Molière: Uma Comédia Social e Pessoal

Por Ana Catarina Maia | 10/04/2010 | Literatura

MOLIÈRE: UMA COMÉDIA SOCIAL E PESSOAL

Ana Catarina Maia

RESUMO: A comédia é um gênero que revela grande inteligência emocional do autor. O Marido da Fidalga [1668] pode ser vista como uma das ferramentas que ajudam a revelar este lado da personalidade de Molière [1622 – 1673], que escreve a peça em um dado momento de sua vida onde se percebe uma maturidade como dramaturgo, e uma sagaz observação dos costumes da alta sociedade da época. Além do desejo de mostrar aos seus leitores as impurezas, Molière também observava de forma muito crítica, pois um pouco de sua personalidade pessimista era mostrada.

PALAVRAS-CHAVE: Molière; Comédia; Sociedade.

O Renascimento, iniciado no século XVI, firmava-se cada vez mais na Europa. Esta se encontrava desprendida completamente do medievalismo. A literatura da época criava personagens estereotipados, buscando influências na sociedade. A dramaturgia e o teatro também buscavam esta perspectiva de mundo. A tragédia trazia valores como a dignidade como verdade absoluta de uma sociedade. Trazia uma alta classe média e uma aristocracia que usavam vestes caras e muitas jóias. Já a comédia satirizava essa dignidade exacerbada e deixava estas classes quase que nuas, ou apenas usando sua roupa de baixo, que acabava revelando o que este segmento da sociedade escondia: suas impurezas.

1. Como explicar a sociedade através de O Marido da Fidalga.

No contexto da comédia, que internalizava os típicos integrantes daquela sociedade suja, encontramos personagens como Angélica e Clitandro, da peça O Marido da Fidalga, escrita por Molière [1622-1673] em 1668. Angélica é a típica nascida em berço de ouro e Clitandro, um fidalgo. Ele se apaixona por ela, e envia seu criado para cortejá-la em sua residência, sem que seu esposo, João Dandim saiba (em relação a este nome, podemos entender uma vontade do autor de caricaturar a figura do marido tolo. O nome Dandim assemelha-se ao vocábulo "doidinho", conferindo ao personagem um ar de pessoa tola, estabanada). Quando Clitandro pede para seu criado, (Lucas) envia-la um recado, este é flagrado pelo marido de Angélica, que começa a fazer perguntas sobre ele. Sem saber que João é o verdadeiro dono da casa, e esposo de Angélica, Lucas conta que estava apenas deixando um bilhete para a senhora daquela casa, a mando de seu patrão, Clitandro, e que no bilhete havia um pedido de um encontro às escondidas. Este amor "artificial" está muito presente nas comédias de Molière. Essa preocupação em mostrar o falso amor, os encontros nem um pouco inocentes entre damas e cavalheiros muito bem vistos pela sociedade e cobertos pelo pecado são pontos altos de suas obras. Assim como a traição que está por vir, há também a exposição, ao ridículo, da figura do marido, João, que fica furioso e decide contar aos pais de sua esposa o que está havendo. Esta comédia revela-se esclarecedora daquela alta sociedade da época. Tendo casado com um homem menos rico que ela, Angélica perde seu respeito pelo marido, acusando o próprio de ter forçado este casamento, por ocasião de uma conversa com seus pais. É revelado, neste primeiro ponto, um jogo de interesses financeiros. Angélica corresponde ao sentimento de Clitandro, sabendo que ele é um fidalgo, homem de dinheiro e família rica. Percebe nele a oportunidade de ter um marido que possa respeitar e que, diante da sociedade, não a deixe "desrespeitada". Quando João encontra o Senhor e a Senhora de Cascogrosso, conta-lhes tudo. Os pais de Angélica, por sua vez, não acreditam em uma palavra sequer, acusando João de levantar falso sobre a conduta de sua filha. Durante a conversa, aproximam-se Angélica e Clitandro. Os dois são interrogados pelos pais da moça. Clitandro afirma nem sequer a conhecer. Angélica fica profundamente consternada e encena uma decepção com seu marido, externando uma tristeza grande por estar sendo julgada de forma tão injusta. Aí fica claro que esta mulher é possuidora de um cinismo muito grande. Primeiro, ela engana o marido dentro de sua própria casa. Depois, exagera na forma de dizer que está inquieta com o que está sendo falado ao seu respeito e faz todos acreditarem em sua inocência. Claudina, a criada de Angélica, que assiste toda a cena, instiga Clitandro a vingar-se desta acusação. Clitandro apenas aceita o pedido de desculpas vindo de João (que foi forçado pelo pai de Angélica). Mais tarde, já de volta a casa, Claudina reencontra Lucas e o culpa pela confusão causada mais cedo. Diz que ele é um tagarela, que contou sobre o bilhete justamente à única pessoa que não deveria saber: João.

Lucas conta-lhe que está apaixonado, e jura amor à Claudina e esta se preocupa apenas em pedir que ele seja muito cuidadoso e nada ciumento, pois ela não se agrada em ver um homem tentando controlar sua vida. A figura feminina nesta obra é à frente de seu tempo, com preocupações em relação à sua liberdade. A preocupação é tanta que o leitor chega a imaginar que a personagem preferiria ser livre, mas como o casamento é uma instituição da sociedade, ela o trata como uma obrigação.

Em outra cena vê-se João, Angélica e Clitandro. Sem que João perceba, Clitandro acena com a cabeça para a moça, e esta retribui. Enquanto os dois se enamoram, João reclama e fala-lhe que ela deve respeitar seu marido. João acaba avistando Clitandro, em um momento que Angélica acena novamente com a cabeça e ele pergunta com quem ela está falando. Clitandro se retira da cena fazendo um cumprimento exagerado a João. É aí que o marido, inconformado, despeja toda a sua insatisfação com o que está acontecendo, considerando que Angélica abusa de suas boas intenções. Ele diz que não gosta do comportamento de sua esposa, tampouco de saber que a mesma está sendo cercada por um fidalgo sem escrúpulos, que sabe da condição civil da moça, mas não desperdiça momentos de flerte. João indaga sobre seu "papel" nessa história toda. Angélica diz não se incomodar com as atitudes de Clitandro, e ainda diz que seu "papel" deveria ser "o de um homem de bem, que, grato da conquista, folga em ver sua esposa apreciada e bem quista.". Angélica retorna à casa com seu marido, mas nas cenas que se seguem, continua com o mesmo comportamento. Recebendo recados, devolvendo os recados, recebendo a visita do criado de Clitandro, etc.

Em um dos momentos da peça, Clitandro visita, juntamente com Lucas, a sua amada, Angélica. João avista Lucas e logo imagina que Clitandro esteja por perto. Vai buscar os pais de sua esposa, que concordam em acompanhá-lo até sua casa para flagrar Angélica com Clitandro. No exato momento que Angélica está se despedindo de sua visita, João chega a casa, acompanhado de seus sogros. Claudina avista os três e avisa à sua patroa, que logo trata de fazer uma cena e fingir que está indignada por ver que Clitandro não tem respeito por ela, pois sabe que é casada e ainda assim a corteja. Todos ao redor acreditam, e começa então uma idolatria pela figura de Angélica, agora considerada uma "jóia". O único que não acredita é João, que, durante o desenrolar da cena, à parte, julga-a "traidora". Para a tristeza de João, seus sogros acreditam na cena que vêem, e julgam importante que o rapaz se perdoe pela injustiça cometida.

Em outra cena, novamente Angélica encontra-se às escondidas com Clitandro. Desta vez ela ousa sair de casa na escuridão da noite, juntamente com Claudina. João acorda, pois ouve sua esposa descer as escadas. Na rua, encontra-se com Lucas, criado de Clitandro, que, imaginando ter encontrado Claudina, diz-lhe que Angélica e seu amo estão enfim a sós e os deixaram livres. João escuta tudo em silêncio e depois resolve falar. Lucas percebe que não se trata de Claudina e sai. Depois, João chama seu criado, Nicolas, e manda-o buscar os pais de Angélica, a fim de presenciarem a cena. Entra em casa e tranca a porta por dentro. Quando as duas tentam entrar em casa após s despedir dos rapazes, dão de cara com a porta trancada, e com João na janela, rindo-se de alegria por finalmente poder mostrar aos seus sogros a verdadeira face de sua esposa. Sem escolha, Angélica tenta, de toda maneira, convencê-lo a abrir a porta. Sem sucesso. Até que ela ameaça matar-se. João não acredita. Ela simula a própria morte e um silêncio constrangedor se faz presente na cena. João desce as escadas e sai na rua, para confirmar se sua esposa havia mesmo cumprido sua "promessa". Ao sair, Angélica e Claudina entram na casa e trancam a porta por dentro. Quando João regressa, implora para que abram a porta. Neste momento, chega o Senhor e a Senhora de Cascogrosso. Angélica, da janela, inicia sua farsa mais uma vez, ao iludir seus pais sobre a má conduta de seu marido. Fala que João é alcoólatra, e que saiu de casa à surdina da noite pra beber. Mais uma vez seus pais acreditam na cena que vêem e ordenam novamente que João peça perdão a Angélica. Assim terminamos a leitura da comédia, que satiriza as altas classes de uma sociedade impura e hipócrita.

2. Molière: sua vida e comédia social.

Molière dispõe de tanta facilidade para descrever o segmento social a qual se destinou a focar, que nos faz pensar como conseguiu penetrar tão perfeitamente nos costumes e pensamentos desta classe.

Em 15 de janeiro de 1622 nascia Jean-Baptiste Poquelin. Seu pai era tapeceiro e deu-lhe todos os confortos possíveis, sem o estragar com os luxos. Sua mãe (Marie Cresse) morrera quando tinha 11 anos, no ano de 1633. Sua madrasta, quatro anos mais tarde. Um pouco depois da morte de sua segunda esposa, o velho Poquelin tornou-se tapeceiro da família real francesa. Assim, Molière, como era conhecido, estava em contato muito próximo às famílias ricas da alta classe francesa. Aprendeu, usando o método da observação, como eles se comportavam e que tipos de conversas tinham além da maneira como se vestiam. No ano de 1639, Molière completou sua formação acadêmica.

Sua vida pessoal fora infeliz, o que justifica por vezes sua visão crítica sobre os fatos. Sua obra foi marcada pela combinação perfeita de espírito, inteligência e personagens densos, que retratavam a hipocrisia que o cercava. Sua obra é escrita, em quase sua maioria, em versos alexandrinos, sendo bem demonstradas as noções de tempo, lugar e espaço. Em um momento de sua vida, precisou optar entre seguir a carreira do pai, ou estudar Direito. Optou pelo último. Mas o fascínio pelo teatro exercia uma atração muito forte e em 1643 fundou a troupe de teatro L'Illustre Théâtre, que faz algumas atuações na província, e em Paris. Aos vinte e cinco anos não mais fazia parte desta companhia e estava agora perambulando e ansiando por criar uma bem-sucedida companhia teatral.

Em Lyon sua estada foi enriquecedora. Deparou-se com a Commedia Dell'arte e seus estereótipos marcados, como a figura do velho lascivo e pai de família, os enamorados, os criados cômicos, os pedantes, etc. Molière sentiu a necessidade de reescrever essa prática artística, tornando o grupo de atores nos comediantes mais queridos do reino. Ali também escrevera mais peças, combinando a maneira italiana de escrever (a qual era admirador), com sua observação sobre a vida francesa. Durante os anos que se seguem, escreve peças como O Misantropo, Tartufo, Escola dos Maridos, O Marido da Fidalga, O Aturdido (que foi a sua primeira obra importante), e muitas outras mais que fizeram deste autor um nome em ascensão na França.

Um dos mais famosos momentos da biografia de Molière é a sua morte, que se tornou numa referência no meio teatral. É dito que morreu no palco, representando o papel principal da sua última peça. De fato, apenas desmaiou aí, tendo morrido horas mais tarde em sua casa, sem tomar os sacramentos já que dois padres se recusaram a dar-lhe a última visita, e o terceiro já chegou tarde. Diz-se que estava vestido de amarelo, o que gerou a superstição de que esta cor é fatídica para os atores.

ABSTRACT: The comedy is a genre that reveals great emotional intelligence of the author. Le Mari De La Noble [1668] can be viewed as one of the tools that help to reveal this side of the personality of Molière [1622 to 1673], who wrote the play in a given moment in his life where he sees maturity as a playwright, and an astute observation of the mores of high society of the time. Beyond the desire to show his readers the impurities, Molière also observed in a very critical way, because some of their worst personality was shown.
KEYWORDS: Molière, Comedy, Society.

REFERÊNCIAS

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2 ed. São Paulo: Perspectiva. 2005. 578p.

GASSNER, John. Mestres do Teatro I. São Paulo: Perspectiva. 1974. 408 p.

AQUINO, Ricardo Bigi de. Olhares Sobre Textos e Encenações. Alouca de Chaillot. 2007, p: 351 – 366.

MOLIÈRE. A Escola Dos Maridos; O Marido Da Fidalga. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes., 2005. 218 p.