Minha decisão

Por Robert Filgueira Júnior | 16/05/2011 | Contos

Hoje acordei e a primeira coisa que eu vi foi para as horas. Meu Deus. Fiquei pensando. Onde estou? Que lugar é esse?
Eu não fazia a mínima ideia de onde eu estava. O local parecia deserto, uma espécie de terraço de um edifício. Parecia ser madrugada, óbvio, pois meu ponteiro marcava quatro da manhã, mas... Que dia é hoje?
Deve ser um sábado, pois a ultima coisa que me recordo foi do acidente. Do rapaz que se jogou na minha frente. Ei! Espera, eu não estou ficando louca, havia um rapaz na hora em que o caminhão perdeu o controle, eu me lembro.
Devo estar ficando louca, não teria certeza se estivesse aqui nesse lugar escuro.
Quem é você? ? eu perguntei ao rapaz que se aproximava de mim ? Não se aproxime ou então eu lhe jogo spray de pimenta ? abri minha bolsa para procurar o spray, mas ela estava vazia.
Ele se aproximou mais de mim e então tocou meu rosto com sua mão quente ? Não precisa se assustar, pois o pior já passou, você ainda está viva.
Como assim estou viva? ? eu perguntei totalmente assustada, me levantei num salto ? Eu estou morta?
_ Não! ? ele riu ? você não está morta, mas poderia.
_ Como assim eu poderia?
_ Você sofreu um acidente de carro esta noite.
_ E onde eu estou?
Comecei a dar credito aquele lindo rapaz de cabelos castanhos claros e olhos de cor de mel.
_ Você está apenas descansando e depois vai voltar para o seu lugar se aprender o que eu tenho para lhe ensinar.
_ Estou quase morta? ? eu não agüentei e ri da situação, pois eu nunca acreditei que uma pessoa ficasse entre a vida e a morte.
_ Sim! ? ele respondeu friamente por causa de minha brincadeira e eu fiquei séria no mesmo instante.
_ Onde está minha família?
_ Você nunca a valorizou e agora se preocupa com ela?
Naquele momento tive raiva daquele homem esquisito, embora ele fosse muito bonito com aquele rosto claro e sem barba, com aquele corpo rijo e saudável.
_ Eu sempre valorizei minha família. Eles que nunca acreditaram em mim. Eles que nunca me valorizaram.
_ Engano seu, pois eu sou a prova verdadeira que eles lhe amam.
_ Então o que você é?
_ Vai descobrir sozinha, em breve.
Fiquei pensando: será que ele é um anjo? Não! ? respondi para mim mesma naquele pensamento longínquo enquanto ele tirava o seu casaco e me emprestava. Continuei no meu pensamento impuro. Ele não pode ser um anjo, pois ele nem tem os olhos azuis e nem cabelos loiros e nem asas.
_ Vamos! ? disse ele para mim assim que terminou de me cobrir.
_ Para onde? ? eu fiquei completamente assustada, não sabia o que responder.
_ Ver você!
Ai meu Deus ? eu pensei logo ? Devo realmente entre a vida e a morte.
Ele abriu a porta e deixou-me ir à frente. Descemos as escadas uniformemente naquele silêncio eterno. Ele parou de falar ? pensei ? ele ficou chateado comigo por alguma coisa? Com certeza sim, pois eu sempre falo besteiras.
Quando chegamos ao décimo quarto andar ele abriu a porta de sua direita. Não tinha quase ninguém no corredor branco, apenas uma mulher que passou correndo com umas seringas. Fiquei gelada quando a vi, pois parecia que ela tinha me visto, mas quando ela passou por dentro de mim eu quase desmaiei se eu pudesse.
Fiquei estagnada diante daquilo e apenas olhei nos olhos daquele anjo. Ele abriu a porta e pediu para que eu entrasse.
A cena era assustadora.
Minha mãe estava de joelhos ao pé de uma cama segurando minha mão, parecia estar orando ou coisa assim, não dava para escutá-la, apenas via suas lágrimas correndo rosto abaixo. Eu me comovi e não consegui chorar. Aproximei-me mais da cama e vi eu mesma.
_ Nossa ? eu sem querer disse, mas minha mãe parecia não me ouvir e muito menos me ver ? O que houve comigo?
Eu estava totalmente destruída. Meu lindo rosto rosado estava com algumas esfoliações e eles rasparam um pedaço da minha testa, tirando algumas mechas dos meus cabelos loiros e acredito que minha mãe não contemplaria meus olhos verdes.
O homem desconhecido ? que a partir daquele momento eu julgava ser um anjo ? pegou em braço e me chamou para sair dali.
_ Não posso ? eu disse com a voz triste.
_ Não podemos ficar aqui apenas olhando, seu tempo passa e você ainda tem uma chance de voltar.
_ Mas o que houve comigo? O que aconteceu?
_ Está amanhecendo e logo toda sua família irá chegar.
_ Eu quero ficar para vê-los chorarem por mim, pois eles nunca se importaram comigo, sempre acreditavam que eu era a patricinha bailarina que foi mimada pelo falecido pai.
_ Não conheço sua família inteira e tenho medo disso.
_ Medo de quê?
_ De algum deles nos verem.
_ Como assim? Eles podemos nos ver. Mãe ? eu gritei, acreditei que ela pudesse pelo menos me ouvir ou me ver.
_ Não adianta, sua mãe não consegue nos ver, mas sua tia sim.
_ Tia Aurora?
_ Sim, ela consegue nos ver se chegar aqui e nos encontrar ao redor da cama.
_ Santo Deus.
_ O que foi?
_ Eu sempre a julguei como louca por causa desses lances de dizer que via os espíritos.
_ Vamos embora.
Saímos do quarto e o corredor já estava cheio de gente e algumas pessoas conseguiam nos ver e aquele homem desconhecido acenava para outros, sorria para uns e piscava para outros. Aqueles pareciam ser outros espíritos ao redor de pessoas que estavam graves.
Finalmente consegui me situar onde eu estava quando li uma placa que dizia: CTI - Hospital Geral de Manaus.
_ Todas essas pessoas...
Ele nem esperou eu terminar de perguntar e logo respondeu: Sim, todas elas terão uma lição para aprender, algumas nem chegam no estágio em que você está.
_ Em qual estágio eu estou?
_ Aqueles que vocês dizem que podem ver a morte.
_ Em coma.
_ Tecnicamente na forma em que vocês chamam a segunda chance.
Ele riu e finalmente pude contemplar seus dentes claros e sua face perfeita. A partir daquele momento eu não tinha duvida. Ele era um anjo.
_ Segunda chance?
_ Sim, quando as pessoas não aprendem uma lição fundamental para entender a vida elas ficam em coma esperando aprender e então voltar para sua vida normal.
_ E aqueles que morrem? É porque não aprenderam?
_ Na maioria das vezes é porque o espírito escuro o levou antes dele aprender o que ele tinha aprender ou quando ela despreza a vida e prefere descansar eternamente.
_ Que espírito escuro é esse?
_ Se você não consegue perdoar alguém que algum dia já lhe fez mal, você cria um espírito escuro que só faz atrasar sua vida.
_ Meu Deus. Eu tenho um então?
_ Sim ? ele riu de novo ? Parece que agora finalmente está entendo, Juli.
_ Você sabe meu nome? ? eu me assustei e depois morri de rir.
_ Todas noites escuro a oração de sua mãe pedindo a deus que eu a proteja.
_ Não sabia, pois ela sempre pareceu ser dura comigo.
_ Não é que ela sempre foi dura com você, ela sempre quis que você soubesse um pouco da realidade que vocês vivem. Não dá pra você pagar as dívidas que seu pai deixou apenas com a dança, por isso ela insiste que você trabalhe.
_ Eu sinto muito.
_ Não precisa se lamentar, pois você está começando bem. Vamos ? ele ficou eufórico do nada ? Tenho que lhe mostrar algo lindo.
Abrimos rapidamente a porta do terraço novamente e sentamos no para-peito. Era quase cinco da manhã e o sol nascia. Nossa. Era lindo, eu nunca tinha visto o sol daquele jeito, pois eu sempre acordava ao meio-dia.
_ Lindo não é? ? ele perguntou olhando bem nos meus olhos.
_ Sim ? eu respondi como se estivesse apaixonada, agora não sabia por quem, se era por ele ou pelo nascer do sol ? Me responde uma coisa.
_ Depende.
_ O que você é afinal? Um anjo?
Ele riu, quase morreu de rir.
_ Não, Juli! Eu não sou um anjo. Os anjos são seres divinos que pertencem somente a Deus.
_ Então o que você é? Humano não pode ser.
Parecia que naquele momento eu tinha entendido tudo e então rapidamente respondi ta alto que ele se assustou.
_ Já sei! Você é outra pessoa que também está em coma.
Ele riu de novo.
_ Eu sou um espírito que sua família criou.
Eu fiquei muda e séria. De uma hora para a outra.
_ Pode repetir, por favor, pois eu não entendi.
_ Sua mãe ora para que Deus te proteja todos os dias, sua tia também, seus primos, sua irmã Natalie e toda sua família. Eu sou a oração deles.
_ Não sabia que as orações tinham formas humanas ? eu ri.
_ Na verdade não. Eu sou um espírito guardião. As orações apenas me fortalecem.
Ele se levantou e logo estendeu sua mão para mim.
_ Vamos!
_ Para onde?
_ Nossa primeira aula.
Descemos até o térreo e então eu pude ver meus primos entrando com os rostos cobertos de lágrimas. Minha tia Aurora entrou pela porta automática e naquele momento eu fiquei totalmente arrepiada e aquele homem desconhecido que eu ainda não sabia seu nome entrou em desespero.
Tia Aurora me viu e ficou parada, deixou cair o vaso de rosas. Ela se aproximou de mim e me olhou nos olhos e começou a chorar. Ela virou para o desconhecido e então ela falou com ele.
_ Traga-a de volta, não deixe que ela se vá, pois você sabe. Nós a amamos tanto.
Eu queria chorar, mas não conseguia.
_ Vamos embora ? ele disse me puxando e eu por um último momento consegui tocar na minha tia.
_ Aurora ? disse tia Agnes ? Você está fria e completamente arrepiada. Você está bem querida?
_ Sim ? respondeu ela pálida ? Estou ? então voltou a chorar.
Aquilo tudo para mim era demais, eu queria chorar e não conseguia, não entendia por que.
_ Aonde vamos? ? eu perguntei a ele que parecia estar bem apressado.
_ A sua escola de balé.
_ Espere ? eu gritei quando vi uma banca de revista.
_ O que foi?
_ O jornal - eu fiquei parada no meio da calçada e muitas pessoas passavam por dentro de mim.
_ O que tem o jornal?
_ Eu estou nele ? eu fiquei desacreditada no que pude ler.
Uma pequena tira dizia: A bailarina Juli morre antes de estrear no palco do Teatro Amazonas.
Corri até o outro lado da avenida entre os carros quando vi uma moça sentada num banco de praça.
_ O que você quer fazer? ? ele me perguntou e parecia não largar do meu pé.
A moça lia o jornal justamente na página onde dizia o que aconteceu, era mais ou menos assim: Ontem a noite um caminhão tombou no cruzamento das avenidas Getulio Vargas com Sete de Setembro. Uma jovem que atravessava a avenida foi morta. Seu corpo se encontra no Instituto Médico Legal.
Eu parei e não conseguia mais ler, até criar coragem de novo e li o restante.
O diretor do grupo de dança "Metamorfose" disse a nossas equipes que Juli Vieira de Araújo havia sido escolhida para abrir o festival de dança que aconteceria no próximo final de semana no teatro Amazonas, mas esse surpreso desastre acabou destruindo o sonho da jovem bailarina.
Eu não consegui mais ler e então por um forte impulso abracei o homem desconhecido.
_ Já viu demais Juli. Vamos embora.
_ Eu lembro disso.
_ De quê?
_ Eu saí do teatro euforia, pois eu fui escolhida e era sete da noite. Eu nem tirei a sapatilha e nem desfiz o coque. Minhas amigas me chamaram para comer alguma coisa na praça do Largo, mas eu não quis, eu queria contar para minha mãe que ela estava errada, que eu podia ser uma grande bailarina e viver disso, eu poderia provar para ela que ela sempre esteve errada.
_ E com isso.
_ Com a minha vontade de querer provar uma coisa eu acabei não provando.
_ Sim! ? respondeu ele me abraçando mais forte ? Aprendeu a segunda lição pulando a primeira ? ele riu.
Andamos quase o dia todo. Rimos, conversamos e ficamos sentados uma boa parte na praça do teatro até anoitecer. Até dar oito da noite.
_ Chegaram ? disse ele ? Vamos.
Não entendi o que ele queria fazer ali no teatro nos dias de ensaio.
_ Está pronta? ? ele perguntou quando estávamos lá dentro.
_ Para quê?
_ Para dançar.
Eu morri de rir.
_ Eu estou quase morta com minha família em prantos e você quer que eu dance? Você só pode ser louco.
_ Você não pode perder um dia sequer de ensaio, pois você vai dançar.
_ Você quer dizer que eu vou voltar?
_ Se aprender tudo como tem feito, sim! ? ele me empurrou para o palco e o pianista começava uma linda sinfonia.
Laura estava dançando e ela seria minha substituta. Na verdade ela sempre quis, pois sempre sentiu inveja de mim. Posso até acreditar que isso tudo que aconteceu foi culpa dela.
_ Não ? gritou ele ? Pare de pensar isso.
Não entendi muito bem o que ele estava querendo dizer, mas entendi quando eu vi um homem vestido de preto com os cabelos e olhos vermelhos.
Corri para perto do meu anjo.
_ Quem é ele?
_ Seu espírito escuro. Toda vez que você pensar em coisas que não são verdadeiras e que você julga outras pessoas, ele aparece e é ele que pode acabar com tudo isso.
_ E como faço para isso acontecer?
_ Apenas pare de pensar o que você não sabe e aja como uma boa menina.
Eu voltei para o palco e pensei tudo ao contrário, pensei que tudo aquilo que estava acontecendo comigo era culpa minha, pois sempre fui egoísta e fútil.
Aos passos eu fui voando e ao som da melodia eu fui acompanhando Laura, as vezes tocando na mão dela, como se nós duas fossemos uma dupla.
O ensaio acabou e eu saí rindo de tudo o que aconteceu, pois era um sonho pisar naquele palco. Antes de ir embora escutei Laura dizendo.
_ Pessoal! ? ela chamou todos e os reuniram numa roda ? Vamos orar por Juli, todos nós estamos muito tristes com tudo que aconteceu e aquilo não era para acontecer com ela, pois ela sempre foi tão dedicada ao balé e a essa apresentação que foi injusto o que aconteceu. Todas as noites vamos nos reunir numa corrente de oração e pedir a Deus que a proteja e que ela volte.
Eu fiquei paralisada com aquilo, pois ela sempre pareceu ser tão invejosa, mas eu estava enganada. Eu tinha amiga. Eu apenas não enxergava isso.
_ Muito bem ? disse ele ? Lição um, aprendida.
_ Afinal senhor desconhecido, são quantas lições.
Ele riu silenciosamente.
_ Três.
_ Então só falta uma?
_ Sim, mas essa é bem difícil, pois essa lição você sempre a desprezou. E a outra parte você tem que terminar, pois ate hoje você ainda perdoou uma pessoa.
_ Seu Jonas.
_ Sim, você tem que começar a perceber que ele não teve nada a ver com a morte de seu pai, que tudo foi um acidente.
_ Mas ele atirou no meu pai, os jornais disseram isso.
_ Quer ver seu pai?
Eu fiquei calada e meus poucos pêlos arrepiaram-se.
_ Sim! ? eu respondi involuntariamente.
_ Então vamos na casa de seu Jonas.
Naquele momento eu não entendi nada. Como meu pai poderia estar na casa de alguém que o matou.
Era de madrugada e a casa de seu Jonas estava quase vazia. Apenas a enfermeira estava cuidando dele.
Seu Jonas era policial assim como meu pai. Ele acabava de sair de uma cirurgia complicada e sua família estava no interior e seu filho estava de serviço naquela noite no batalhão de infantaria da selva.
Quando entramos eu não pude acreditar no que vi. Havia muitas fotos dele com o meu pai. Eu nunca tinha entrado naquela casa depois que nos mudamos, quando minha mãe não pôde pagar a casa que meu tinha comprado e mudamos para outra onde a pensão dava para isso.
Abrimos a porta e meu pai estava sentado do lado da cama do seu Jonas.
_ Filha ? ele disse correndo para me abraçar.
_ Pai ? nesse momento eu senti que eu chorava, mas meu rosto ainda estava seco.
_ Aurora ? gritou minha mãe no hospital.
_ O que foi minha irmã?
_ Juli está voltando.
_ Como?
_ Ela está chorando e apertou meu dedo, chame um médico.

_ Meu pai agora é o espírito de orações do seu Jonas? ? perguntei ao anjo.
_ Não. Seu pai apenas está preso ao espírito dele, pois como você ainda não perdoou o seu Jonas. Ele ainda fica com peso na consciência e por isso o espírito de seu pai ainda permanece preso ao dele.
_ E onde está o espírito protetor de seu Jonas?
_ Ele não tem.
_ Como ele não tem? Pensei que todos nós tivéssemos.
_ Mas ele tem uma mulher cruel e adultera, seu filhos não lhe respeitam e nem se importam com ele e seu irmãos já morreram. Ele não tem ninguém para orar por ele.
_ E quem está lhe protegendo?
_ Juli. Ele não está morto, ele apenas está dormindo, pois passou uma cirurgia e nós espíritos cuidamos das pessoas que estão indo embora assim como você.
_ E se ele ficasse que nem eu?
_ Ai alguém iria sentir o medo de perdê-lo e iria orar e um de nós iria cuidar dele, mas como ele é um homem bom. Ele não precisará ficar entre a vida e a morte, pois quando ele for irá direto para o descanso eterno.
_ Minha filha, você precisa perdoá-lo, pois ele não teve culpa. Nós estávamos num tiroteio e ele me confundiu com um bandido e por impulso disparou. Ele não teve culpa minha filha. Eu quero descansar, não agüento mais ficar aqui vendo ele dessa forma e vendo você crescendo de uma forma errada.
_ Eu o perdôo papai. Eu nunca soube disso. Saiu nos jornais que ele lhe matou e por isso perdeu o cargo.
_ Agora sabe que não foi isso que aconteceu.
_ Temos que ir! ? disse o anjo.
_ Não deixe que ela vá Armie.
_ Sim, seu Carlos, ela irá voltar antes da apresentação.
Foi o momento mais doloroso que eu senti, me despedi do meu pai. Naquela época eu tinha apenas 16 anos e agora aos 23 eu finalmente entendi tudo.
_ Lição completa ? disse Armie, agora eu sabia o nome dele.
_ Você disse que eu tinha três.
_ Sim. Você agora finalizou a primeira lição que era perdoar e a segunda que era reconhecer seus erros.
_ E qual é a terceira?
_ Aprender a amar.
_ Mas eu amo minha família, você viu. Eu amo meu pai.
_ Não falo só desse amor. Falo de amar.
_ Você pode ser mais claro?
_ Sim. Você ama sua mãe por amar, por saber que ela lhe ama. Ama sua família porque sabe que eles lhe amam, mas só fez isso agora que viu eles chorando por você. Onde você estava nas noites de aniversários de seus primos e tios?
_ Nas festas.
_ Viu. Você sempre preferiu estar entre aquelas meninas que você julgava ser suas amigas.
_ Ei! Mas elas são minhas amigas.
_Tem certeza?
_ Absoluta.
_ Então vamos ver onde elas estão agora.
Andamos naquela madrugada inteira e era numa sexta.
Chegamos a frente de uma boate e vi Milena saindo com meu ex-namorado. Desprezei-a, pois eu desconfiava que ela era assim mesmo. Minha melhor amiga mesmo era Alice. Bom! Isso até eu vê-la totalmente bêbada no meio da pista.
O cruel não foi isso. Foi depois de tudo.
No outro dia eu estava na casa de Alice esperando ela acordar. Como era sábado ela levantou quase duas da manhã. Sua mãe lhe chamou a atenção porque ela não foi me visitar e eu não queria ouvir o que ela respondeu, mas eu estava ali.
_ Mãe, eu não vou visitá-la. Se Deus quer que ela morra, que seja feita a vontade dele. Eu só espero que a mãe dela me pague o que ela ta me devendo, pois eu vou no inferno cobrá-la.
_ Cale a boca e já para a cozinha.
Meu deus. Eu jamais poderia imaginar que aquela menina doce era daquela forma. Era aquele monstro.
_ Agora você vê? ? perguntou Armie ? Você deixou o amor de sua família para estar com elas.
_ Me arrependo por isso.
_ Isso já é um pedaço da sua lição. Ainda falta o amor verdadeiro.
_ Eu não acredito em amor, nunca mais deixo nenhum homem tocar-me novamente, não para fazer o que eles fizeram.
_ Você não pode ser assim. Acredite, o amor existe e ele pode estar perto de você quando você voltar.
Nós estávamos sentados na grama de uma praça. Já era outro dia e ele tentava me convencer que o amor existia. Além do amor fraternal.
Todas as noites a partir daquela segunda-feira, nós íamos para os ensaios e ele sempre aplaudia e numa quarta-feira ele me tirou para dançar. E entre os bailarinos nos dançamos.
A melodia trocou e nos abraçamos e dançamos aquela suave canção.
No fim de tudo eu não tinha mais nada a perder e então toquei meus lábios no dele. Eu me senti completa e feliz pela primeira vez.
Era agora uma quinta-feira e estávamos saindo do teatro depois de mais uma noite de ensaio. Era a penúltima noite.
_ Acho que não vou conseguir.
_ Como assim?
_ Amanhã é sexta e o ultimo dia do ensaio e não voltar a vida até lá.
_ Estou preocupado com isso.
_ De eu não voltar?
_ Não. Estou preocupado de você voltar.
Eu não entendi nada. Ele estava me dando as lições para eu voltar a vida e agora desejava que eu não voltasse. Como poderia?
_ Eu estou apaixonado por você e isso nunca me aconteceu, mas eu não posso deixar isso interferir no seu aprendizado, pois você deve voltar assim que a lição completar.
Um caminhão passou rapidamente por mim e ele buzinou forte, pois o outro carro tentou avançar o sinal vermelho, mas aquele barulho trouxe a tona tudo o que aconteceu naquele dia que completava uma semana.
_ Agora eu lembro de você ? eu disse a ele ? Você se jogou na minha frente quando caminhão veio em minha direção. Você me empurrou contra calçada para que o caminhão não em batesse em cheio. Eu teria morrido se não fosse você. Você salvou minha vida e ainda está tentando salvar.
_ Você só conseguiu me ver, porque as orações de seus entes queridos é tão forte que eu pude ser visto por você.
_ Eu te amo ? eu disso aquilo no impulso e nem me importei o que aquilo iria acarretar no final de tudo.
_ Eu também te amo, mas não posso te amar.
_ Por quê?
_ Por que eu não sou real, eu sou apenas as orações de sua família e agora eles pedem que você volte e que encontre alguém que lhe faça feliz.
_ Eu não quero voltar. Quero viver com você para sempre.
_ Isso é impossível, não podemos.
_ Você me ensinou o que é o amor e agora eu não posso amar a única pessoa que eu sei que amo de verdade?
_ Não pode.
Naquele momento eu não entendi nada. Minhas mãos foram sumindo.
_ Armie ? eu gritei e o toquei pela ultima vez sem poder beijá-lo ? O que está acontecendo?
_ Você está voltando. Você aprendeu tudo. Seja uma boa menina e boa apresentação.
_ Não! Armie ? eu gritava desesperada, eu não queria mais voltar.
_ Antes de você ir, quero te dizer algo.
_ Rápido ? eu disse antes que sumisse totalmente.
_ Na verdade eu também estou em coma e eu precisava dessa lição. Eu sou professor e eu nunca tive paciência para ensinar alguém e essa era minha lição, mas amanhã de manhã estarão desligando os aparelhos e eu estarei indo de vez, pois minha missão para conseguir o descanso eterno, era de ter a paciência de ensinar você.
_ E onde você está, não posso deixar você ir.
Antes que ele dissesse eu sumi e deixei de ouvir sua voz.
Quinta-feira. Dez da noite e eu estava acordando. Minha irmã estava do meu lado.
Ela gritou quando eu acordei chamando por Armie.
_ Doutor ? minha irmã saiu gritando pelo corredor ? Ela voltou.
E eu voltei. Meu rosto estava limpo, como se nada tivesse acontecido. Lógico com um pouco de maquiagem que eles usaram para que não me assustasse. Quanto ao meu cabelo eu fiz um lindo penteado.
Não me deixaram sair aquela noite do meu quarto. Mas minha cabeça não parava de pensar nele e no que aconteceria naquela manhã de sexta-feira.
Era sexta-feira. Oito da manhã e toda minha família estava reunida em cima de mim. Eu tinha que fugir. Eu tinha que acordá-lo, mas onde? Onde ele estava. Era impossível.
Naquele momento senti vontade de morrer de vez, de encontrá-lo de novo. De ver seus lindos olhos cor de mel e de tocá-lo novamente os lábios. Senti-me fracassada e me conformei com aquilo comendo um bolo de cenoura que minha tia Aurora tinha feito.
O médico me deu um abraço.
_ Menina, seu anjo deve ser muito forte para você sobreviver a aquele acidente. A cidade toda pensa que você morreu, até os jornais estamparam isso. Seu corpo foi lançado a 4 metros de distância e você não teve uma fratura além das esfoliações. Sua cabeça está perfeita. Eu tive apenas que tirar uns fios de cabelos para desfazer um pequeno coágulo, mas coisa besta. Não sabemos porque você entrou em coma, nos diagnósticos não há possibilidades, mas Deus sabe o que faz. Agora se me dêem licença temos outro em coma.
_ Outra pessoa entrou em coma doutor? ? perguntou minha mãe.
_ Não, Dona Sandra. Este é um paciente que veio de São Paulo e sua família nunca o procurou. Como hoje faz três anos que ele está em coma decidimos desligar os aparelhos com apoio da família que parece não se importar muito.
_ E onde ele está doutor? ? eu perguntei como se não quisesse nada.
_ No andar de baixo no quarto 334.
O doutor saiu do quarto e assim que ficou somente eu e minha mãe eu conversei com ela e disse tudo.
_ Mãe eu te amo, amanhã procuro um emprego e vou fazer do balé apenas um hobby. Mas existe uma coisa que eu não posso deixar de fazer.
_ O que minha filha.
_ De salvar o meu grande amor.
Eu dei um salto da cama e corri pelos corredores, alguns fios fui soltando no caminho. Acredito que nunca corri tanto.
Cheguei ao quarto e todos estavam lá dentro, enfermeiros e doutores, até mesmo um advogado e um juiz.
_ Senhorita! ? disse um dos médicos ? Você não pode ficar aqui saia já.
_ Você não podem fazer isso. Ele vai voltar a viver hoje.
Eu o abracei. Era ele.
Ele parecia ser mais bonito pessoalmente e agora eu podia sentir seu cheiro.
_ Tirem-na daqui ? gritou o advogado.
_ Deixe-a ? disse o médico que cuidou de mim ? Ela sabe o que ta fazendo.
Olhei na cabeceira da cama e descobri o nome dele. Era Fernando e ele tinha 29 anos. Estava com avental branco.
_ Eu te amo e consegui te encontrar. Agora quero apenas que volte para mim.
_ Eu sei disso! ? ele respondeu bem baixinho e deu um sorriso quase invisível.
_ Se afastem, saiam de perto ? gritou o médico que me ajudou.
Eles me tiraram de lá e me levaram de volta para meu quarto e naquele momento cuidaram do Fernando.
Era um sábado de noite e toda minha família estava arrumada. Entrei no carro e só sai quando pude ver o teatro e aquela multidão de gente. Era a abertura do festival de dança.
Subi ao palco e vi o rosto triste de Laura. No meio da minha apresentação eu parei e todos ficaram me olhando. Não entenderam nada e então puxei Laura para dançar comigo, conforme ensaiamos todas as noites.
_ Você ? disse ela ? Estava o tempo todo aqui, o calafrio das minhas mãos era você ? ela chorou e nos encerramos a abertura.
Foram muitos aplausos, pois nós passamos o que sentimos na dança.
Eu desci as escadas e minha família estava lá em baixo e ele surgiu entre meus entes queridos.
_ Eu te amo! ? disse ele me puxando para dançar.
Até o seu Jonas estava dançando com minha viúva tia Aurora, que acreditou em tudo o que eu disse.
Encerramos a dança e Alice se aproximou de mim e me deu um abraço.
_ Amiga ? disse ela com a cara mais sínica ? Não deu para ir no hospital, pois eu estava viajando com a mamãe.
_ Eu sei disso Alice e por falar nisso, aqui está o dinheiro que eu estou lhe devendo.
_ Não precisava, eu nem me lembrava mais.
Eu ri da situação e dei um abraço nela. Não era um abraço de despedida. Era um abraço de perdão, pois ela ainda passaria pelo o que eu passei.
_ Você consegue se lembrar de tudo, Fernando?
_ De todos os detalhes.
Ele riu.
Era dia 23 de maio e nos casamos na igreja de São Sebastião. A Família dele apareceu no dia e conheci todos os seus irmãos.
Não consigo entender como ele conseguiu cair do segundo andar de seu apartamento antes de ir dar aula de música.
Mas de uma coisa eu sei.
Que eu aprendi a lição.