Minha Mãe

Por Inajá Martins de Almeida | 10/04/2008 | Crônicas

 

O tempo me fez profundas cicatrizes: umas pelos próprios roupantes avalassadores da juventude, outras tantas, nem ao menos sei explicá-las, mas estão aí e volta e meia me remetem a lembranças – umas, quisera esquecê-las, outras já não me incomodam e vão para a lixeira, outras me tornam alegres, outras tristes, algumas me fazem chorar, outras gargalhar, mas... são minhas lembranças, são meus retalhos que ao longo do caminho fui recortando e montando colcha que, inacabada, continua sendo tecida com pedacinhos aqui, pedacinhos acolá – de pessoas, de frases soltas, de lugares, de passeios pela Internet, de recantos jamais visitados, de pessoas jamais vistas, de amigos virtuais ...

Minha mãe – meu melhor e maior retalho – já não está mais comigo. As perdas sentidas – pais, irmãos, filhos, amigos, foram agregando marcas num coração sofrido, num coração, que ao ver da ciência, era disritmado, era grande, enfim ... era doente – a levaram desta vida.

Não me parecia que esse coração possuísse defeitos. Ele – o coração – deixava-se resplandecer no luzeiro frontal – seus olhos – que, por não possuir cor definida ora mostrava-se esverdeado como as águas límpidas de um riacho, outras tantas espargia a doçura do mel que resplandecia olhar afora; aí ... o coração, como a saltar do peito, brilhava naquele olhar calmo e sereno.

Como podia ser disritmado, se batia compassivamente como uma melodiosa canção, através das palavras de sabedoria que sabia espargir em cada situação!

Como podia ser doente, se sua vitalidade era infinita. Seu gosto pela vida resplandecia nos seus trabalhos – crochês, tricôs, bordados, costuras, sem contar sua culinária deliciosa – que iam se avolumando! Era incansável. Jamais estava ociosa. Dizia não saber deixar as mãos inertes. Precisava mantê-las ocupadas.

Seu gosto estava em tecer toalhas coloridas de crochê e presenteá-las a amigos, parentes, e com que orgulho entregava-as esperando elogios, esperando serem colocadas nas mesas para adorná-las, nas cômodas, aonde quer que seu destino fosse dado. Dizia feliz: – trabalhos executados pelas minhas próprias mãos. – Ah! Quantos espalhados por aí, e quantos ainda os guardo.

Para comigo manifestava prazer desmedido, quando eu elogiava seus trabalhos e os vestia – blusas, vestidos, quer bordados, quer em crochê, quer em tricô, quer cortados, montados e costurados em sua máquina de costura (adorava costurar também). Dizia às pessoas – claro, na minha ausência – gosto de fazer as coisas para minha filha, porque ela está sempre me elogiando; ela gosta de tudo o que faço.

Ainda outro dia, ouvi um comentário de uma vizinha minha, que me disse que quando me vê, logo vem à lembrança minha mãe, pois éramos inseparáveis. – Sim, jamais nos separávamos. Boas lembranças essas. Minha cunhada, sempre diz que jamais viu afinidade maior entre mãe e filha do que aquela vista em nós duas. E isso era real. Amávamos mais do que o normal. Ultimamente ela dizia ser eu sua mãe, pois as longas corridas a médicos, hospitais, meu zelo permanente, inverteram os papéis.

Mas! Voltando... Com a ciência, claro, devo concordar... ele (o coração) era grande, maior do que o convencional. Claro! Para caber tantos amigos, tantos sonhos, tantas lembranças, só mesmo um coração enorme, que jamais rejeitava o que quer que fosse.

Mãe, mulher, dona de casa completa. Tinha todos os atributos que uma mulher do seu tempo podia ter. Hoje essas raridades estão em extinção. (Eu, sem modéstia, considero-me um pouco esse remanescente – claro dela adquiri muitas prendas). Era uma autêntica dama, como já não mais se vê.

Sabia entrar em qualquer lugar... Sabia sair... Sabia agradar... Sabia cativar... Sabia ser mulher... Sabia ser mãe... Sabia ser esposa, e outros tantos atributos, que faltam nas palavras.

Vestia-se com aprumo; era vaidosa como deve ser uma mulher que gosta de si e da vida: cabelos sempre aprumados – nenhum fio fora do lugar. A pele alva, sem pintura, nos lábios o batom não podia faltar – dava um colorido especial ao rosto rosado, dizia. Porte altivo, corpo elegante, de belas formas, altura ideal para uma mulher. O tom de voz suave, mas firme, encantava a todos.

Sua ausência se faz sentir em cada canto, pois a cada um sempre tinha algo a dizer; não dava conselhos, mas quem dela se aproximasse, claro que os esperava.

O olhar, sempre sereno, deixava transparecer a alma que sorria, mesmo estando chorando. Sabia esconder as tristezas – eram delas e não compartilhava. Sabia sofrer calada, jamais dividia com quem quer que fosse suas dores. Ah! Quantas vezes a vi chorando em silêncio, quando perdeu seu filho – meu irmão. Mas, quando eu dela me aproximava, logo dissimulava e a conversa tomava outros rumos.

Falávamos então de nossa infância, de nossas brincadeiras de criança e a tristeza se tornava festa, pois éramos – os três, como costumava dizer – felizes, mesmo em meio a tantos dissabores que a vida nos proporcionava naquela época. Tantas dificuldades que ela tão sabiamente sabia transpor.

Dizer que não sinto sua falta ... mentira. Sinto e muita. Dizer que não choro vez ou outra, não posso confessar, pois choro sim, e choro como criança que necessita de um afago, de um carinho, de um colo. Quantas vezes choro por esse colo quentinho, aconchegante que já não me embala mais; esse colo que me dava alento, que me dava descanso; esse colo que tão bem me compreendia. Esse colo que perdoava minhas faltas, que me levava para cima quando eu queria cair.

Ah! Mãe querida... que distância nos separa. Nós que éramos tão próximas, agora um abismo se formou. Já não ouço sua voz... não sinto seu toque...

Mas... o choro cessa, as lágrimas param de correr rosto abaixo, e do fundo de minha alma, um sussurro sopra baixinho em meus ouvidos, dando completo alívio para minha dor, falando-me:– "vinde a mim você que está cansada e sobrecarregada, que eu te aliviarei, porque suave é meu jugo, leve é meu fardo".

E aquela voz suave continua me dizendo: – "filha minha, não chores por não saber o destino de sua mãe, confia tão somente pois,antes dela ser sua mãe, ela é minha filha, e agora faz parte da grande família espiritual.

Recosto então minha cabeça naquele ombro amigo; em seu colo me aconchego e um sopro divino penetra meu ser, e me faz adormecer.

Mãos generosas seguram as minhas e me levam às águas tranqüilas; sara minha dor e me dá novo alento...

É a mão misericordiosa do nosso Senhor Jesus Cristo.