Miragem alvirrubra
Por Osorio de Vasconcellos | 29/06/2013 | CrônicasResumo: Não é propriamente um resumo, mas versos de Shelley emprestados para apadrinhar o texto: Raramente,
raramente vindes, espírito do deleite.
Miragem alvirrubra
Num baile de carnaval, ali pelo meado dos anos sessenta, Ramon faz a um amigo esta declaração: Amigo, el carnaval es una fiesta para solteros. Esclarecendo: Ramon, boliviano, recém-casado, comparecia à festa acompanhado de Jandira, sua mulher, cuja beleza realçavam no cabelo uma flor vermelha, no busto, inquietas guirlandas coloridas, na cintura, um sarongue havaiano alvo como leite, ventilado como a brisa. Enquanto, por sua vez, o amigo, um rapaz de vinte e seis anos, solteiro, intelectual e poeta, fantasiado de sultão, brincava com uma odalisca tenra e perfumada. Esmiuçando: Ramon, oito anos mais velho que Jandira, entrado na casa dos trinta no dia anterior, era doutor antropólogo, arguto e perspicaz. Com tais qualificações sua palavra carreava sempre a ressonância típica das visões esclarecidas, debruando uma amizade mais acadêmica que intuitiva.
- O quê?
A orquestra e o alarido dos foliões impediam que o amigo ouvisse com nitidez o que Ramon lhe dizia. Só deu para pegar carnaval e solteros.
- O quê? - repetiu mais forte.
Foi quando o doutor, quase derrubando o turbante do sultão, o reteve pelo manto e arrematou: estoy convencido de que el carnaval es una fiesta para solteros.
Ouvida a sentença, seu primeiro cuidado foi consultar os belos olhos de Jandira.
Por frações de segundo, temeu que se ofendesse. Afinal, a declaração do marido fazia do casal figuras tecnicamente intrusas no cenário da folia.
Cuidado vão, consulta providencial.
Ao contrário do parceiro, que se mexia constrangido, como se cumprisse um ritual impertinente, Jandira, cheia de encantos, aceitando discretamente as provocações do ritmo e a solidariedade do olhar que o rapaz lhe dirigia, dava mostras de que a teoria segregativa do antropólogo constituía um saber cru, digerível somente após adequado cozimento.
Nada obstante, à guisa de comentário direto à proposição de Ramon nenhuma palavra se ouviu articular. O máximo que o rapaz conseguiu foi sorrir amarelo.
A odalisca notou a súbita mudança fisionômica do parceiro e tratou de conduzi-lo ao jardim, onde a luz indireta do salão mesclava-se ao prateado do luar. Ele não resistiu, embora soubesse que deixara no salão em trabalho de parto tesouros do mais fino lavor.
Esse conhecimento, arbitrário à primeira vista, pode ser explicado filosoficamente à luz da famosa trilogia de Hegel: tese, antítese e síntese. Havia uma tese – a tese do antropólogo; uma antítese – o surto carnavalesco que fazia a desposada Jandira estremecer aos bocadinhos; e a elevada síntese, ou seja, a fusão dos estágios anteriores, cujos frutos, em se tratando de carnaval, costuma-se colher com os albores da manhã.
No jardim, onde ficaram a odalisca e o sultão, o sultão cantava acompanhando a orquestra : Vem, odalisca, pro meu harém; vem, vem, vem; faço o que você quiser; pelas barbas de Maomé, não olho mais pra outra mulher...
É um bom negócio esse de cantar marchinhas de carnaval. A gente se diverte, adota a melodia, investe na letra, promete não olhar pra mais ninguém e, no entanto... olha. E como olha!
E não apenas olha, mas fixa o olhar na direção da rampa de acesso ao jardim.
Por Alá! Miragem alvirrubra? Não. Era Jandira. Talvez em busca de ar fresco, talvez em busca de luar, solitária, cabeça erguida, as mãos apoiadas nas curvas da cintura, ondulando os quadris ao ritmo da marchinha, ela pisou a grama do jardim e avançou entre os canteiros.
Ah! De seu corpo irradiava o mistério cosmogônico da alma feminina.
Meio tonto, deixou cair o turbante. Olhou em volta e viu que ficara só. Onde se meteu a odalisca? O que está acontecendo aqui? Enquanto procurava, enquanto refletia, mãozinhas perfumadas, pelas costas do rapaz, delicadamente, vendaram-lhe os olhos.
Um, dois, três, quatro segundos levou, antes de girar o corpo. Foi o tempo de decodificar a mensagem. No primeiro instante captou o matizado lúdico do gesto.
Quando girou o corpo e notou que as mãos ficaram lá, apoiadas em seus ombros, mui próximas de tocar uma na outra, sentiu a consciência apropriar o hálito perfumado da aproximação. Era a eternidade que batia à porta, negando ser uma abstração.
Dali por diante a carnavalidade aboliu todos os condicionamentos. Inclusive, é claro, os matrimoniais.
Uma só exigência foi mantida: a perfeição.
A perfeição do amor incondicional.
E simetria.
Simetria das mãos. As dela apoiadas sobre os ombros dele. As dele investidas na cintura dela.
Simetria do espírito. Ele solteiro desde o início, ela solteira desde a eternidade.
Após a síntese, iluminada pelos albores da manhã, a cena final mostra o antropólogo vagando pelo jardim. Ia meio sonolento, porém coberto de razão. O carnaval é, de fato, uma festa para solteiros.