Memórias Solidárias

Por Rosamares da Maia | 10/06/2016 | Crônicas

 CRONICAS DA SAUDADE   -  Memorias Solidárias

   Não, eu não tenho memórias de fome e/ou miséria, não que as tenha vivido, mas, lembro-me de conhecê-las em muita gente. Lembro-me de tempos difíceis, onde não havia pão perdido, nem sobras deitadas no lixo.

   Recordo perfeitamente do pão de ontem assado no fogo na manhã do dia seguinte, do ovinho da galinha de quintal no lugar da manteiga que já havia acabado e que só retornaria nas compras do final do mês. Aliás, manteiga era o artigo mais fácil de ser substituído: ovo, banana, açúcar, umas cebolinhas fritas e até goiabada, que na minha infância não era artigo de luxo.

   Nem o pão era coisa indispensável e, quando na semana que antecedia o final do mês as coisas apertavam muito, minha memoria viaja até as pequenas hortas, nos pedacinhos do sítio onde morávamos. O pão virava aipim, batata doce, inhame, também banana da terra cozida ou ainda, uma gostosa broa de farinha de milho – delícia dos deuses!

   Eu não tenho na memória as dores da fome e da necessidade, muito embora a conhecesse em outras pessoas. O que eu tenho são memórias de uma pobreza com dignidade, tenho amplas lembranças de espaços claros e limpos, de pequenos pedaços de terra cultivados, de poços com água de fonte cristalina, onde matávamos a sede e satisfazíamos todas as demais necessidades humanas, apenas agradecendo a Deus pelas bênçãos.

   Lembro até de alguns pequenos balões de carvão do meu tio Manezinho, mas não tenho na memória a terra depredada, devastada para fazê-los, Não sei como isto funcionava, mas a terra era sempre muito verde e cultivada. Ele especialmente plantava laranjas de diversas qualidades. Era meio sovina e tinha algum dinheiro guardado, mas vivia como se tivesse menos que todo mundo. Era a vida que escolheu para viver e, graças a ele, todos até os dias de hoje, tem o chão sob os pés e um teto sobre as suas cabeças. Ele era o dono do sítio onde nascemos, crescemos e alguns já morreram. Os que não moram mais naquelas terras, se foram espontaneamente, a grande maioria da família está lá até hoje. Mais esta é uma história para ser explorada em outra oportunidade.

   O fato é que assando o meu pão dormido para tomar café, por preguiça de ir até a padaria, em um dia frio e chuvoso, a memória me tirou para dançar. O cheiro do pão assado foi como um gatilho, ou melhor, como a musica que abriu a cortina do tempo passado e eu fui alinhando as lembranças. Com a tendência que temos de procurar dores, uma espécie de autocomiseração, mas, meia que surpresa, eu escavei e encontrei os tesouros da minha infância. Eu os tinha, mesmo depois de haver saído, de não morar mais lá, porque eles permaneceram em mim e, eu sempre volto buscando as origens.

   Não, realmente não tenho as memórias da infelicidade da pobreza, não passei necessidades, talvez quando criança ficasse um pouco triste por um brinquedo ou outro que não pudesse ter, mas, conquistei a minha boneca Jaqueline já com os meus onze anos de idade – antes tarde do que nunca. As outras eram todas de plástico duro e com cabelos também de plástico. Criança tem um mundinho meio egocêntrico e persegue tesouros próprios da sua idade, isto quando a realidade permite é lógico. Neste caso, a minha maior vantagem foi ter a criatividade estimulada para vesti-las, transformando qualquer pedaço de pano em luxuosas roupas dignas das princesas dos contos de fada e felizmente esta habilidade permaneceu até os dias atuais.

   Dos tesouros preservados pela memória lembro-me de não pensar se éramos pobres, pois apesar das dificuldades que começavam lá pelo dia vinte de cada mês, sempre podíamos dividir o nosso pouco com aqueles que tinham menos que nós, sempre socorríamos a família ou vizinhos próximos. Então, vem à memória algumas coisas para as quais ficava muito atenta:

- Judith você tem uma canequinha de açúcar para me emprestar?

- Tenho sim! Leve também uns três ovinhos da galinha aqui do quintal.  Sabe que a safada está pondo no mato?

- Não diga! Tem que prender ela, para desacostumar.

- Pois é. Há ontem eu colhi uma abóbora quer um pedaço? E uns chuchus aqui da parreira. Você quer?

- Se não vai fazer falta eu aceito sim.

  Eu ficava olhando sem saber por que a minha mãe e a minha avó, que era a maior multiplicadora de recursos que eu já conheci, dividiam o que parecia ser tão pouco. Hoje eu sei. Tenho memória da solidariedade familiar, de pobreza com dignidade e amor.

 As minhas dores nasceram na fartura dos dias de hoje.