jogos lingüísticos de um povo.