MORTE NA CONSOLAÇÃO

Por Marcelo Rissato | 15/05/2011 | Contos

MORTE NA CONSOLAÇÃO

(Marcelo Rissato)

O maior mistério da vida talvez seja a morte, que pode ser vista como um mistério incompreensível ou como um absurdo inaceitável. Ela faz parte da vida de todas as pessoas e de todos os seres existentes no universo, pois tudo o que começa termina, tudo que inicia tem que ter um fim e assim é a nossa vida. Todos nós começamos a morrer desde o dia em que nascemos, portanto ela é uma etapa de nossa existência.
A morte pode ser tratada como um tabu por muitas pessoas e para muitos torna difícil de conviver com essa idéia e por mais que queiramos nos esconder dela, deixar de existir é tão natural como existir e podemos até dizer que ela é a única certeza que temos em nossa existência.
As pessoas podem aceitar, ou negar a morte, podem até fugir dela e tentar imaginar que ela deixe de acontecer consigo ou com alguém de sua família, mas o fato é que ela é real e que todos nós estamos programados para nascer, crescer e morrer, assim como todas as coisas existentes no mundo também surgem, um dia vai desaparecer. As árvores nascem de uma pequena sementinha, vira uma planta, cresce, se transforma numa enorme árvore, dá seus frutos e um dia seca e morre, como todas as outras coisas. Podemos imaginar também um grande baile que se inicia do nada, organizados por algumas pessoas, onde todos dançam e são felizes e numa determinada hora chega ao seu fim, como tudo e todos nesse mundo. Não podemos escapar desse destino, que para muitos é trágico, mas real. Muitas pessoas imaginam a morte como uma criatura negra e escura, coberta por uma capa preta, sem rosto e segurando uma foice afiada na mão. Essa criatura é uma invenção das pessoas, que não pode ser confundida com a verdadeira face da morte.
As pessoas que tem um forte grau de desenvolvimento religioso, geralmente têm menos medo da morte, pois é feito um trabalho espiritual e se aprende que a morte é uma passagem para uma nova vida onde tudo é melhor do que nós vivemos aqui, mas existem aquelas pessoas que não trabalham a alma neste mundo e não acreditam que existe uma outra vida, e nesta, procuram valorizar mais o dinheiro e o poder do que qualquer outra coisa, pois querem aproveitar de tudo e de todos no máximo de sua existência e se esquecem que terão o mesmo fim que todos tiveram e que todos irão ter.
O medo da morte é um sentimento inerente ao processo de desenvolvimento humano, que aparece na infância com as primeiras perdas, pois é um mundo desconhecido, somado ao medo da própria extinção que com o tempo pode aumentar ou diminuir de acordo com o ambiente e a cultura em que se está envolvido.
Muitos acreditam que após o processo da morte, depois do falecimento, se vai para um local distante onde o sol jamais ilumina e os galos nunca anunciam a volta da aurora, o cuco não canta e os cães não ladram, os gansos que vigiam as casas nunca gritam e o silêncio reina eterno. Outros crêem que a morte é irmã gêmea do sono, que entramos no mesmo processo quando dormimos e que ficamos assim pela eternidade esperando o dia do juízo.
Tudo o que se fala da morte, não passa de crença e estudos, mas ninguém tem certeza do que realmente há do outro lado e a única certeza é que ela nos espera, talvez daqui a um minuto, uma semana, um ano, dez, vinte ou cinqüenta anos. Não sabemos a data, mas sabemos que ela vem e aceitando ou não partiremos para uma viagem que ainda não sabemos o fim.
Na cidade de São Paulo, no bairro da Consolação morava um rapaz chamado João, que era uma pessoa muito conhecida pelas redondezas, e todos o conheciam por João Coveiro, pois há muito tempo trabalhava como coveiro no cemitério daquele bairro. Nesse tempo, não eram mais enterrados "no chão", ou seja, na terra como eram feitos no cemitério da Vila Formosa nessa mesma cidade. Mas João, ainda comandava o sistema de enterros nesse cemitério, pois era um dos funcionários mais antigos dali.
Todos que o encontravam na rua gritavam: "O João Coveiro", e ele respondia à todos, pois era um apelido carinhoso e provava que as pessoas o conheciam naquelas redondezas.
Um dia João estava saindo de seu emprego quando uma pessoa dentro do cemitério o procurou e disse que alguém precisava falar com ele e lhe deu um endereço. Observou o endereço que era de um casarão próximo dali, na Rua Amaral Gurgel, próximo a Rua da Consolação e quando foi falar com a pessoa, ela desapareceu como que por encanto. Achou tudo muito estranho e pensou em ignorar o acontecido, mas algo o atraiu e quando menos percebeu estava defronte ao casarão que parecia abandonado e nas redondezas tudo estava muito sujo e nem as prostitutas, gatunos e malandros permaneciam por ali. Um pavor tomou conta de seu corpo e a noite caiu, o lugar ficou mais tenebroso ainda ao escurecer, causando calafrios. As sombras pareciam sinistramente vivas, um arrepio subiu por sua espinha, a porta central estava entreaberta e suas pernas tremiam de medo. Ao entrar, havia teias de aranha por todo lado, parecia cenas um filme de terror, sem falar no cheiro de mofo, parecia abandonado há anos, mas algo de muito estranho aconteceu.
Uma luz se acendeu na parte superior da casa, subiu as escadas e o barulho da madeira dos degraus ruía e parecia que aquela casa era mal assombrada. Ao se aproximar da luz, percebeu que um dos cômodos estava iluminado e entrou, mas tamanho foi o susto, quando se deparou com um quarto escuro e uma mulher de branco com lindos cabelos negros e compridos sentada numa cadeira de costas para ele. A mulher se levantou, virou de frente, demonstrou ter uma bela fisionomia e muito surpreso ficou quando ela lhe chamou de João Coveiro, pois nunca havia visto aquela figura antes e mesmo por que não conseguia identificar seu semblante. A mulher pediu para que lhe fizesse um favor e em troca, de seu dedo tirou um anel com a figura de Santo André, era a véspera do dia do santo e entregou à João dizendo que aquele anel era uma peça muito valiosa de seus antepassados, mas que agora não precisava mais daquilo e que poderia ficar com ele e fazer o que quisesse, mas que não deixasse de entregar uma encomenda a uma pessoa e lhe passou um pacote e um endereço. João leu o endereço e percebeu que ficava próximo dali, pois era um apartamento na rua da Consolação, próximo ao Viaduto 9 de Julho e quando olhou para a mulher novamente, só viu a cadeira balançando sozinha sem ninguém mais naquele quarto e apenas uma luz iluminando aquele local onde a mulher estava. Muito assustado João saiu correndo dali e pensou em jogar o embrulho fora, mas uma voz que parecia de sua consciência dizia para não mexer naquele embrulho. Muito assustado correu mais do que estava correndo para chegar logo no destino e acabar com aquilo que o agonizava, mas algo estranho acontecia que o transportava para algo que parecia a morte, uma espécie de missão, até que chegou ao endereço indicado e tocou a campainha. Um homem de terno com outra mulher o atendeu. João disse que lhe mandaram uma encomenda e o homem começou a abrir o pacote, mas a curiosidade de João era tanta que deu uma espiada, foi quando viu um monte de ossos, um crânio de mulher com os cabelos longos e em sua mente veio a imagem daquela mulher do casarão da Amaral Gurgel. Assustado, o homem jogou aquilo no chão, pois o susto foi enorme e algumas imagens apareceram em sua mente, de uma mulher muito bela e de cabelos longos e negros dizendo que um dia voltaria para se vingar. Aquelas palavras ecoavam em sua mente, foi quando ele desmaiou, caiu no chão e na queda bateu com a cabeça numa quina e o sangue escorreu por todo lado. A mulher que estava com o homem naquele apartamento era Cíntia, que entrou em pânico, pediu a ajuda de João para levá-lo num hospital e no caminho disse que a mulher dos ossos era a ex-mulher de seu atual esposo, que ela havia desaparecido e que muitas pessoas acreditavam que ele havia sido o algoz dela, mas que nunca houve provas de crime algum. No hospital, ficaram horas aguardando, mas a pancada foi forte e o homem não resistiu e acabou morrendo.
João contou a Cíntia como conseguiu aquele embrulho e depois investigando, descobriu que aquela mansão pertencia à família do falecido e que os ossos eram realmente de sua esposa. João foi para sua casa e ficou perturbado com os últimos acontecimentos, pois sempre esteve envolvido com a morte, mas aquela história era muito macabra e numa conversa com seu chefe no Cemitério da Consolação, pediu uns dias de licença do emprego, deixando o cemitério, mas antes de sua saída, fez seu último enterro, o de Abraão, aquele homem que sofreu a queda no dia que recebeu aquele macabro presente.
No dia do enterro Cíntia ficou observando João e descobriu que ele era o coveiro do cemitério e achou muito estranho tudo aquilo acontecer, aquele misterioso presente cheio de ossos ser entregue e o entregador ser o coveiro e um dia após a morte de seu marido, aquele mesmo homem que foi o pivô daquela morte, estava lá no cemitério, ministrando o féretro de seu esposo. Aquilo era tudo muito estranho e confuso e Cíntia pensava em investigar.
Alguns dias depois, Cíntia foi ao cemitério da Consolação procurar João para saber mais sobre aquela história, mas as pessoas disseram que ele havia pegado uma licença e ficaria algum tempo num sitio em Pirapora do Bom Jesus, onde não tinha TV muito menos internet, que iria demorar a voltar e que talvez nem voltasse mais, pois algo de muito estranho havia acontecido naqueles últimos dias e ele andava esquisito dizendo que pretendia não voltar mais, sendo assim, ficou impossível localizá-lo.
O responsável pelo cemitério colocou uma nova pessoa para fazer o serviço de João, e por coincidência o homem também se chamava João, mas esse João não ficou muito tempo, pois sofreu um acidente, foi atropelado por um ônibus no cruzamento da Alameda Santos com a Rua da Consolação e morreu. Alguns dias depois desse fato, alguém comentou com Cíntia que morreu um coveiro que trabalhava no cemitério da Consolação que se chamava João. Essa notícia foi drástica, pois pensou que fosse João Coveiro do episódio da morte de Abraão e tinha esperanças de poder encontrá-lo novamente para conversar mais e tentar descobrir algo sobre aquela história que era muito estranha e que causou tantos danos, mas que para ela agora não importava mais, pois acreditava que João estava morto e comentou com essa sua amiga que lhe passou essa notícia que era João Coveiro, o homem do presente macabro que havia morrido.
Essa notícia foi se espalhando e como "João Coveiro" havia viajado, a notícia de sua morte chegou ao cemitério onde trabalhava. Na verdade não havia passado de um grande mal entendido, mas todos se perguntavam se era verdadeira e até seus amigos do cemitério que sabiam do outro João que morreu, pensava mesmo que o João anterior também havia morrido.
João Coveiro era uma pessoa muito atualizada no mundo cibernético e era portador de um computador, e-mail e tudo mais que a internet proporcionava. Como João era uma pessoa que fazia amizade com muita facilidade, todos tinham seu endereço eletrônico e através dele conversava instantaneamente sempre que necessário. As pessoas acessavam seu e-mail, mas após sua viagem sempre estava em off line. Esse fato confirmava que não estava mais em sua casa e que não acessava mais a internet e que poderia estar realmente morto. A notícia correu mundo, pelo menos o mundo dos conhecimentos dele e muitas pessoas o procuravam no cemitério querendo saber como havia sido a morte de João Coveiro.
Essa notícia foi se espalhando mais e mais até que um mês depois, João Coveiro retornou para sua casa e ao chegar, acessou a internet. Alguém do outro lado escreveu:

"João! Você está vivo? Que susto, não faça mais isso!"

Era a secretária da prefeitura onde ele sempre estava resolvendo os problemas referentes ao cemitério. João questionou o que estava acontecendo e ela novamente perguntava se estava vivo, pois as notícias que corriam eram de que estivesse morto. Ele respondeu ironicamente:
"Claro que estou. Não está teclando comigo, ou acha que quem está escrevendo para você agora é um fantasma?"

Depois dessa mensagem eletrônica, João foi imediatamente ao cemitério e mostrou sua cara, dizendo a todos que estava vivo, mas ao chegar, o susto foi grande, pois todos pensavam que ele estivesse morto, de repente o via vivinho da silva. As pessoas não paravam de procurá-lo no cemitério para saber se estava mesmo morto e sempre com o mesmo tema. O desespero tomava conta daquele homem, pois nunca imaginou que as pessoas gostavam tanto assim dele.
Mas algo estava acontecendo, pois essa notícia da morte de João se espalhou por onde devia e por onde não devia. Seus vizinhos arregalavam os olhos ao verem vivo e bonitão andando pelas ruas. No seu emprego teve que se apresentar a todos os seus superiores e até ir à prefeitura, para provar que estava realmente vivo, pois não queriam contar com um defunto no quadro de funcionários vivos.
João não sabia a origem da história de sua morte, talvez alguém distante dali que o conhecia e que quis lhe pregar uma peça, mas nunca se lembrou de Cíntia, mesmo por que ela não o conhecia tanto assim.
A notícia foi crescendo e tomando proporções que preferia estar realmente morto a ter que suportar aquele assédio fúnebre. Seu e-mail lotava de mensagens sempre com o mesmo questionamento sobre o motivo de sua morte e tinha que responder, desfiando a mesma ladainha de explicações que já estava lhe enchendo a paciência. Não agüentava mais e estava perdendo as estribeiras até que falou novamente com seu chefe e pediu outra licença, só que de alguns meses.
Ao voltar para sua casa, ligou o computador, deixou uma mensagem gravada em seu e-mail e foi novamente para o sítio de seu parente em Pirapora do Bom Jesus para tentar esquecer aquela história e nunca mais ouvir falar sobre sua morte e nunca ficou sabendo quantas pessoas acessaram sua caixa de mensagem. Todos que acessavam o correio eletrônico de João Coveiro liam uma mensagem que João havia gravado que dizia:

"Aqui é o João Coveiro, o defunto, direto do cemitério. O que foi?! Hahahaahahaha".

João ficou seis meses no sítio de seu tio em Pirapora e depois disso voltou para sua casa na Consolação, retomou seus hábitos e seu emprego, enfim sua vida normal, quanto a sua morte, como qualquer defunto que se preze, caiu no esquecimento e nunca mais se falaram nisso, mesmo por que nunca mais acessou aquele endereço eletrônico.
João ao retomar sua vida normal, achou que a decisão de desaparecer por uns tempos foi a melhor coisa que fez e depois disso tudo voltou ao seu ritmo e nessa altura dos acontecimentos, ninguém mais lembrava de sua morte, até que certa noite a campainha de sua casa tocou. João meio que sonolento, abriu a porta e levou um tremendo susto, uma mulher estava ali com um embrulho na mão, era Cíntia, aquela mesma que era casada com Abraão e que presenciou toda aquela história. Cíntia lhe entregou o pacote e disse que era uma encomenda. João meio que suspeito, abriu o embrulho devagar e quando olhou dentro dele o susto foi tremendo e o pacote voou pelos ares, espalhando ossos por todo lado e uma voz pairava pelo ar dizendo:

"João, aqui é o Abraão e voltei para te buscar."

João desmaiou, caiu no chão, bateu com a cabeça que começou a sangrar. Cíntia fechou a porta e foi embora. O corpo de João ficou estirado ali e agora ele estava realmente morto.
No outro dia, seus amigos do cemitério perceberam que ele não havia ido trabalhar e resolveram ligar em sua casa para saber se estava tudo bem, mas ninguém atendeu ao telefone e então resolveram acessar seu endereço eletrônico e como não havia tido tempo de apagar a mensagem que havia deixado, continuava aparecendo o que havia escrito anteriormente:

"Aqui é o João Coveiro, o defunto, direto do cemitério. O que foi?! Hahahaahahaha".

Seus amigos ao ler a mensagem riram do outro lado do computador comentando:

"O João é mesmo um palhaço, ainda está brincando com a morte, pois não apagou a mensagem de seu e-mail."

João estava realmente morto e agora precisava provar que havia morrido, pois ninguém mais acreditava que sua morte era real e mesmo depois de seu enterro, todas as pessoas que não compareceram, achavam que aquela nova morte era uma nova piada e João mesmo morto, agora teria que ficar vivo para sempre, pelo menos na memória das pessoas.




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