MICHEL FOUCAULT E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO MODERNO
Por Irzair Ciro Correa | 12/04/2010 | FilosofiaMichel Foucault e
a constituição do sujeito moderno
PARTE I
Introdução
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Em sua trajetória intelectual Michel Foucault não se permite ser enquadrado definitivamente em nenhuma classificação. Seus escritos transitaram pela Filosofia, História, Psicanálise, Práticas Judiciárias e Ética.
Seria redundante dizer que Foucault não se manteve adstrito a uma área da ciência, pelo contrário fez incursões a várias delas. Foucault pensou aquilo que julgou útil para entender o presente. Diante da multiplicidade de temas abordados fica o desafio de enveredar de maneira satisfatória por um deles e tentar desvendá-lo. Isso impõe condições prévias, ou seja, é preciso fazer escolhas e demarcações de termos num vasto emaranhado de assuntos pesquisado e exposto em toda sua profundidade por Michel Foucault.
Um dos temas latentes em sua obra é a temática do sujeito. Mas mesmo esse tema impõe outras escolhas e demarcações visto que o sujeito é tema recorrente em todas as suas obras sendo uma das preocupações que o acompanha em toda a sua trajetória filosófica.
Então, para se falar do assunto baseando as pesquisas em Foucault, e que, no caso, escolhemos o sujeito, cumpre fazer mais um corte, ou seja, é necessário delimitar a temática escolhida para fazer uma abordagem mais especifica. Dessa forma, para definir o tema da pesquisa ficaremos com a temática do sujeito e nos deteremos apenas no tempo presente.
Ainda vale ressaltar outro ponto que é de suma importância para entender o assunto, que Michel Foucault aborda o sujeito não como um dado, mas algo a ser constituído. A noção de sujeito em Foucault exclui-o como portador de racionalidade, ele é antes um coadjuvante.
Muito embora Foucault aborde temas relativos ao presente ele não fica restrito a ele. Na tentativa de melhor compreender o seu tempo ele faz várias incursões ao passado próximo ou remoto e na tentativa de melhor explicitar a questão ou problemática do sujeito, por vezes o acompanharemos em sua trajetória.
Para entender a problemática do sujeito em Michel Foucault é indispensável que se tenha em mente que ele não trabalha com a noção de sujeito transcendental portador de essência perene. Para Foucault o sujeito é algo decorrente do processo histórico, e, para falar sobre o assunto inicialmente primeiro ele promove sua desconstituição para depois falar de sua constituição propriamente dita, ou seja, primeiro ele lavra o solo para depois semear livremente sobre ele.
Uma vez promovida essa desconstituição o sujeito passa a ser abordado sob o prisma de algo que está sendo feito em determinada época e com alguns objetivos, então temos um tipo específico de sujeito.
As pesquisas de Foucault são divididas pelos seus estudiosos em três eixos, a saber: arqueologia, genealogia e Ética também conhecido como constituição do sujeito.[1]
Roberto Machado em seu livro Ciência e Saber[2] aponta os seguintes trabalhos da fase arqueológica de Foucault Histoire de la folie, Naissance de la clinique, e Les mots e les Choses, finalizando com La Archeologie du Savoir que é uma espécie de revisão de sua trajetória metodológica, teórica e filosófica.
Na Histoire de la Folie de acordo com Roberto Machado, Foucault não conta uma "historia da psiquiatria que procurasse investigar seus conceitos básicos, as principais teorias ou os métodos desta disciplina nos diferentes momentos de sua história (....) mas toda a argumentação do livro se organiza para dar conta da situação da loucura na modernidade.[3]Foucault procura demonstrar neste livro as condições de possibilidades do surgimento de uma ciência, um tipo de saber especifico: a psiquiatria.
Foucault demonstra que o fenômeno da loucura se estrutura em quatro eixos principais que são: moral, econômico, político e social. E atingia quatro regiões distintas daqueles que foram pegos no Grande Enclausuramento: a sexualidade, a libertinagem, a profanação do sagrado e o louco.
Para lidar com uma massa heterogênea de população flutuante era complexo e custoso, daí a necessidade de rotulá-los e enclausura-los.
Ainda, de acordo com Roberto Machado, em "Naissnce de la Clinique" Foucault demonstra como se constituiu uma ciência médica analisando as teorias desde o Renascimento, Idade Moderna e Idade Clássica; a clinica, anatomo-clinica e a clinica médica.
A palavra Arqueologia como lembra o subtítulo de Les Mots e les choses não se trata de fazer a Arqueologia, mas de uma arqueologia das ciências humanas. Nesse termo, encontra-se ao mesmo tempo a idéia de "Arché", isto é, do primeiro, a emergência dos objetos do conhecimento, e a idéia de arquivo - o registro desse objeto.
Na fase da Genealogia encontramos a obra "Vigiar e Punir" onde Foucault muda seu eixo metodológico para a questão do poder, a obra é de suma importância para a pesquisa que se intenta realizar sendo sua obra de referencia.
Encontramos na última fase denominada constituição do sujeito a trilogia Histoire de la Sexualité composta por "La Volonté du Savoir, Les usages des plaisires, e Le souci de soi".
Embora a parte que nos interessa seja mais especificamente a que se refere a constituição do sujeito, utilizaremos da obra de Foucault aquelas pesquisas que tratem do assunto em qualquer das fases em que puder ser encontradas.
Falaremos apenas sobre a constituição do sujeito moderno, visto que entre os antigos não existia a noção de sujeito,[4] mas apenas de indivíduos. Em todo caso não nos deteremos neste assunto que demandaria um tempo maior de pesquisa, o que no momento não é nosso foco central para o propósito deste trabalho. De acordo com Fonseca
Não se fala em constituição de um sujeito na Antiguidade Clássica, porque não houve naqueles domínios um mecanismo de subjetivação que, elaborando uma identidade que seria assumida como própria, teria constituído um sujeito. Daí Foucault afirmar que o que se percebe entre os gregos é a busca do individuo em constituir enquanto mestre de si, não havendo assim algo que se aproximasse à constituição de um sujeito como ocorre na atualidade.[5]
Também em nossa pesquisa não faremos menção ao sujeito contemporâneo, pois entendemos que de acordo com as leituras feitas em Foucault, essa modalidade de sujeito está além, cronologicamente falando, do sujeito que demonstraremos ser constituído na modernidade.
Pode se entender o sujeito como individuo preso a uma identidade que reconhece como sua, assim constituído, a partir dos processos de subjetivação. O sujeito do qual vamos tratar é um sujeito "dócil, útil e produtivo", e, de acordo com nosso entendimento em Foucault, sua constituição se dá por três vias: a disciplina, a confissão e o dispositivo da sexualidade.
Na disciplina demonstraremos como esse dispositivo composto de três mecanismos ou tecnologia, constituído pela vigilância hierárquica, sanção normalizadora e o exame foram inserido no corpo individual e social moldando o individuo.
A confissão que originariamente era utilizada para fins religiosos, passa a ser instrumento das instituições para desvelamento da verdade, até ganhar caráter de cientificidade. Foi ela que possibilitou as interferências nos aspectos mais sutis da vida do indivíduo através da codificação de confissão, do postulado da causalidade, da revelação sistemática e do método de interpretação. .
E por fim o dispositivo da sexualidade, estratégia de poder que juntava o individuo e a sociedade em sua relação com o sexo. A partir de agora o sujeito se define como tal na medida em que é portador de uma sexualidade. Falaremos das sexualidades periféricas e suas quatro grandes estratégias que são a histerização do corpo da mulher, pedagogização do sexo da criança, socialização das condutas de procriação, e finalmente a psiquiatrização do prazer perverso.
Partindo dessa premissa, de que o sujeito é algo em vias de ser constituído por práticas sociais e dentro de um contexto histórico, acreditamos ter dado razões suficientes para empreender esta jornada. Temos também a nosso favor o fato de as pesquisa empreendidas por Michel Foucault ser hoje de suma importância pra a compreensão da sociedade hodierna.
A tarefa do filosofo é fazer um diagnóstico do presente e fazer realçar o que é óbvio, não "de enunciar verdades proféticas para o futuro, mas levar seus contemporâneos a perceber o que está acontecendo".[6]
É isso que tentaremos fazer nesta pesquisa.
Capitulo I
Disciplina como fundamento da constituição do sujeito.
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar, um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.
Michel Foucault
Quando se fala em constituição do sujeito moderno não há como não evocar o grito do supliciado. As transformações que ocorreram desde o poder absoluto do rei sobre o corpo do súdito passando pelas penas proporcionais até ao aprisionamento desembocam na disciplina que seria a generalização do poder de punir, tendo em vista objetivos mais produtivos do ponto de vista econômico.
Foucault descreve no inicio de sua obra Vigiar e Punir, parte I, "O corpo dos condenados"; como se executava e como reagia um supliciado diante da pena que lhe era imposta como forma de punição para o crime que cometeu. Erram gritos de dor exasperantes e desesperados seguidos de pedidos de perdão pelos pecados e pelos delitos seguidos novamente de gritos de dor.
No inicio do livro Vigiar e Punir Foucault relata sobre um parricida que estava passando pelo processo do suplicio e sobre ele.
Afirma-se que, embora ele sempre tivesse sido um grande praguejador, nenhuma blasfêmia lhe escapou dos lábios; apenas as dores excessivas faziam-no dar gritos horríveis, e muitas vezes repetia: "Meu Deus, tende piedade de mim; Jesus, socorrei-me". Os espectadores ficaram todos edificados com a solicitude do cura de Saint-Paul que, a despeito de sua idade avançada, não perdia nenhum momento para consolar o paciente.[7]
Essa forma de punição era uma clara manifestação do poder do rei, absoluto e soberano sobre o corpo do súdito. Qualquer ofensa cometida pelo súdito ofendia diretamente a pessoa do rei que reagia com presteza mostrando sua força.
O suplício funcionava como punição para o criminoso e de exemplo para os espectadores recrutados dentre a população ou atraídos pelo espetáculo público proporcionado pelo rei aos seus súditos. Era uma forma de punição composta de dois elementos essenciais, pois ao mesmo tempo em que o rei manifestava o poder ele precisava da presença do povo, sendo estes o outro elemento essencial do seu mecanismo. Daí temos que "a punição na forma de suplicio traz em seu próprio mecanismo o elemento-chave da sua desarticulação. [8]
Portanto, o povo que se vê atraído pelo espetáculo público da tortura em um momento, em outro momento recusa sua execução, e, dessa forma o poder soberano passa a ficar enfraquecido diante da solidariedade popular a certos criminosos.
É nesse momento que o discurso dos Reformadores como Beccaria, Rousseau, Brizot e outros, se elevam e ganham visibilidade, ao condenar o excesso de violência nas torturas públicas e exigindo a abolição do espetáculo de atrocidades. Diante dessa conjuntura estava montando-se o cenário para a reforma do direito criminal e o poder de punir vai deixar de ser um direito exclusivo do rei para ser um privilégio de vários segmentos da sociedade.
É claro que deveria mudar apenas a forma de punir e não extinguir a punição. De acordo com Foucault o que aconteceu realmente na reforma do direito criminal foi buscar uma forma mais abrangente de punição. Em suas palavras
Fazer da punição e da repressão uma função regular coextensiva à sociedade, não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir. [9]
Essa reforma do direito criminal vai ocorrer na segunda metade do século XVIII e vai delinear uma nova forma de punir, não mais apoiada no suplicio que validava a verdade da pena, mas apoiada num processo mais lento de descoberta do crime: o inquérito.
Diferente do suplicio que incidia sobre o corpo do acusado, o inquérito gira em outro âmbito, que é o da intelectualidade. Outra característica do inquérito é que ele rompe com a imediatez do poder de punir do soberano sobre o infrator.
Baseado na teoria do Contrato Social do Rousseau, o crime não é mais considerado como uma ofensa pessoal exclusiva ao soberano, mas uma agressão a toda sociedade. Nesse contexto fica instaurado ou pelo menos fica a tarefa de instaurar um quadro de punição proporcional ao crime cometido.
Um outro fator que estimulou a reforma do direito criminal e consequentemente mudanças na forma de punição foi a ascensão da burguesia que acumulava bens e via seus direitos e propriedades ameaçados pelas pilhagens. Surge nesse contexto uma crescente necessidade de distinção entre ilegalidade dos bens e ilegalidade dos direitos.
Como a ilegalidade dos bens são crimes característicos das camadas populares passa a ser estabelecido um rigor maior para esses crimes com penas e castigos dos quais não podiam de forma alguma escapar. Ao passo que, para a ilegalidade dos direitos, privilégios dos mais abastados, esses crimes eram constituídos por fraudes contábeis, evasão fiscal, era permitido uma serie de atenuantes. [10]
Esse poder de punir proporcional a gravidade do crime estendia-se ao longo da rede social a ponto de não ser mais identificado como o poder de alguns sobre alguns, mas como a reação imediata de todos em relação a cada um. Esta forma de punição tinha estratégia fundamental a manifestação pública sem a qual perdia sua eficácia. Nesse ponto ainda se assemelhava ao suplicio.
Nos últimos anos do séc. XVIII e inicio do séc. XIX surge uma nova forma de punição, universal, abrangente, uniforme: o aprisionamento. Esta forma de punição não exige proporcionalidade entre crime e castigo, mas enquadra a todos no mesmo dispositivo. Não necessita de manifestação pública para confirmar a eficácia de sua força, utiliza arquitetura fechada, isolada por muros que criam dois mundos distintos, o dentro e o fora.
O aprisionamento insere-se de forma marcante na sociedade, pois de acordo com Foucault as prisões são "figuras monótonas, ao mesmo tempo material e simbólica do poder de punir". [11] O poder materializa-se, mas a punição em si, deixa de ser pública, para encerrar-se misteriosamente intramuros.
Qual é a vantagem em substituir a punição pública cuja manifestação provocava medo e demonstrava força por uma punição em local secreto, fechado?
De acordo com Fonseca
A resposta se encontra dentro da prisão. Não somente dentro dela, mas em muitos outros lugares de reforma e de muitas outras modalidades administrativas, em vários setores da população. Ela deve ser buscada no surgimento e no desenvolvimento de uma tecnologia ligadas a novas formas de relação de poder que se estabelecem a partir do séc. XIX. Essa tecnologia ou mecanismo que Foucault chama de Disciplina funcionará à medida que começar a ser utilizada por certas instituições, como as casas de detenções e o Exército, pois já eram aplicadas com objetivos definidos dentro de lugares institucionais, tais como escola e o hospital, e também servirá para autoridades preexistentes, como a policia.[12]
Ainda, de acordo com Fonseca, o exercício da disciplina buscava três coisas:
que os exercícios do poder seja o menos custoso; que os efeitos do poder sejam levados ao máximo de intensidade e que esse crescimento do poder seja ligado ao rendimento dos aparelhos em que ele é exercido. [13]
A conjuntura histórica em que se deu o advento da disciplina justifica esses três objetivos, pois era um período de explosão demográfica e crescimento do aparelho de produção. Nesse caso, a função da disciplina seria fixar o crescimento da população para não chegar a níveis alarmantes, evitando dessa forma a flutuação e assegurar o aumento da rentabilidade dos aparelhos de produção que eram complexos e custosos ajustando a correlação entre esses dois processos.
A disciplina possibilita uma nova forma de produção de riqueza que substitui com louvor a dispendiosa estratégia de retirada violenta do sistema feudal, que suscitava muita resistência. Ela se apóia no principio de suavidade-produção-lucro, vinculando dessa forma a disciplina à acumulação de bens. A burguesia que tinha por base o acúmulo de bens suscitou a condição de possibilidade da disciplina e a partir daí a disciplina acelerou este processo podendo-se dizer que ambos, burguesia e disciplina, surgiram numa conjuntura em que, acredito, de qualquer forma não poderia ter deixado de surgir. Pois sobre o assunto Foucault afirma que
As mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho e a elaboração das maneiras de proceder disciplinares mantiveram um conjunto de ralação muito próximas. Cada uma das duas tornou possível a outra, e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para outra.[14]
Muito embora a prisão ativa os mecanismos disciplinares com mais intensidade, o que mais nos interessa nesta pesquisa são as técnicas disciplinares em si mesmas, enquanto tecnologia de constituição do sujeito. Pois é através da disciplina que se dá o controle minucioso dos corpos e de suas partes, suas atividades, do tempo e das forças. O individuo moderno como sujeito deve ser dócil, útil e produtivo.
A disciplina incide sobre os corpos dos indivíduos incitando-os a responder a estímulos, ela não é tipo de dominação que restringe, apropria e conduz, antes confere ao individuo relativa liberdade de maneira que sua autonomia fica preservada. Logo, quando o individuo –submetido a tais técnicas disciplinares- age, ele o faz como se fosse por iniciativa própria. A disciplina não quer produzir corpos sobre os quais devam incidir constante coerção e intimidação, isso seria contraproducente do ponto de vista da economia. Era necessário conduzi-lo a obediência através de um controle ininterrupto, mas que tivesse vinculado a impressão, por parte do individuo, de sua autonomia, ou seja, a disciplina utiliza toda uma política de coerções sutis.
Foucault define a disciplina como uma verdadeira anatomia política do detalhe[15] e, como esta forma de dominação pode ser facilmente confundida ou relacionada com outras formas clássicas de dominação Foucault ressalta que ela se diferencia das outras tais como: a escravidão, a domesticidade, vassalagem, e ascetismo.
As técnicas disciplinares diferenciam da escravidão na medida em que não efetuam uma apropriação dos corpos, no sentido de subjugá-lo e impor-lhes algo por meio de uma força exterior a sua própria vontade. A tecnologia disciplinar traduz-se por uma apropriação daquilo que o individuo produz, seus saberes, sentimentos, hábitos e tudo que lhe é relacionado em sua peculiaridade, sem, no entanto, retirá-lo do ambiente em que lhe é próprio. Essa apropriação incide sobre a constituição do sujeito, moldando-lhes os hábitos, instigando-o a ação sem a necessidade de impor e subjugar.
A disciplina enquanto técnica de dominação e de constituição do sujeito difere da domesticidade porque em hipótese alguma estabelece vinculo de uma dominação constante a partir de uma vontade singular. Não é semelhante nem está relacionado a vassalagem porque a disciplina incide sobre a operação do corpo muito mais que sobre a operação do trabalho, mais do que produção de bens a disciplina visa os domínios dos corpos. Por fim, o ascetismo prega a renuncia por obediência, ao passo que, a disciplina não prega a renuncia, mas incita a atitudes.[16] Como já referimos acima, a disciplina deixa o individuo com a sensação de autonomia quando ele é, na verdade, um corpo fabricado para ser submisso, exercitado e dócil. De acordo com Foucault a
disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.[17]
Como advento da disciplina houve uma mudança radical na forma de punição. É claro que a punição não se tornou mais branda nem menos efetiva, só deixou de atuar diretamente no corpo e passou a ser aplicado na alma visando a submissão dos corpos dos indivíduos utilizando para isso três mecanismos que se seguirão.
1) O olhar constante da vigilância hierárquica.
A disciplina como afirma Foucault na conferência intitulada o "Nascimento do Hospital"[18] não exerce controle sobre o resultado da ação, mas sobre o seu desenvolvimento. Se o interesse é o engendramento desse produto com a finalidade de garantir que o resultado final esteja em sintonia com os objetivos é necessário que a observação constante seja um instrumento essencial desse procedimento.
As técnicas de vigilância forma utilizadas com intensidade cada vez maior no decorrer do século XIX, levando a adequação espacial dos indivíduos para possibilitar uma observação completa da enorme variedade das ações e das atitudes humanas. Neste momento se torna imprescindível que nenhuma atitude permanecesse em segredo ou oculto do olhar da vigilância.
Os hospitais, as escolas, as prisões, as fábricas, acampamentos militares, as cidades operárias tornaram-se imensos e verdadeiros laboratórios onde essas técnicas foram sendo implantadas gradativamente, tendo como principio um encaixamento espacial das vigilâncias hierárquicas, ou seja, os estratos inferiores eram vigiados por seus superiores diretos e assim sucessivamente de forma que, a quem realmente interessava o conhecimento e o controle – os estratos mais altos- isso era garantida em sua intensidade e com elevado grau de discrição. O objetivo da vigilância como instrumento da disciplina era capacitar o olhar do aparelho disciplinar a uma visão total e permanente.
Tendo na espontaneidade daqueles que ocupam determinados espaços a função de todos vigiarem todos, e, não havendo um lugar específico de onde se exercia a vigilância. Portanto, ela funciona de alto a baixo e em sua lateralidade. A vantagem dessa tecnologia é a sua capacidade de não ser realmente necessária a observação constante, mas a consciência de visibilidade que ela suscita em cada e em todos, assegura que, mesmo que a ação seja descontínua, seus efeitos não o são. O símbolo do poder que vigia está sempre presente e não há como determinar que assim não o seja.
Dessa forma, a única certeza dos indivíduos submetidos a essa tecnologia é a sensação de que estão sendo vigiados a qualquer momento, o tempo todo, ininterruptamente. Ainda mais, o individuo que está sendo vigiado é alvo de constante visibilidade ao passo que ele nada pode ver, exceto a imagem do poder que vigia.
Podemos encontrar a forma mais completa de descrição desse mecanismo de tecnologia disciplinar conforme Foucault aponta, no Panóptico de Bentham[19]. Essa figura arquitetural consegue materializar a funcionalidade das estratégias disciplinares, . Um dos modelos de Panóptico de Bentham envolve duas construções básicas, uma em forma de anel na periferia do conjunto, e a outra, uma torre situada estrategicamente no centro.[20]
As transformações ocorridas para criar as condições de possibilidade da vigilância, levaram a inversão da visibilidade nos prédios. Os castelos, por exemplo, eram edificados de forma a garantir a vigilância externa com torres voltadas para o espaço exterior, essa tecnologia exigiu que a visibilidade voltasse para o seu próprio interior, permitindo seu controle.
Daí as disposições espaciais das carteiras escolares, dos leitos hospitalares, das maquinas nas fabricas, dos acampamentos militares e das celas das prisões. Toda a disposição arquitetônica favorece o olhar na observação constante, permitindo que essa estratégia de poder fosse posta em ação sem o uso de força, visto que o individuo vigiado transforma-se no principio de sua própria submissão.
Os procedimentos sutis da sanção normalizadora.
Seguindo passo a passo as tecnologias que levam a constituição do sujeito, tendo como fundamento a disciplina, temos pela frente, imediatamente após a vigilância, a normalização. De acordo com Fonseca, a sanção normalizadora pode ser entendida "como um conjunto de procedimentos punitivos relacionados a uma infinidade de pequenas atitudes e comportamentos, que escapam ao controle dos grandes sistemas de punição."[21]
A sanção normalizadora atua sobre os menores atos, as menores condutas e busca conhecer os comportamentos mais sutis atuando no espaço vazio deixado pelas leis. O que lhes interessa são os procedimentos sutis que dizem respeito a utilização do tempo, as formas de pronunciamento dos discursos, como os indivíduos usam o corpo e a sexualidade bem como a maneira de se expressar e se manifestar. A sanção normalizadora busca, acima de tudo, coibir os atrasos, as desatenções na realização da tarefa, imodéstia, indecência, gestos não considerados de acordo pela instância que vigia, interrupções das tarefas que possam causar prejuízos a economia, falta de zelo com materiais e equipamentos. É malha fina que detecta atitudes que escapam ao controle dos sistemas penais, mas não deixa de ser importante para os procedimentos disciplinares. Nessa brecha entra em ação a sanção normalizadora.
O funcionamento da sanção normalizadora permite isolar e agir sobre pequenas atitudes e emprega formas sutis de punição. Nos pequenos desvios de observância das regras, ela isola o infrator, para impedir que o mau exemplo se alastre, ao mesmo tempo, em que age para evitar que se repita novamente a inobservância da regra punindo o infrator. O castigo é singular, positivo, afirmativo; obriga o infrator a repetir a ação ou regra que ele transgrediu várias vezes como forma de exercício. A repetição visa corrigir o comportamento identificado como desviante, é corretivo e redirecionador, não um castigo vingativo de demonstração de força.
A finalidade é criar condutas cada vez mais conforme a regra, por isso, além de obrigar a exercícios, a sanção normalizadora estabelece um sistema de recompensa com a função de classificar as condutas. A princípio o exercício aplicado pela sanção disciplinar tem a finalidade de adequar a conduta do desviante, no entanto ela vai além, permitindo que se conheça índoles e valores dos indivíduos, visto que pela opção abre-se a possibilidade de escolha entre dois caminhos: a conduta considerada adequada sob o ponto de vista da instância que vigia leva a recompensa, ao passo que a atitude considerada desviante, o erro, leva a punição; pela punição conhece-se a índole do individuo.
A sanção normalizadora além de conhecer, diferenciar e classificar os comportamentos e atitudes, ela tem poder de conhecer o individuo determinando sua índole, sua natureza e seus valores. Mas longe de ser uma tecnologia de repressão é, antes de qualquer coisa e essencialmente, uma técnica voltada para uma operacionalidade. De acordo com Foucault
A arte de punir, no regime do poder disciplinar, não visa nem a expiação, nem mesmo exatamente a repressão. Põem em funcionamento cinco operações bem distintas: relacionar os atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a seguir. Diferenciar os indivíduos em relação uns aos outros e em função dessa regra de conjunto que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as capacidades, o nível, a "natureza" dos indivíduos. [22]
Fonseca diz que a sanção normalizadora
Envolve a classificação e a qualificação de atos e comportamentos sutis, obriga à escolha entre valores, permitindo a diferenciação dos indivíduos e a mensuração de sua natureza e capacidade, põe em funcionamento um sistema de exercícios repetitivos de acordo com uma conformidade esperada e traça um limite entre os que estão de acordo com a normalidade que estabelece e os que não estão. [23]
A sanção normalizadora busca homogeneizar os indivíduos, visto que o leva a comportamentos desviantes é a singularidade de cada um. Sua atuação permite enquadrar especificidades e diferenças no sistema operacional da disciplina, colocando todos no mesmo patamar, ou seja, normalizando. Ela permite utilizar todos os elementos conseguidos pela disciplina, não faz com que sejam iguais, mas que todos se pareçam em torno de um padrão de normalidade, preservando para todos os efeitos, a individualidade.
Para que a sanção normalizadora tenha eficácia como instrumento da disciplina é imprescindível que ela tenha esta característica: normaliza ao mesmo tempo em que mantém a individualidade.
As técnicas de arquivamento do exame
Próxima tecnologia para análise que contribuí para a constituição do sujeito é o exame, que é o resultado da junção da vigilância e da sanção normalizadora. Foucault relaciona três procedimentos que faz do exame um mecanismo essencial da disciplina: inversão de visibilidade, arquivo, e individualização dos casos.
A visibilidade era uma forma de poder próprio dos reis e tinha como principio de sustentação a manifestação. Para o rei, era necessário se mostrar, estar presente, ser visto e só e somente só dessa forma era respeitado. Os súditos não deviam aparecer, mas apenas refletir com a vida ou com a morte, o poder que sobre eles agiam. Mas a disciplina através do exame inverte essa visibilidade, daí a afirmação de Foucault.
É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeita. [24]
A tecnologia disciplinar do exame inverte a visibilidade, agora é o que exerce poder que deve permanecer oculto, mas em hipótese alguma deve deixar de atuar, apenas, não fica visível, exposto. Diante da ocultação do poder exercido, o individuo fica obrigatoriamente em evidencia, quem antes era esquecido passa a ser alvo de manifestação constante.
Sucedeu dessa forma nos hospitais, nas escolas; doentes e alunos passam a ficar em evidencia, Foucault diz que "a inspeção de antigamente, descontínua e rápida, se transforma em uma observação regular que coloca o doente em situação de exame quase perpétuo".[25] E que "do mesmo modo, a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino".[26]
Forçado a se manifestar, a partir daí o individuo é constantemente vigiado pela tecnologia disciplinar do exame, com isso foi possível montar e manter um arquivo sobre ele. Desta forma a individualidade entra no campo do documentário, ou seja, toda informação extraída pelo exame é documentada, nenhum detalhe é perdido, qualquer hábito, ação, os procedimentos mais sutis são registrados e quando não estão sendo utilizados ficam disponíveis em arquivos para qualquer eventualidade.
Com a tecnologia do exame a disciplina consegue constituir o individuo com um objeto documentado, analisável, descritível. Fonseca diz que
O registro do exame permite manter a singularidade que aparece em cada individualidade, com seus desvios, seus traços particulares, suas aptidões e capacidades. Tal procedimento permite ao mecanismo disciplinar uma utilização praticamente personalizada de cada individuo, com vista a uma normalização, que não representa a uniformização das individualidades, mas sua adequação a um dispositivo.[27]
O individuo objetivado transforma-se em um "caso" podendo ser utilizado como peça de um dispositivo estratégico que permite uma serie de utilizações. Nessa categoria entra a criança, o louco, o doente, o condenado que foi alvo de uma serie de descrições.
Foucault afirma que essa tecnologia tornou comum o que era privilegio de poucos, embora os objetivos sejam outros. Antes
Ser olhado, observado, contado detalhadamente, seguido dia por dia por uma escrita ininterrupta era um privilégio. A crônica de um homem, o relato de sua vida, sua historiografia redigida no desenrolar de sua existência faziam parte dos rituais do poderio. Os procedimentos disciplinares reviram essa relação, abaixando o limite da individualidade descritível e fazem dessa descrição um meio de controle e um método de dominação. Não mais monumento para uma memória futura, mas documento para uma utilização eventual.[28]
Portanto, a disciplina é um "dispositivo"[29] cujos mecanismos permitem a realização das grandes funções disciplinares que constituem o sujeito moderno deixando-o com características bem definidas: docilidade, utilidade e a sensação de autonomia. Isso porque o poder disciplinar põe em funcionamento uma rede de procedimentos que atinge os aspectos mais sutis da realidade e da vida cotidiana dos indivíduos, podendo ser caracterizado como um micropoder que se capilariza e consegue se fazer presente em todos os níveis e pontos da rede social.
Por fim entendemos que a disciplinarização da sociedade conseguida pelos mecanismos acima mencionados, tem como produto essencial, o individuo moderno e seu maior efeito é: produzir uma individualidade que corresponda as expectativas da acumulação e uma gestão útil dos homens. A disciplina produziu e essa era a finalidade, um individuo comum, de todos os dias e todos os lugares e não um indivíduo singularizado. Ele foi fabricado tendo vistas sua utilização e aproveitamento em sistema sconomico emergente
[1] FONSECA. Michel Foucault e a constituição do sujeito. 2003. p.informa que Salma Tanus Muchail divide a obra de Foucault em três momentos distintos. Empírico-descritivo que agrupariam Histoire de la folie à l´age classique, Naissance de la Clinique e Lês mots e lês choses; reflexão metodológica com L´archeologie du savoir; e por fim as obras de caráter descritivo, a saber, Surveiller et punir e Histoire de la sexualité: la volonté du savoir, lês usages des plaisires, e Le souci de soi
[2] MACHADO.Ciência e Saber. 1982, Pg 57
[3] Id ibid
[4] Nenhum pensador grego jamais encontrou uma definição do sujeito, jamais a buscou. (...) Faltou a Antiguidade Clássica problematizar a constituiçãode si como sujeito. Ditos e Escritos. O retorno da moral.
[5] FONSECA. Op. cit. 2003, p. 26
[6] GROS. A coragem da verdade. 2004, p. 16
[7]FOUCAULT. Vigiar e Punir. 2005, p, 9
[8] FONSECA.Op.cit. 2003, p. 43.
[9] FOUCAULT. Op cit. 2005, p. 76 e 84.
[10] Neste quesito, qualquer semelhança com o nosso Brasil, não será mera coincidência. Por estes trópicos há uma lei para negros, pobres e analfabetos e outra mais branda para brancos, ricos com maior nível de escolaridade. Cito também os crimes do colarinho branco.
[11] FOUCAULT. Op. cit . 2005, p. 103.
[12] FONSECA. Op cit. 2003, p. 49.
[13]Id ibid, p. 49.
[14] FOUCAULT. Op. cit. 2005, p. 192.
[15]FOUCAULT. Op. cit. 2005, 119. Traz o seguinte: Para advertir os impacientes, lembremos o marechal de Saxe: Aqueles que cuidam dos detalhes muitas vezes parecem espíritos tacanhos, entretanto esta parte é essencial, porque ela é o fundamento, e é impossível levantar qualquer edifício ouestabelecer qualquer método sem ter os princípios. Não basta ter o gosto pela arquitetura. É preciso conhecer a arte de talhar pedras. Grifo meu.
[16] Cf. FOUCAULT, Op.cit. 2005, p. 117-118. Para compreender melhor a diferença entre disciplina e esses quatro itens citados acima.
[17] FOUCAULT. Op. cit. 2005, p. 118.
[18]FOUCAULT, Michel. "O nascimento do hospital". In: Microfísica do poder, 1988, pp 99-111. Vide também Vigiar e Punir, 2005, pg 117 que diz"A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado."
[19] Bentham (1748-1832) Filósofo inglês, fundador do utilitarismo, desenvolvido depois por John Stuart Mill (1806- 1873). Em sua obra, intitulada O Panóptico (1786), Bentham elabora todo um plano de organização arquitetural das prisões a fim de submeter os prisioneiros a uma vigilância permanente e poder reinseri-los no sistema produtivo. Pretendia estender esse plano a todas as instituições de educação e de trabalho.
[20] Há várias outras formas, cujos desenhos podem ser conferidos na edição de 2005 da obra Vigiar e Punir a p. 32.
[21] FONSECA.Op.cit 2003, p. 57
[22]FOUCAULT. Op. cit 2005, p. 152.
[23] FONSECA. Op.cit. 2003,p. 59-60
[24] FOUCAULT. Op cit,2005, p.154
[25]FOUCAULT. Op.cit. 2005, p.155
[26] Id ibid
[27] FONSECA. Op. Cit. 2003, p. 62
[28] FOUCAULT. Op. cit. 2005, p. 159.
[29] Para saber mais sobre o assunto vide o artigo: O que é um dispositivo? DELEUZE, Gilles.¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, p. 155-161. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.