Moedas para o Barqueiro
Por Peterson Sá de Freitas | 02/12/2010 | Contos
Moedas para o Barqueiro
Pude senti-lo, estava no outro cômodo, na sala ou na cozinha. Deitado na cama com os olhos ainda pregados não ousava abri-los. O ar pesava sobre meu corpo e minha respiração era ofegante, em vão tentava dormir a fim de esquecer aquela sensação. Minhas veias congelaram, senti um arrepio na espinha, pois uma sombra estava alisando meus pés.
Em um salto levantei da cama, minha esposa ficou assuntada, foi apenas um pesadelo.
? Está tudo bem querido?
? Sim amor. Não foi nada de mais, apenas tive um pesadelo.
? Você me assustou, estava gemendo.
? Desculpe querida, volte a dormir. Não foi nada.
Acabara de perder o sono, eram três horas da manhã. Levantei para tomar um copo d?água. Ao sair do quarto fiquei observando o vidro da porta basculante da cozinha, a escuridão era sinistra. Tentei controlar minha tensão. Meu coração ainda estava um pouco acelerado.
Depois de uma golada d?água voltei para a cama. Minha esposa já estava dormindo. Abracei-a e preguei os olhos.
Quando acordei senti os primeiros raios de sol do dia, eram sete horas da manhã. Minha esposa dormia feito uma criança recém nascida, parecia um anjinho. Beijei sua face. Ao sair do quarto fechei a porta sanfonada procurando não fazer barulho. Abri a janela do quartinho de bagunça e da sala, deixando o ar entrar arejando a casa.
Fui até a sala e, antes de sentar no sofá liguei a televisão e o Playstation II, a imagem do jogo Fatal Frame III apareceu na tela. Estava iniciando aquele jogo novamente depois de terminado a primeira vez, agora queria resolver todos os puzzle que havia deixado para trás. Minha câmera fotográfica estava super poderosa, exorcizava qualquer fantasma com apenas uma foto. Avancei muito rápido no jogo. Quando entrei por uma porta que acabara de quebrar o selo surgiu uma animação onde meu personagem leva um susto com a matilha de fantasmas vindo em sua direção. Tudo aconteceu ao mesmo tempo em que minha esposa abriu a porta sanfonada com força fazendo rugir o maior barulho.
Assustei-me pulando do sofá, meu coração disparou, ela ainda estava meio zonza e ficou me olhando de maneira duvidosa. Espreguiçou-se. Levantei e fui em sua direção. Dei-lhe um abraço enquanto ela me retribuía da mesma maneira.
? Fica sonhando coisas ruins e ainda fica jogando Fatal Frame. Quero ver você me acordar a noite que vou te jogar para fora da janela.
? Relaxa amor, não vou acordar você.
? Quero só ver.
Depois de uma gostosa ducha, juntos tomamos o café da manhã e fomos escovar os dentes.
Iríamos para o Anime de amanhã, domingo, no Tatuapé, e minha esposa faria cosplay de uma das personagens do jogo Fatal Frame. Marcamos de sair naquele dia para comprar as coisas que faltava para o evento.
O dia passou normal como outro qualquer. Durante a noite, antes de dormir, assistimos ao filme Jogos Mortais. Parece ironia ter um pesadelo e ainda ficar jogando e assistindo filmes de terror. Não tinha o costume de ter sonhos ruins mesmo sendo impressionado com cenas cinematográficas, mas aquela noite prometia ser diferente de todas as outras.
Estávamos dormindo e novamente acordei, do nada, o silêncio pairava sobre a atmosfera do quarto. Surgiu um homem com uma túnica preta cobria seu corpo e com um capuz escondia seu rosto. Meu coração travou, por um tempo não consegui respirar, fiquei petrificado com sua imagem. Seria um ladrão? Como ele entrara na casa? Pelo que me lembro tinha trancado todas as portas e janelas e as mesmas eram dispostas de grades de ferro. Aos poucos o homem se desintegrava no ar até desaparecer por completo.
Tentei gritar com o intuito de acordar minha esposa, foi em vão, ela dormia feito uma pedra. Tomando coragem me levantei da cama e fui olhar os outros cômodos, mesmo tremendo de medo estava disposto a encarar qualquer coisa que aparecesse.
Procurei pelo quartinho, a cozinha, a sala e depois no banheiro. Nada. Aquela imagem ainda me impressionava. Voltei a verificar todas as fechaduras. Trancadas. Voltei à porta do quarto, assim que entrei fiquei atônito, perdi todos os sentidos.
Eu estava me vendo deitado na cama. Como poderia estar de pé e ao mesmo tempo me olhar deitado? Foi quando minha esposa acordou.
? Oi amor?
Ela não podia me ouvir. Estendendo a mão sobre o balcão da cama, pegou seu copo d?água e bebeu, depois deu-me um abraço, pelo menos no eu que estava deitado.
? Amor? Está com frio? Está super gelado. Você está bem?
O eu deitado não respondeu uma palavra. Ela esticou as cobertas cobrindo-me na tentativa de aquecer-me. O cachorro na rua começou a latir com insistência.
? Agora não vou conseguir dormir mesmo.
Ela murmurou. Abraçou-me e não demorou para conseguiu cair no sono novamente.
Fiquei estático em presenciar toda aquela cena. A única coisa engraçada era que agora eu ouvia o cachorro latir de forma estranha, até parecia urros saindo do inferno.
Abri a janela da sala a procura do cachorro. Nada. O som dos latidos ainda o denunciava. Peguei as chaves em cima do balcão da cozinha, abri a porta e comecei a descer as escadas sentido a garagem.
Algo estranho estava acontecendo. Os degraus das escadas ardiam em chamas e, curiosamente não queimavam meus pés.
Continuei descendo as escadas até me aproximar do portão, meus olhos dançaram pelas ruas a procura do maldito cachorro que urrava um som gutural parecendo um vocalista de uma banda de Death Metal. Nada. A rua estava deserta, nenhuma luz foi acessa pela vizinhança, estranhamente seu latido, por mais anormal que fosse, não incomodava ninguém. Parecia que eu era o único que podia ouvi-lo.
Abri o portão e sai a sua procura, o arrependimento não demorou a tardar, não deveria ter feito aquilo. Uma fungada em meu cangote. Meu corpo todo estremeceu. Engoli em seco. Girei sobre os calcanhares. O guardião do inferno estava ali, parado bem na minha frente. Seus olhos estavam em chamas, possuía três cabeças e a saliva caia de sua boca. Ficou me encarando um curto período de tempo. Fiquei sem reação, não consegui pensar em nada.
Um urro foi o suficiente para fazer com que meu inconsciente fizesse minhas pernas se movimentarem. Em um ato de desespero corri feito um louco para fugir daquela criatura. Sentia o chão tremer com seus passos. Logo eu seria pego. Morria de medo.
De repente a cerração caiu cobrindo totalmente minha visão. Tropecei em algo que não pude distinguir. A queda me fez bater a cabeça em algum objeto duro, desmaiei.
Quando acordei ainda era noite, me encontrava em um lugar montanhoso cercado de águas, próximo ao litoral.
Ao longe observei um homem remando em um barco, vindo em minha direção. Aquele pesadelo já estava indo longe demais. Belisquei meu braço a fim de acordar. Surpresa. Aquilo não era um pesadelo, era real.
O barqueiro atracou o barco e tirou o capuz. Era a morte me estendendo a mão.
? Duas moedas, levarei sua alma para o paraíso e descansará em paz nos campos elísios por apenas duas moedas.
Enfiei as duas mãos no bolso da calça, não havia moedas. Não havia nada, nem mesmo a carteira trazia comigo. O que um morto faria com uma carteira ou dinheiro no bolso? O que um infeliz como eu pode fazer se não é capaz de dar a morte duas moedas para que seja levado ao paraíso além das águas? E agora?
? Não tenho moedas, mas por favor, deixe-me lhe contar minha história.
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? Atentamente a morte ouvia os fatos que me trouxe aquele infortúnio, tudo o que eu disse a vocês entrou em seus ouvidos, esperava que ela se compadecesse de minha causa e me levasse embora sem a necessidade das duas moedas.
? E qual foi a resposta?
? Sinto muito rapaz, morrerá no inferno. Comecei a sentir o cão fungar em meu cangote enquanto observava seu barco se distanciar ao longo do horizonte.
? E então você acordou?
Seus amigos riam, Pedro levantou a voz em meio aos risos.
? Você tem uma imaginação fértil, parabéns! Toma aqui duas moedas. ? Mais risos. ? Quando isso acontecer de novo você não terá problemas. Mais uma rodada de cerveja por minha conta, a história foi ótima. De quem é a vez agora?