MISSÃO NA SERRA DO CAPARAÓ

Por José Marinho Filho | 02/01/2018 | Crônicas

José Marinho Filho (*)                              

Generalidades.

                 O grande filho de Minas Gerais, saudoso Coronel PM Saul Alves Martins¹, no hino à Polícia Militar mineira, assim afirma e enfatiza:

“Filhos de Minas,

Erguendo a voz,

Anos após, anos lutaram,

Pelas doutrinas que eles sonharam”

 

                Os versos do renomado mestre das letras e do folclore estão sendo, aqui relembrados, porque podem ser entendidos como sinônimo de coragem, bravura e defesa dos ideais dos integrantes da Polícia Militar de Minas Gerais, que foram colocados a serviço do Estado e do País, em relevante momento histórico estadual e nacional, em que a tropa mineira foi chamada a atuar como Força Pública de combate à Guerrilha instalada na Serra do Caparaó, Minas Gerais. A tropa mineira era constituída por quatro companhias de Polícia Militar, sendo uma do 11º BI, comandada pelo Capitão Jacy, outra do 9º BI, comandada pelo Capitão Jorge, e outra do Batalhão-Escola, comandada pelo Capitão Lima, com atuação direta na Serra.  A outra Cia, do 2º BI, era comandada pelo Capitão Saulo, cuja atuação se deu na localidade de Pedra Menina.

                Essa união de forças policiais militares, para aquela nobre missão, ocorreu porque, após os acontecimentos levados a efeito na Revolução de 31 de março de 1964, (Sim! Isso mesmo! Revolução! Em seus legítimos anseios, quais sejam impedir que os adeptos do comunismo internacional implantassem no Brasil um regime totalitário, contrário aos ideais de liberdade e tradições brasileiras), alguns dos simpatizantes daquele regime constituíram e integraram células extremistas com a finalidade de dar continuidade aos seus anseios políticos contra a democracia. Existiam, à época, diversos movimentos guerrilheiros contrários aos ideais do Movimento Revolucionário de 31 de março de 1964, registrem-se: O MR8 – Movimento Revolucionário Oito de Outubro; o PCB – Partido Comunista Brasileiro; ALN – Aliança Libertadora Nacional; e VAR PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, tido como dos mais bem treinados em guerrilha urbana e rural, dentre outros.

 

A Participação da Companhia do Batalhão-Escola no combate à Guerrilha na Serra do Caparaó.

Embora histórica, a presente narrativa não pretende abordar todos os acontecimentos ocorridos no combate à Guerrilha na Serra do Caparaó, nem a atuação das Cias. das Unidades do Interior de Minas, acima referenciadas, mas somente alguns aspectos da atuação da Companhia de Polícia Militar do Batalhão-Escola da PMMG, à qual integrei e, por isso, guardo na memória os fatos que aqui evidencio.

Pois bem.

Estamos em abril de 1967.

Estamos também no Batalhão-Escola da Polícia Militar, unidade da Capital que recebeu do Alto Comando da Corporação a nobre missão de enviar seus integrantes às localidades de Caparaó Velho e Caparaó Novo (atualmente, constituem o município de Alto Caparaó), em Minas Gerais, onde os órgãos de inteligência da Corporação, do Estado e do Exército brasileiro detectaram a presença de cerca      de

_________________________________________________________________

  1. Saul Alves Martins, Coronel PM, Escritor, Folclorista, Doutor em Antropologia.

quarenta homens, integrantes do MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário, desertores ou demitidos das Forças Armadas brasileiras e, também, por simpatizantes do regime comunista que, para alcançarem seus objetivos, bivacaram naquela região.

A estratégia de bivacar em locais de difícil acesso e mobilidade era utilizada pelos guerrilheiros, como forma de desgastar a tropa, provocando abatimento moral, enfraquecendo-a, ao mesmo tempo em que tornava difícil a própria localização, pois como se sabe o bivaque utiliza os recursos naturais da região, o que dificulta a sua descoberta, tanto por terra quanto pelos ares. Também visava causar despesa com o deslocamento da tropa, a fim de abalar os cofres públicos e impedir ações mais contundentes contra eles - os guerrilheiros -, que demandassem maiores recursos financeiros.

                Constituída a tropa da Capital – uma Companhia PM comandada pelo Capitão Antônio Gonçalves de Lima, composta por 90 (noventa) homens, dentre os quais este autor, que fui o último a ser relacionado, mesmo assim, por intervenção do tenente PM José Carlos de Souza, Almoxarife da Unidade - que era o meu chefe direto – dizendo que não queria prescindir de minha colaboração naquela Missão, demonstrando sua confiança neste seu auxiliar, fato que até hoje me envaidece. A decisão de incluir-me na tropa foi tomada pelo Major Osvaldo Martins, que era o Subcomandante da Unidade.

                No dia 05 de abril, anterior à partida, o Tenente-Coronel Heimar Matos, então Comandante do Batalhão-Escola, dirigiu aos seus policiais militares palavras de incentivo, coragem e alerta, das quais ainda me lembro do seguinte trecho:

 

“Venho, como Comandante, dizer-lhes que a missão que vocês recebem hoje e a situação que irão vivenciar são idênticas à situação da Guerra do Vietnã, onde se combate a guerrilha urbana e rural. Vocês vão enfrentar guerrilheiros urbanos e rurais, que atuam na cidade de Caparaó e também se encontram entrincheirados na Serra do Caparaó, em Minas Gerais. As autoridades do Estado de Minas e da Polícia Militar mineira confiam em vocês, no cumprimento desse dever que lhes é destinado. Todos vocês estão de parabéns por terem sido os escolhidos para essa difícil, porém nobre, missão. Vão e cumpram o seu dever”.

 

                No dia seguinte, 06 de abril, pela manhã, partimos rumo ao nosso destino. A viagem foi feita em caminhões cobertos com lonas e que, em suas carrocerias, continham bancos de madeira, nos quais a tropa seguiu sentada, e que durou cerca de seis horas. Os apetrechos militares foram conduzidos pelos próprios soldados. Chegamos à cidade de Caparaó Velho situada na Zona da Mata, 326 km, distante de Belo Horizonte, onde a Cia recebeu as ordens do Comandante do Dst AG ECAS (Exercício de Cooperação Armas e Serviços), que era um Major do 11º BI. Dali, fomos para o distrito de Príncipe (ou São João do Príncipe) que fica no Estado do Espírito Santo, próximo à divisa com Minas Gerais. Naquela localidade, nas proximidades da Serra, a Cia ficou acantonada por algumas horas, para alimentar-se e recuperar-se do cansaço pela viagem realizada, quase sem conforto. Naquele mesmo dia, à tarde, iniciamos a subida da Serra do Caparaó. A Companhia, devido à dificuldade de caminhar em terreno íngreme e também ao peso do armamento e equipamento, próprios para a missão, foi disposta em fila indiana, para facilitar o deslocamento na trilha estreita e acidentada.

                Eu era terceiro sargento PM, comandante de Grupo de Patrulha, e juntamente com os colegas graduados, também comandantes de Grupo, tivemos todos que ajudar no transporte das pesadas caixas de munição porque os soldados demonstravam cansaço, com o esforço físico despendido na subida da Serra. Levamos cerca de oito horas para completá-la e alcançarmos o local destinado ao acampamento da tropa, na crista militar, aonde chegamos por volta das 23h00. Ali, quase no topo da serra, acampamos e, no dia seguinte, às 06h00, dali, partimos para o cumprimento do dever, qual seja, o vasculhamento da área, na Operação denominada “Pente-Fino”.

A estratégia utilizada para tentar realizar a prisão de guerrilheiros, na Serra, constituía-se de levantamento prévio dos locais onde os guerrilheiros pudessem ser encontrados, o que era conseguido mediante coleta de informações nas fazendas e moradias locais, bem como através do plano de vasculhamento da área feito pelos oficiais da companhia.

No campo, a tática policial militar era a utilização de grupos de patrulha, que, durante o dia ou à noite, deslocavam-se visando à abordagem dos guerrilheiros rurais, dependendo do local onde se entrincheirassem ou mesmo bivacassem. A ordem para as ações era agir com cautela e sem violência, mesmo porque a missão era prender e não exterminar os guerrilheiros, já que, embora de ideais distintos, todos somos brasileiros.

Nas cidades de Caparaó Velho, Caparaó Novo e nas localidades próximas, a estratégia era empenhar o serviço de inteligência da tropa (Integrantes das Cias do 11º BI, 9º BI e Batalhão-Escola) visando buscar informações sobre os guerrilheiros urbanos e os locais onde pudessem ser encontrados. Para tanto, tornou-se necessário ganhar a confiança da população local, o que se conseguiu, mediante a utilização de mecanismos para a satisfação de necessidades básicas dos habitantes (atendimento religioso, com a celebração de missas, e atendimento médico, inclusive com a atuação da ACISO (Ação Cívica e Social) da PMMG.

Na área urbana, a tática empregada assemelhava-se à própria estratégia, pois se constituía na utilização de integrantes do serviço de inteligência da tropa, em trajes civis, adotando-se os mesmos hábitos dos habitantes do lugar e com eles se confundindo, de modo a facilitar a coleta de informações. Talvez, por tudo isso, não tenha havido resistência, feridos ou mortos! 

                Os dias passavam. A busca aos guerrilheiros era incessante. Fazíamos incursões nos locais, onde o serviço de inteligência da Companhia indicava a presença deles, tanto durante o dia quanto à noite. O desgaste da tropa fazia-se sentir. O Capitão comandante da Companhia e os oficiais comandantes de Pelotão reuniam os graduados para transmitir-lhes as ordens, que eram repassadas aos cabos e soldados para o imediato cumprimento, em estrita harmonia policial militar. Assim, não tivemos nenhum caso de indisciplina, nem descontentamento. O moral da tropa era elevado. A alimentação da tropa era feita com rações frias fornecidas pelo Exército Brasileiro, mediante a utilização de aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira).

                Na Serra, mesmo durante o dia, fazia muito frio, mas, à noite, era quase insuportável. Então, o sargento que comandava a guarda do acampamento, à noite, percorria as trincheiras naturais ou feitas pela tropa, a fim de verificar a situação física e moral dos soldados que, apesar de usarem mantas para se aquecerem, após a busca diária aos guerrilheiros, vencidos pelo cansaço, dormiam juntos uns aos outros, para suportar o intenso frio, mas, às vezes, alguns se separavam e ficavam ao relento, quase gelados. Em diversas oportunidades, eu mesmo tive que juntar alguns militares aos demais para que se aquecessem e, também, cobrir aqueles que se encontravam descobertos naquela penosa situação fática.

O tempo passava. A alimentação, fornecida pelo Exército Brasileiro, foi escasseando até acabar em definitivo. O comandante da Companhia reuniu a tropa e avisou sobre o término da alimentação, mas tranqüilizou a todos, anunciando que uma das reses de fazenda local estava sendo adquirida para alimentar a tropa, durante alguns dias, e que o Exército Brasileiro iria enviar mais rações, por meio de aviões, lançando-as de paraquedas.

Assim aconteceu. Recordo-me que a rês adquirida foi sacrificada por um sargento PM e o corte e as preparações da carne foram feitos por um tenente PM, ambos com experiência nesse tipo de atividade, trazida do mundo civil. A alimentação, dessa forma, ocorreu por dois dias.

 

Nos dias que se seguiram, os aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) sobrevoaram a Serra do Caparaó e deixaram cair no acampamento rações frias, em paraquedas apropriados. Numa tarde, um desses paraquedas não se abriu e o saco de rações despencou em alta velocidade. Os policiais militares, que se preparavam para recolhê-lo, afastaram-se rápidos e assustados. O saco com alimentos espatifou-se no terreno. O episódio foi hilariante, ou seja, cômico, mas ninguém se acidentou.

Outro fato também marcante foi a queda de um Sargento dentro de um buraco que estava coberto pela relva e não podia ser notado. Já era noitinha e os graduados estavam esticando cordas para a proteção da tropa contra animais no acampamento, antes de saírem para a procura noturna dos guerrilheiros. O Sargento ajudava a esticar uma corda e ia andando para trás, quando pisou na relva e foi afundando no buraco, enquanto me chamava para ajudá-lo: “Marinho”, “Marinho”, até que sua voz sumiu totalmente. Eu e outros sargentos corremos em seu auxílio e conseguimos retirá-lo do buraco, que era bastante profundo, utilizando a própria corda que estava sendo esticada. O fato assustou a todos, porém, o Sargento não se machucou. Então, isolamos o local para evitar outros acidentes e alertamos os soldados para se precaverem quanto aos perigos naturais do lugar.

Outro acontecimento marcante naquela situação deu-se do seguinte modo:

- Era 12 de abril e a tropa deveria vasculhar a área para tentar capturar e prender os guerrilheiros. Além das buscas normais em níveis geográficos, talvez fosse necessário chegar ao topo da serra, ou seja, ao Pico da Bandeira, já que não se sabia os locais em que os guerrilheiros se entrincheiravam. Porém, o intenso frio e o cansaço da tropa levaram o Comandante da Companhia a reunir os oficiais e sargentos e ponderar que, não obstante a tarefa a ser cumprida, se os homens não se sentissem em boas condições físicas, não os conduziria a tal sacrifício. Foi quando este narrador pediu a palavra e disse que, a seu ver, a tropa não deveria recuar diante das dificuldades e que todos deveriam se esforçar para o cumprimento da missão recebida. Imediatamente outro sargento aderiu a esse posicionamento e, em seguida, todos os demais! O Comandante, então, decidiu e determinou que a tropa partisse em busca dos guerrilheiros.  Nesse dia, a tropa alcançou o Pico da Bandeira.

Durante oito dias a Cia do Batalhão-Escola permaneceu na Serra do Caparaó. Porém, o sacrifício não foi em vão. Os militares empenhados naquela missão foram cumpridores do dever, vez que a diligência foi estafante e estressante, embora não tenha ocorrido troca de tiros nem resistência à prisão (a maioria, dos poucos guerrilheiros, se entregou diante do grande aparato de forças da Polícia Militar). Embora não tenham efetuado prisões, a Companhia do Batalhão-Escola e da Companhia do 9º BI, com suas atuações, concorreram para as prisões feitas pelo 11º BI, de onze guerrilheiros, sendo quatro nas matas locais, seis na cidade de Manhumirim e um em Manhuaçu. Todos os presos foram transferidos pelo 11º BI, de forma bem pública (presença da Imprensa), ao Exército Brasileiro, que compareceu ao local dos fatos, após a ação repressora da Polícia Militar. Segundo as informações dos órgãos de inteligência da tropa, alguns guerrilheiros recuaram em suas ações e fugiram do local.

No dia 14 de abril de 1967, a Cia do Batalhão-Escola desceu a Serra e retornou à localidade de Príncipe, onde permaneceu acantonada por mais três dias, ou seja, até 17 de abril de 1967, em cumprimento de novas ordens.  Finalmente, em 18 de abril de 1967, aquela Companhia retornou à Capital mineira. No total, foram 12 dias de atuação da Companhia do Batalhão-Escola da PMMG na difícil, porém patriótica, Missão na Serra do Caparaó, em defesa dos princípios democráticos de nosso País.

 

A Historiografia dos Fatos.

 

Passados 50 anos, ouso registrar os fatos, pelo menos em parte, porque entendo que assim, como os guerrilheiros lutaram pelos seus ideais, nós - os militares mineiros - lutamos pelo ideal de nosso Estado, de nossa Pátria e pelos nossos próprios ideais. Éramos soldados da ativa e, como tal, tínhamos como dever a proteção do regime democrático, então, em vigor. Demais disso, e principalmente porque a História da Corporação não pode permanecer incompleta em seus registros, e também, porque, ao meu sentir, aqueles que tomaram parte dessa importante página da Polícia Militar mineira merecem ser lembrados historicamente, ainda que em conjunto numa Companhia PM.

Com exceção dos nomes do Comandante e do Subcomandante do Batalhão-Escola, do Comandante da Companhia daquele Batalhão, dos Comandantes das Companhias do 9º BI, do 11º BI, do 2º BI e do Tenente Almoxarife que me relacionou para compor a tropa, e do meu próprio nome, na condição de relator desses fatos, deixo de registrar os demais nomes dos componentes daquela Companhia, a uma, porque não me lembro de todos eles e seria injusto declinar apenas os nomes lembrados, já que a missão foi cumprida por todos nós e, a duas, porque não estou autorizado a isso, e nenhum registro está isento de repercussão positiva ou negativa. Sei que muitos daqueles Policiais Militares são falecidos, mas, talvez, a Corporação tenha o registro dos nomes de todos os integrantes daquela Cia, ou mesmo consiga encontrá-los de modo a incluí-los na História do Batalhão-Escola, atual Escola de Formação de Soldados – EFSd - e na historiografia da própria Polícia Militar de Minas Gerais.

 

(*) José Marinho Filho - Tenente-Coronel PM Reformado. Bacharel em Direito. Pós-graduado em Direito do Estado.

Acadêmico Efetivo-Curricular – Cadeira 6 - da Academia de Letras João Guimarães Rosa, da PMMG.

Artigo completo: