Mundo Violento

Por Marcos Benfica | 04/01/2009 | Crônicas

Pegou sua mala, colocou dentro as poucas roupas que prestavam e ganhou a rua assoviando Roberto Carlos. Nada do que deixara para trás valia a pena. O gato preto sabia se virar muito bem. A vitrola velha já não rodava mais os discos. E, ademais, estamos na era do cd. Quem vai se preocupar com discos velhos? A casa velha, geminada, portão sujo e enferrujado, a porta de madeira com o trinco gemedor, a lata de óleo servindo de vaso para uma planta qualquer.... nada disso era seu, então para que se preocupar?

Continuou assoviando, mas já um pouco mais preocupado do que antes. Tinha a prestação da geladeira, o compromisso com o agiota e o "pendura" lá no botequim. Isso sim era seu, embora não os quisesse de fato. Errou o tom. Como era mesmo? "Se chorei ou se sorri...." como era mesmo? Do outro lado da rua uma morena desfilava um decote impublicável. Errou de novo. Não havia como se concentrar.

Se não pagar a geladeira, meu nome fica sujo, pensou. Mas e daí? Vida nova, só vou comprar à vista! Se não pago o botequim, o seu Duduca me corta o fiado. E eu com isso? Pra onde vou, não existe seu Duduca. Agora, se não pago o agiota...bem, melhor mesmo voltar. Há uma ponta solta.

Fez a volta. A morena agora era apenas um sacolejo de quadril perdido ao longe. O assovio alegre se converteu num nervoso coçar de barba. As mãos se apertaram na alça da mala até que os nós dos dedos embranquecessem. Pensou consigo na miséria que era dever para os outros. Não fosse por isso....

Chegou ao velho portão que esperara não mais abrir. Mas abriu. Adentrou a sala e foi direto à gaveta da cômoda da televisão. Deixara ligada, para afastar os bandidos. O bairro andava muito violento. Puxou lá de dentro um papel roto e amarelado, onde se anunciava de um lado a picanha a "dez real" e do outro, em caligrafia torpe, um número de celular.

Discou nas teclas engorduradas do telefone. Faltava o nove naquele aparelho. O pior é que não se lembrava de como perdera aquela tecla. Mas não importa. O Demétrius atendeu de pronto e ronronou ao saber da notícia. Dinheiro é sempre bemvindo! Sim, passo aí agora mesmo para receber. Levo as promissórias, sem dúvida.

Desligou. Diabo de agiota sem-vergonha! Empresta mil e recebe mil e quinhentos. Não é justo. Mas o dinheiro chegou na hora certa... dane-se, continua sendo um abuso. Alguém disse que os usurários vão para o inferno. Mas não sem antes banquetear-se aqui na Terra, às nossas custas.

Ligou a tevê. O apresentador, todo empertigado no seu terno de belo corte, encheu a sua tela. Falava de homicídios e raptos como quem dá a previsão do tempo. Mais um crime no ABC! Mataram uma criança em Bauru! Vamos aos comerciais! Compre o produto xis! Estupro em Pirapora do Bom Jesus. Mundo violento, pensou. Esses bandidos andam cada vez mais atrevidos. Melhor reforçar as janelas com os cadeados. Nunca se sabe.

Foi até a cozinha e abriu a gaveta do armário. O cadáver da mulher, esfaqueada no chão perto do fogão, atrapalhava a passagem. Alguém pode tropeçar e se machucar. Empurrou-o para o lado e já aproveitou para desligar o gás. As mulheres sempre se esquecem de desligar o gás. Aproveitou a ida à cozinha e resolveu tomar uma cerveja. Abriu a geladeira, pegou a latinha e aproveitou para arrumar melhor o saco preto com os restos do amante da mulher.

Voltou à sala, colocou o revólver na cintura e se pôs a esperar pelo agiota. A tevê, ainda ligada, noticiava mais alguns assassinatos.

Achou o programa muito violento e resolveu rezar o terço no canal católico.