Mordendo o vazio da burra...

Por Francisco Antônio Saraiva de Farias | 08/11/2012 | Crônicas


Mordendo o vazio da burra...

José Galvão, mais conhecido como Cara Cortada, era caçador e comboieiro dos bons. Muito conhecido na região do alto acre, entre os municípios de Xapuri e Brasiléia, Zé era um amante devotado de birinaites, tomava cocal como quem toma água. Quando dava de ocorrer à falta da cocal, tomava álcool e na falta deste tomava até extrato, espécie de água perfumada que as mulheres e os homens usavam quando saiam para os arrasta-pés que aconteciam na casa de Zé Brejense, sanfoneiro dos bons ou no barracão da sede do seringal, todo final de mês. João Tibúcio, um masclador de tabaco inveterado, pernambucano, contava que Zé Galvão era homem valente e quando estava de fogo dava correria em bolivianos que, sem alternativa, atiravam-se nas águas barrentas do rio e o atravessavam a nado, de volta pra terra mãe, Cobija, cidadezinha boliviana que fica na outra margem do Rio Acre, sob pena de serem espocados na porrada pelo já caldeado e intolerante Zé Galvão. E foi exatamente numa dessas correrias que um boliviano mais afoito riscou de faca às foices do Zé. Por conta disso é que o Zé Galvão passou a ser apelidado de Cara Cortada. No início não gostava, invocava-se, irava-se, reagia forte, depois foi se acostumando até nem mais ligar. Ele e Chico Sansão, amigos de muitos janeiros, tocavam um comboio formado por quatro burras e quatro jumentos, dez animais ao todo, contando com as burras que serviam de montaria para os dois.

O comboio era o único meio de transporte de carga e pessoas naquelas plagas, principalmente doentes, deslocando-se nos varadouros das colocações de seringa para a margem do rio, onde ficava a sede do seringal, e vice-versa.

Na sede do seringal destacavam-se a suntuosidade da casa do seringalista e o barracão, onde ficavam armazenadas as mercadorias que serviam de aviamento para a seringueirada que morava nas dezenas de colocações do seringal. Transportar mercadorias do barracão para aviar os seringueiros que moravam em barracos encravados no meio da mata, bem próximo das estradas de seringa e retornar com carregamento de borracha, era a principal função do comboio.

No seringal as mercadorias eram comercializadas a peso de ouro. Era uma carestia danada, proposital, para endividar a mais não poder os seringueiros e assim prendê-los por mais tempo nas colocações cortando seringa e produzindo borracha para o dono do seringal. Muitos trabalhavam até aos domingos na esperança de juntar um bom dinheiro e voltar pra casa, para o seio da família e da terra natal, longe de imaginar que esse sonho terminaria de forma trágica, traiçoeira, motivada pela ganância e pela maldade do seringalista e de seus jagunços...

Os exércitos de seringueiros eram compostos em sua maioria de migrantes nordestinos, principalmente cearenses e pernambucanos, que foram batizados pelos “gatos” e pelos seringalistas de arigós, em razão do total desconhecimento da forma de vida no meio da mata virgem. Dezenas morreram à míngua, vitimas de malária, picadas de animais peçonhentos e ataques de onças, durante os cortes de seringa. Viviam em condições subumanas, em regime de escravidão, totalmente desguarnecidos e ignorados pelas leis e pelos governos estadual e federal. Não tinham sequer o direito de ter mulher como companhia, nem de caçar, pescar, botar roçado de arroz, feijão, milho, macaxeira, para, segundo a lógica gananciosa dos patrões seringalistas, terem mais tempo para se dedicar ao corte da seringa.

Muitos dos que hoje recebem pensões de ex-seringueiros, que de uns tempos pra cá foram justamente reconhecidos por lei federal como soldados da borracha, ignoram completamente o sofrimento brutal a que foram submetidos os seus ancestrais.

Contam os mais antigos, que desse modo selvagem de produção geralmente advinham duas graves consequências: 1. O total endividamento com o patrão, em virtude do alto preço das mercadorias vendidas no barracão; 2. Prolongados períodos de abstinência sexual, motivos pelos quais alguns dos cabras, não mais suportando o martírio, viam-se obrigados a fazer sexo com animais ou então a furar buracos nas bananeiras onde enfiavam o “trabuco” em movimentos de vai e vem... Alguns chegavam até a amancebar-se com burra ou jumenta, alimentando pelas mesmas um amor incontido e um ciúme quase doentio.

Arroyo, um índio velho que por muitos anos morou em seringal, contou-me que numa certa madrugada ouviu uma voz rouca que vinha de trás do barracão, mais ou menos assim: cara comprida me dá um beijo, cara comprida eu só não te dou um sapato porque tu tem o pé redondo...

Pois bem, Zé Galvão e Chico Sansão tocavam mais um comboio pelo eixo do varadouro, quando de repente avistaram um quatipuru vermelho saltando acrobaticamente de um lado pro outro do varadouro, mas, calculando mal à distância, acabou caindo de cabeça, estatelando-se no chão duro do varadouro, onde ficou totalmente inerte. Pensando que o quatipuru vermelho estivesse morto, Chico Sansão o amarrou com envira na barrigueira da sela da burra, e continuaram tocando o comboio.

Vinte minutos depois, quiçá estimulado pelo trote da burra, o quatipuru despertou e danou-se a morder o vazio da burra, que, saltando e coiceando, desabou relinchando tabocal adentro totalmente desgovernada.

Duas horas depois Zé Galvão conseguiu chegar à beira duma antiga vertente onde enxergou a burra bebendo água e, logo ao lado, o Chico Sansão estendido em cima d’uma tábua velha de lavar roupa, com o rosto e os braços lavados de sangue, esguichado dos sulcos causados pelos espinhos de taboca e pelos arranha-gato durante o desembestar da desgraçada da burra, mantendo fortemente apertado na mão o quatipuru vermelho causador de todo aquele rebuliço, agora, sim, mortinho da silva, por asfixia!...

Zé Galvão, tentando conter o riso, perguntou ao Chico Sansão se poderia fazer fogo pra ferver água pra pelar o quatipuru.

Vendo a cara de gozação do Zé Galvão, Chico Sansão esticou o braço direito no rumo dele e, sufocando os gemidos de dor, respondeu ao Zé com um estiloso cotoco!

Hoje, o Zé Galvão está contando histórias no céu...