Memorial de Formação
Por Maria de Fátima Silva Santos | 05/07/2011 | CrescimentoINSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
DE MATO GROSSO CAMPUS CUIABÁ OCTAYDE JORGE DA SILVA
DIRETORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO
Maria de Fátima da Silva Santos
Vivência, Cultura e Aprendizagens...
Sinop/MT
2010
INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
DE MATO GROSSO CAMPUS CUIABÁ OCTAYDE JORGE DA SILVA
DIRETORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO
MARIA DE FÁTIMA DA SILVA SANTOS
Memorial de Formação
Vivência ,Cultura e Aprendizagem...
Trabalho apresentado a Diretoria de Pesquisa e
Pós?Graduação do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Mato Grosso,como
pré-requisito para obtenção do título de especialista
em PROEJA,sob a orientação da Professora Mestre
e Educação ,Maria Ubaldina Costa Sanches.
Sinop/MT
2010
Dedicatória
Dedico este trabalho ao primeiro "filósofo"
que tive a honra de conhecer, meu Pai, que
apesar de ser analfabeto esbanjava conhecimento
nas suas sábias palavras ecoam na
minha memória impelindo-me á luta,
busca e a realização de todos os sonhos possíveis...
À Deus...
Força Cósmica que dirige meus passos no
árduo caminho do conhecimento.
Aos filhos e netos razão da minha vida,
com esperança.
Ao meu companheiro, amigo, confidente e
cúmplice dos mais loucos desatinos cometidos.
À minha mestre entusiasmada que
infundiu em mim a tarefa de desenvolver esse texto.
Abraços!
Elogios da Aprendizagem
Aprenda o mais simples! Para aqueles
Cuja hora chegou.
Nunca é tarde de mais!
Aprenda o ABC; não basta mais aprenda!
Não desanime!
Comece. È preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!
Aprenda, homem no asilo!
Aprenda, homem na prisão!
Aprenda, mulher na cozinha!
Aprenda ancião!
Você tem que assumir o comando!
Freqüente a escola, você que não tem casa!
Adquira conhecimento você que sente frio!
Você que tem fome, agarre os livros;
È uma arma:
Você tem que assumir o comando!
Não se envergonhe de perguntar, camarada!
Não se deixe convencer.
Veja com seus olhos!
O que não sabe por conta própria
Não sabe; verifique a conta
È você que pai pagar.
Ponha o dedo em cada item,
Pergunte: O que é isso?
Você tem que assumir o comando.
Bertold Brecht.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 06
I. O CAMINHO DA ESCOLA: PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO 07 LETRAMENTO
II. ENCONTROS E ATALHOS NO CURSO GINASIAL 13
III. A PONTE: PROJETO LOGOS II 16
IV. O CALVÁRIO DAS LETRAS 20
V. APÓS A PÓS... PÓS 25
CONSIDERAÇÕES 27
REFERÊNCIAS 28
Apresentação...
Seria muita pretensão iniciar esse memorial dizendo que estou escrevendo uma autobiografia.
Afinal quem desejaria conhecer uma história de alguém que não representa uma carreira artística, não pertence a nenhum clã especial, nem aparece na propaganda de sabão em pó?
Então vamos revisar o termo ME-MO-RI-AL...
Todas as pessoas são dotadas de memória, inteligência e saberes.Teoricamente saber, faz jus a evolução humana e diferencia dos outros animais.
Portanto a elaboração de Memoriais Formativos têm como objetivo proporcionar um contexto de produção que instigue ao professor reviver seu percurso. Reviver a trajetória escolar e refletir sobre o desenvolvimento pessoal e profissional, é uma experiência importante para ressignificar as aprendizagens e suas condições de produção.
No entanto esse texto faz referência aos vários momentos de aprendizagem , praticas educativas e reflexivas sobre o ensino e aquisição do conhecimento teórico ? metodológico - filosófico. Essa discussão torna-se mais aprofundada quando se refere ao profissional da educação que através da escrita do memorial formativo, toma parte na produção contextualizada da sua história de vida e aprendizagem e da história do outro enquanto aprendiz.
Ao reviver o percurso de sua formação e profissionalização revemos os fracassos e sucessos, as vitórias e derrotas enfim os enfrentamentos, isto é a percepção crítica das possibilidades e limites esse é um processo privilegiado de reflexão sobre si mesmo e um dispositivo para compreensão do saber.
Através da escrita do memorial já não podemos retroceder diante da realidade e tomarmos posição de destaque enquanto educador.
Por isso deixo aqui um convite á viagem, á retrospectiva de um educador em formação profissional continuada, na perspectiva de que juntos façamos uma reflexão da prática e de quem fomos e quem somos.
II ? O CAMINHO DA "ESCOLA", PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
O momento em que fui a "escola" pela primeira vez, é nítido, uma lembrança que deixou detalhes surpreendentes, apesar de ter apenas cincos anos (1960) saí de casa cedo com meus irmãos à caminho da escola...a estrada longa se estendia a minha frente numa proporção gigantesca, havia um areião que engolia nossas pernas até os joelhos "as minhas, então,pois eu era minúscula", por isso tudo se sobre saía diante de mim parecia de uma dimensão extravagante.
Meu pai, nos seus conselhos sempre dizia a todos nós o quanto era importante, para não ser um "cego" como ele era, sua meta era que os filhos aprendessem a ler e a escrever "para ler uma carta e escrever outra" esta palavra fixas em minha mente me fizeram refletí-las por muitos anos.
Ao chegar à "escola" assustei-me com o que vi "o professor" um homem enorme, com cara de mau e sobre a mesa alguns livros velhos em meio aos cadernos dos alunos, na sala alguns bancos separados (a turma multisseriada) o que dificultava a compreensão.
Ganhei do meu pai uma brochurinha que chamavam carta de ABC, nela não havia uma gravura, ilustrações... eram as letras "pretas" num papel tipo jornal, na sua primeira folha estava o alfabeto maiúsculo em letras de imprensa (caixa alta) na segunda página, o alfabeto estava dividido em vogais e consoantes, em seguido o alfabeto manuscrito, maiúsculo e minúsculo, assim por diante até o B + A = BA que era lido assim mesmo, depois a formação das palavras em duas sílabas e em ordem alfabética: baba, coco, dedo, faca, isoladamente descontextualizadas.
Essa parte da história é apenas um relato não há como teorizar pois era tudo muito solto, desconexo, são apenas rasgos de memória o que deveria ser uma recepção alegre festiva foi uma decepção geral, um quadro grotesco onde o terror tomou conta do meu ser.
Nesse primeiro dia de aula não tive progresso algum, as letras não diziam nada, o professor carrancudo circulando de um lado pro outro daquela sala, fiquei o tempo todo encolhida, principalmente quando ouvia aquela voz forte, meio rouca ralhando alto com as outras crianças.
Voltei pra casa triste, fiquei a tarde toda em profunda melancolia... algo em mim parecia ter morrido,era exatamente uma perda, não sei se o sonho da escola, de aprender "a ler e escrever" ou quem sabe a frustração daquele modelo de escola, não tinha explicação, ou seja não tinha ninguém pra me explicar.
Durante toda semana retornei á escola sem muita empolgação, os alunos liam em voz alta, como se estivessem cantando, uma canção uníssona numa língua que eu não compreendia, eram suas lições suas tabuadas... enquanto isso eu tentava adivinhar o nome das letras "pretas" que eram lidas rapidamente pelos outros alunos e eu não conseguia acompanhar, o professor como um "leão de chácara" rodando pela sala de um lado para o outro soltando um "rugido" de vez em quando.
Fui ficando nervosa com tudo aquilo, o barulho das vozes naquela cantilena, a cara dura do professor, contando que na hora de "dar a lição" cada aluno ia á mesa perto do "monstro", tremendo a voz, ás vezes erravam a leitura e ganhavam um "bolo" de palmatória.
O medo se apossava de mim, pois havia uma letra que eu não conseguia pronunciar a letra (W) em dado momento rasguei a folha da Carta de ABC e comi literalmente para escapar daquele momento cruel... não queria ganhar o "bolo".
A cada dia ficava mais nervosa e sucessivas vezes rasguei, mastiguei e engoli a folha da leitura, o professor não falou nada comigo, mas falou pra meu pai que decidiu deixar-me em casa esperar um pouco mais, pois eu era muito nova, mimada por todos e não estava correspondendo ao seu esforço, seu desejo de os filhos estudarem.
No entanto, meus irmãos continuavam indo á "escola" e á noite na luz escassa da lamparina faziam suas tarefas em volta da mesa e eu ficava bisbilhotando, perguntando, rasbiscando as folhas que eles me davam para ficar quieta.
Aqui, segundo Salvador César Coll no livro Psicologia do Ensino afirma que:
"Em uma organização do tipo cooperativo os participantes atingem o seu objetivo, na medida em que os outros atingem os seus, de maneira que, nessa estrutura, os sucessos de cada um beneficiam aos demais membros
do grupo com quem interatuam cooperativamente para conseguir
objetivos estreitamente vinculados entre si." (ver Coll. 1984 p. 189).
Mesmo não havendo objetivos pré estabelecidos, havia a cooperação mútua, enquanto um lia, outro ouvia, procurando compreender o sentido dos textos lidos. Com isso cada se beneficiava dessa interação.
E era nesse clima de cooperatividade que meu irmão mais velho lia histórias como a do Mestre Zuza... "o velho carpinteiro que no seu ofício dava nomes engraçados ás suas ferramentas; o martelo se chamava toc toc, o formão era o rompe-ferro e o serrote o vai-e-vem.Às vezes os vizinhos pediam-lhe algum emprestado e não devolviam.
Então velho Zuza ficava nervoso.
Certo dia um garoto veio, á mando do pai, pedir-lhe emprestado o serrote, ao que o velho respondeu:
-Menino, volta e diz ao teu pai que, se o vai-e vem fosse e viesse, o vai-e vem ia, mas como vai-e-vem vai e não vem, vai-e-vem não vai".
Infelizmente não consegui descobri quem é o autor do texto, mas lembro-me que na capa do livro havia as várias regiões do Brasil num mapa colorido: havia um seringueiro numa ponta, um vaqueiro na outra, um homem de calças largas (gaúcho) e assim por diante. Prendi a atenção no nome do livro... Vamos estudar! Isso era uma espécie de convite, sei também que o autor era Teobaldo Miranda Santos e o livro publicado pela Editora AGIR.
Fui aprendendo a ver detalhes com os livros dos meus irmãos e aprendia os textos decorados, para me aparecer "saliente" dizia meu pai sorrindo.
Nas noites de serão, enquanto os trabalhadores da roça esperavam a hora de dormir, debulhando milho, meu irmão mais velho, a pedido de meu, pai, sentava-se numa cadeira, na maior pachorra, e lia os "romances" de literatura de Cordel****, que meu pai comprava sempre na feira.
Lembro-me do primeiro que decorei...O romance do Reino do Mar Sem Fim...esses textos rimados ajudam na memorização e nisso eu sempre fui muito boa.
Por isso me reporto o que diz Cezar Coll a respeito da aprendizagem:
"... mostram que a combinação peculiar entre igualdade e mutualidade criada nos diversos enfoques, faz com que cada uma seja particularmente adequada para realizar um determinado tipo de aprendizagem. Assim, as relações tutelares (...) caracterizados por uma baixa igualdade e uma mutualidade variável, seriam apropriadas para dominar habilidades já adquiridas, porém ainda não aperfeiçoadas". (Coll1984. pág.190)
Essas lembranças são tão vivas que as cores, os cheiros, os sons me voltam, como se os tivessem, sentindo... agora.
Não sei precisar quanto tempo levei ouvindo leituras decorando textos inteiros, recitando-os como se realmente soubesse ler. Porém consegui ler a Cartilha do Povo que era da minha irmã, nelas as gravuras eram em preto e branco e havia na última página um pequeno texto, em quadrinhos, com rimas e isso era muito fácil de decorar.
Então aprendi logo a leitura da Cartilha que começava com umas frases soltas como: A ave voa...Eva viu a uva...O ovo é da ave... e a última lição eu até cantava de tão fácil que era :
Já sei ler corretamente
faço conta de somar
sou batuta em dividir
gosto de multiplicar
Se mamãe me der um doce
na hora de merendar
acabo comendo três
como sei multiplicar
Quando a professora
escreve
no quadro negro da
escola
leio até de olhos fechados
Paulo corre atrás da bola.
.
Eu nunca havia visto um quadro negro antes e imaginava "de olhos fechados" como seria isso!?
Assim mostrei a meu pai que sabia ler, e fui! Lia, escrevia do meu jeito, meus irmãos que também não sabiam lá grande coisa, ficavam estupefatos e confirmavam que eu estava lendo certo.
Por isso continuo afirmando a luz da teoria de César Coll que:
"Os esquemas do conhecimento são como as peças básicas da construção cognitiva que permitem ao sujeito filtrar, selecionar e interpretar o fluxo de informações e definem a maneira como o conhecimento vai organizando-se. São conjuntos organizados de conhecimentos pelos conceitos relativos a objetos, pessoas ou acontecimentos".
Nesse contexto, podemos compreender que a aquisição do conhecimento cognitivo, parte de uma seleção organizada do que se pretende apreender, relacionando-se ao que nos é importante.
Assim continuei tentando compreender até que no momento oportuno tive condições de entrar na escola realmente.
Isso não tardou muito, pois no ano de 1962, a primeira escola municipal foi criada e eu fui matriculada na 1ª série, lendo, escrevendo e contando.
Ganhei meu livro de Português que se chamava Nordeste e tinha a capa alaranjada, um livro de Aritmética, um livro de Geografia do Maranhão... só não sei o nome dos autores...
Neste livro Nordeste havia um texto que me emocionava;
O rei atirou
Seu anel ao mar
E disse às sereias:
- Ide-o lá buscar,
Que se o não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias,
Não tardou, voltaram
Com o perdido anel
Maldito o capricho
De rei tão cruel!
O rei atirou
Grãos de arroz ao mar
E disse às sereias:
- Ide-os lá buscar,
Que se os não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias
Não tardou, voltaram,
Não faltava um grão.
Maldito capricho
De mau coração!
O rei atirou
Sua filha ao mar
E disse às sereias:
- Ide-a lá buscar,
Que se a não trouxerdes
Virareis espuma
Das ondas do mar!
Foram as sereias...
Quem as viu voltar?...
Não voltaram nunca!
Viraram espuma
Das ondas do mar.
(A balada do rei das sereias de Manoel Bandeira)
Eu não sabia como era o mar., mas se tinha espumas, deveria ser ruim mergulhar nele, pois no livro de Geografia dizia que São Luís - capital do Maranhão, era uma ilha cercada pelo mar, não sabia o que significava Km² mais devia ser muito grande. "Coitadas das sereias"...que rei ruim era esse? No final do texto até a filha ele jogou no mar, que horror!
Quanta imaginação...
Conforme Freire:
" A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de ler, ...me é absolutamente significativa. Neste esforço a que vou me entregar, re-crio, e re-vivo no texto que escrevo, a experiência vivida[...] em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber". ( p.12 )
Nesse momento de leitura a professora apenas ouvia a recitação do poema sem dar esclarecimentos, intervenções ou "com um conjunto de situações codificadas dependendo de decodificação para o processo de sua apreensão e de sua memorização mecânica.
Era sempre assim que as leituras aconteciam, além do clima de pressão, no qual não se podia errar lera ou som, mas seu sentido e seu saber só apareciam na leitura silenciosa que nos permite viajar, associar, combina, sons, cores, ações e sonhos.
Essa leitura despretensiosa, livre, dinâmica que transforma o leitor no personagem principal do texto que permita catarse, a transposição é que me faz depender do ato de ler.
O livro Nordeste fazia parte de uma coleção de 1ª a 4ª série. Então no livro da 2ª série também tinha um texto legal. O titulo era A dança do Pingo d?água, esse eu não consegui descobrir quem é o autor, só sei que conta a história de uma goteira que teimava em pingar dentro de uma lata e o barulho incomodava o dôo da casa que não conseguia dormir e no final do texto dizia assim;
Pingo d?água tagarela
Tocando seu Zé Pereira
Perto da minha janela.
Enquanto escrevo este texto distanciado de seu autor mas vinculado ao contexto ao relacionamento entre autor/interlocutor compreendo a importância do ato de ler tão defendida por Paulo Freire quando afirma que:
"Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção e as relações entre o texto e o contexto. [...]
Os textos e as palavras e as letras daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros [...] no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor e na forma das folhas, no cheiro das flores..." ( Freire 1991 p.13 )
Posso acrescentar sem sombra de dúvida "o cheiro molhado, após uma chuva fina", o que me faz, ás vezes confundir a minha existência e de vários jovens sonhadores que trilham nas pegadas desse ilustre brasileiro Paulo Freire.
Por inúmeras vezes meu caminho cruza as curvas da estrada descrita por esse pensador ilustre."Na verdade aquele mundo especial se dava a mim como o mundo da minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo das minhas primeiras leituras."
Ao buscar desenhar aqui uma seqüência de fatos que se apresentam como uma história em quadrinhos, onde personagens ressurgem num passe de mágica e povoam estas páginas em recortes me proponho "a reler momentos fundamentais da minha prática guardado na memória, desde as experiências mais remotas da minha infância, da minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio de mim constituindo."
Ao chegar na 4ª série muita coisa mudou. Meu pai adoeceu não se sabe explicar do que pois nunca foi ao médico "suspeito que era tuberculose" pelos sintomas. Meu irmão mais velho casou-se e foi-se embora pra longe, as minhas irmãs também já haviam se casado, só restava meu irmão mais moço que trabalhava para manter a casa, com o pai doente, a mãe dona-de-casa, criando dois sobrinhos e mais eu "adolescente" sem ajudar eu nada, apenas nos afazeres domésticos.
Nesses dias, batia o desânimo, uma profunda tristeza se instalava íntimo , por vezes doía, por vezes sentia-me inútil, pegava e procurava meus textos que serviam de bálsamo... A flor e a fonte.
"Deixa-me,fonte!"Dizia
A flor,tonta de terror.
E a fonte,sonora e fria,
Cantava,levando a flor.
"Deixa-me,deixa-me,fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".
E a fonte,rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
"Ai,balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai,claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!..."
Chorava a flor,e gemia,
Branca,branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava,levando a flor. ( Vicente de Carvalho)
Essa poesia era como se eu fosse a flor arrancada do galho sendo levada pelas correntezas das incertezas que a adolescência traz... das dúvidas, do futuro incerto... das frustrações do cotidiano.
Enfim acalantava o desejo vago de ser professora, ao que meu irmão por vezes insensato dizia:
Diploma de filha de pobre vem com nove meses.
Isso chocava muito, porém não era o suficiente para me desanimar. Estava latente o desejo, porém meu horizonte esbarrava na cerca do quintal.
No entanto no final do ano de 1968 meu pai faleceu uma segunda feira enevoada, Havia até um chuvisco, ali pelas cinco e meia ou seis horas da tarde, o que de certa maneira combinou com o que fala Nietzsche a respeito do crepúsculo do ser:
"A grandeza do homem está em ser uma ponte e não um fim.O que pode ser amado no homem é que ele é um trânsito, e um acaso.Amo aqueles que só sabem viver como os que se fundem no acaso, pois são os que atravessam". (apud ONATE... p.20)
Fiquei órfã literalmente: com a morte de meu pai, a minha mãe sucumbiu á tristeza, tornou-se uma pessoa apática, não ligava mais pra nada, nem pra ela, meu irmão só trabalhava, não parava em casa, vivíamos a própria sorte.
Sorte mesmo foi que eu já havia concluído a 4ª série e agora se ter com quem contar estava desnorteada. Pior era que naquela cidade não havia como continuar estudando pois não havia o Curso Ginasial.
Pensava sempre em como poderia ser professora e o "diploma" não deveria ser daquele que meu irmão falava.
Resolvi procurar uma saída. Conversei com a minha mãe que não tinha como ajudar-se, que eu iria procurar uma alternativa para "nossa vida".
Tudo que eu possuía que poderia transformar-se em dinheiro era um porquinho - um pouco maior que um gato e menor que um cachorro. Resolvi vender o porquinho e arrumar a mala, que não tinha fechadura, e parti para a cidade próxima onde havia escola e cursos de formação de Normalista.
Saí de casa no dia 03/11/1969 ás 14 horas em cima de um caminhão carregado de coco babaçu, rumo á cidade de Bacabal em busca do meu sonho.
Chegando lá arrumei um emprego de babá na casa de um empresário do ramo de moagem de café (Café Bacabal) ele mesmo me colocou no curso de Maduresa Ginasial que concluí com sucesso.
Porém não correspondia aos seus anseios, e entretinha em leitura de jornais velhos, revistas e por vezes até em propaganda de sabão em pó, modo de usar, etc.
Na casa havia uma estante recheada, porém eu só li as lombadas pelas portas envidraçadas, e as vezes, quando abriam-nas era pra que eu as limpasse, nunca para lê-los.
Imagino que seja uma obsessão por leituras, pois como não tinha acesso aos livros, lia até bula de remédios.
Assim por inúmeras vezes ele chegava do trabalho na hora do almoço e os serviços estavam pela metade e, eu escorada na parede, ao lado da vassoura, do balde com o pano e do rodo, absorta, lendo as páginas amarelas da Veja.
Fui dispensada, mandada embora do emprego, mas achava que o patrão era incompreensivo.
Novamente o sonho foi adiado.
III ? ENCONTROS E ATALHOS NO CURSO GINASIAL
Como havia retornado à minha cidade, continuava sem expectativa, sem trabalho e sem estudo.
Uma batalha interior se travava ? como ser uma professora!!!
Então naquele início de ano 1970 alguns arranjos políticos, conchavos e outras coisas ,fundaram uma escola de curso Ginasial, apenas uma turma seria formada e foi feita uma seleção para formação dessa turma.
A maioria dos jovens/adolescentes haviam cursado regularmente o primário e curso de Admissão, nesse caso eu era única que não muitos créditos porem no ato da inscrição para a seleção precisava de um responsável para assinar a ficha... quem?
Meu pai, falecido...
Minha, mãe, analfabeta.
Meu irmão , se envergonhava da maluquete...
Então um senhor que se quer me conhecia direito, mas tinha cinco filhos que iriam participar da seletiva, não me viu como concorrente, apiedou-se da situação e assinou a ficha como meu responsável e na saída abraçou-me os ombros magros e disse:
Estude e passe.
Agradeci e pensei ? È isso que vou fazer.
Fui pra casa, não comentei com ninguém, apenas estudava nos meus livros velhos, fazia alguns cálculos e resolvia os exercícios de matemática, e então no dia da prova fui cedo, sem café, pois não tinha açúcar em casa, fiz as provas de Português e OSPB, na hora do almoço nem fui em casa, não sabia se tinha o que comer, preferi não arriscar, fiquei ali no corredor esperando as horas passarem lentamente, até que as colegas foram chegando, abriram-se as salas, nos posicionamos e fizemos outras duas provas:Matemática e Ciências Naturais. Voltei pra casa á tardinha andando devagar, chutando as pedrinhas do caminho, ora sorria, ora brotavam algumas lágrimas, mas não tinha fome, estava feliz de mais pra pensar nisso.
Quando saiu o resultado eu era a 10ª colocada e dois daqueles filhos daquele senhor não haviam passado, naquele momento ele fez a minha matrícula no curso e depois de alguns dias, logo no início das aulas, doou-me todos os materiais que faziam parte da lista como dos seus filhos.
Recomecei a perseguição do sonho...
Como sempre havia um agravante ? a fome ? além de não te horário para as refeições também não tinha uma refeição completa, quando tinha uma coisa, faltava outra, o mais frequente era o arroz, sem mistura ou sem tempero só com sal.
Aconteceu de minha mãe comer arroz com o sal semeado por cima e dizer que tinha "gosto de ovo cozido."
Isso doía muito, eu não podia fazer nada para ser diferente, então eu ficava na rua mesmo.
Tentei trabalhar de doméstica ? já que as aulas eram á noite ? e pelo menos poderia comer no emprego, mas as pessoas não pagavam direito. Coloquei uma banca na feira para vender calçados, até que estava dando certo, mas foi só começar a dar dinheiro, que o sapateiro pôs o filho na banca para não me pagar a porcentagem. Então um senhor que tinha uma mercearia próxima á feira me ofereceu serviço, auxiliar de vendas, mas só nos finais de semana, davam o almoço e pagavam as diárias no final do expediente, restava saber o que comeria durante a semana, assim passei a ajudar em casa, com pão, leite, mistura o pouco que o dinheiro dava pra comprar.
Mesmo assim ainda sobrava muito tempo ocioso eu procurava o que fazer, mas não encontrava e entre uma andada e outra sentava-me na calçada e lia qualquer coisa (livro, jornal, gibi faltando páginas, etc).
Certo dia estava sentada na calçada da escola, lendo uma revista de fotonovela era no período de férias ? e vi algumas pessoas entrando na escola.Curiosa fui conferir de perto, indaguei na secretaria e informaram que estava acontecendo um curso de aperfeiçoamento de professores leigos municipais, não entendi bem o que queria dizer "leigo", porém quis saber como fazer para participar e a secretária disse que bastava se inscrever, levar caderno e caneta.
Rápido fiz a minha inscrição, fui até a mercearia em que trabalhava nos fins de semana comprei o caderno e a caneta- fiado ? voltei correndo para o curso de professor "leigo".
Minhas férias voaram, estudava a semana toda, nos intervalos tinha lanche, não precisava ir pra casa procurar comida, também ninguém demonstrava interesse ou preocupação, pra saber onde eu estava, fazendo o quê, aos sábados e domingos trabalhava na mercearia almoçava lá e trazia o que ganhava pra minha mãe.
Quando o curso terminou, fiz meu primeiro plano de aula, ganhei certificado, e quando cheguei em casa confidenciei à minha mãe:
-Vou ser professora!!!
Ela sorria por trás da sua tristeza, baixou a vista para aquele papel que lhe mostrei e duas grossas lágrimas caíram dos seus olhos amortiçados, não sei dizer se ela estava alegre ou emocionada, apenas abracei-a.
Naquele mesmo ano, ao iniciar o segundo semestre, uma professora saiu de licença maternidade e eu fui convidada para substituí-la, nesse período de licença.
Entrei na sala de aula de 3ª série com 28 alunos, minha primeira experiência como professora leiga municipal, em 27 de Agosto de 1970.
Tudo o que tinha era o giz, o quadro negro, o livro didático e acima de tudo boa vontade.
Trabalhei com prazer, afinco e dedicação, conquistei a afeição dos alunos e o respeito dos colegas da escola.
Como sempre gostei de ler levava para sala de aula os textos que eu gostava e lia para os alunos ouvirem.
"Verdadeiras lições de leitura no sentido mais tradicional desta expressão, vivi intensamente a importância do ato de ler, como exercício da cidadania."
Nessa tentativa, pratiquei a educação opressora, a educação bancária, pois desprovida de conhecimento teórico repetia na prática o que haviam feito comigo.
No ano seguinte, a Institucionalização do Mobral segundo Bárbara Freitag:
"... só começo realmente funcionar quando se encontrou uma forma real de financiamento. Esta consistia em desviar 6,75% da receita liquida da loteria esportiva e deduções de 1% do imposto de renda devido pelas pessoas jurídicas para o programa de alfabetização. Com isso o Mobral dispunha em 1971 de 67 milhões de cruzeiros." (1986p. 91)
Para que o MOBRAL funciona-se, a estrutura administrativa descentralizada se objetiva em quatro níveis:MOBRAL central, coordenações regionais, coordenações estaduais e comissões municipais.
Estas comissões municipais recrutavam jovens aleatoriamente e os organizava em exercito para serem treinados pedagogicamente em postos ou pólos de apoio.
Durante o treinamento era distribuído o material didático/Pedagógico ? Manual do Professor e Livro do Aluno.
Assim conforme Freitag: Uma das maneiras do professor apresenta a fórmula: "Alfabetização + Educação Continuada = melhor nível de vida, melhores salários, maior produtividade = promoção de desenvolvimento do país.
Realmente eu acreditava nisso, mesmo por não conhece teorias como Althusser ou Gramisc muito menos Marx somente os textos recortados dos livros de Moral e Cívica e OSPB.
Os livros dos alunos e o treinamento dos "professores" consistiam em apresentar palavras geradoras e suas famílias silábicas, as quais formariam palavras novas e com elas pequenos textos.
Porém a luz do que afirma Freitag: E no entanto o Mobral não hesita em utilizar extraindo-as do seu contexto filosófico e político, as técnicas de alfabetização de Paulo Freire. È preciso insistir na diferença entre a concepção alfabetizadora do Mobral e a exposta na Pedagogia do Oprimido. (1975 p. 93 ).
Conforme o exposto anteriormente tornei-me professora alfabetizadora do MOBRAL. Por pelo menos três anos.
Permaneci como "professora leiga" por muito tempo seguindo o velho chavão popular " em terra de cego, quem tem olhos é rei"; eu sabia ler, portanto poderia ensinar a outros a ler, sem visão crítica, sem contextualização, sem interpretação mas na minha visão melhor seria ler ao pé da letra do que realmente não saber de maneira alguma. "Saber ler uma carta e escrever outra"...pensava eu na época.
É claro que não é uma formação para a cidadania apenas para não ser "cego". Embora que tenha-se apenas uma visão parcial, reduzida, do que nenhuma.
Não continuei estudando porque não tinha um colégio secundário, não podia trabalhar e estudar porque o MOBRAL funcionava no noturno e a escola também, e pior precisava de dinheiro.
Durante aproximadamente dez anos fui professora leiga da rede municipal do curso primário, ou seja, de 1ª a 4ª série.
Aprendi muito, errei muito, acertei muito e imagino que contribuí para tirar várias pessoas do analfabetismos e alguns deles deram continuidade e desempenham várias atividades.
IV ? A PONTE ? PROJETO LOGOS II
Percorri um longo caminho como professora leiga até que em determinado momento fui deixando de ser imprescindível, importante e cheguei a ser descartada.
Nesse momento, quando não havia como permanecer em sala de aula, pois o progresso chegava a galope em todos os espaços, no mais distante desse país, chegou também na pequena cidade garimpeira de Peixoto de Azevedo. Ali, até então, eu havia sido imprescindível porém em dado momento e circunstância foi necessário apresentar documentos de escolaridade, os quais não constavam do meu pouco acervo; que continha apenas o certidão de casamento e o cadastro de pessoa física (CPF) e nada mais.
Então fui informada que na cidade vizinha havia uma seleção para um curso de formação de professora que atuavam na rede pública, fiz a inscrição e participei da seleção cujos pré requisitos eram, saber ler e escrever, estar na rede pública por mais de dois anos e obter nota mínima de 80 pontos no teste seletivo.
Fiz o teste no dia 20 de Agosto de 1985 e fui aprovada.
Surgiu então o primeiro impasse:
? Residia em Peixoto de Azevedo;
? O curso em Guarantã do Norte;
? Grávida de nove meses (o bebê nasceu em 06/09);
? Ganhando o salário miserável e recebendo atrasado;
? Tinha o marido alcoólatra;
? E seis filhos menores;
Nada disso consegui me segurar são apenas 45 Km de Peixoto a Guarantã porém com a estrada de chão e esburacada mais o rio para atravessar na balsa, demorava muito na viagem e mais uma vez a fome estava presente na minha vida. Se tinha algum dinheiro, precisava comprar comida para os filhos menores que ficavam em casa com o pai alcoólatra, o bebê eu levava, uma almofada para colocar ao meu lado no chão e na hora do almoço eu comia bolacha de água e sal com água do filtro, esse era o meu alimento para amamentar o bebê recém nascido.
Nestas condições iniciei o curso que se denominava "Projeto Logos II" composto por módulos de todas as disciplinas e metodologias de ensino elaborado pela Equipe Técnica do CETEB: Brasília ? D.F. Convenio SEPS/MEC/CETEB esse programa como a maioria dos programas de governo para Educação de Jovens e Adultos e Formação Continuada em Serviço me possibilitaram ingressar na escola, num curso de Magistério com habilitação para as séries iniciais... esse era o ingresso do meu sonho, curso gratuito, com todo material didático grátis era a minha chance.
Não podia desperdiçar e não havia nada mais importante naquele momento, ninguém poderia lutar por mim, era uma guerra só minha;
E como afirma Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido;
"Cheguei nesse curso ingênuo e ao descobrir-me
ingênuo comecei a torna-me crítico."
( 1975 p. 23 )
Durante esse percurso muitos desistiram, porém dois colegas, também maranhenses, me faziam companhia, socializamos as bolachas,as bolsas e almofadas de minha filha e por vezes as mágoas. No decorrer do curso um deles desistiu e o outro continuou até o fim junto comigo, nesses duros obstáculos nos encaixamos na fala de Paulo Freire: "aos esfarrapados do mundo... que neles se desdobrem e assim descobrindo-se com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.".
Trabalhando arduamente e estudando todas as noites depois que os filhos dormiam, descobri que se os meus pés estivessem frios não conseguia conciliar o sono, tirei proveito disso e para permanecer acordada por mais tempo para estudar os módulos, eu mergulhava os pés numa bacia de água fria para não dormi. Estudava noite a dentro com luz de velas pois na minha casa não tinha luz elétrica e aos sábados ia fazer as provas as quais não podia tirar nota abaixo de 80, senão teria que repetir o estudo do módulo, e só depois de eliminar um dos módulos poderia prosseguir. Às vezes cheguei a fazer até dez provas por final de semana e em várias delas tirar até 10.
Ao longo de minha caminha encontrei em Paulo Freire e seus ensinamentos a força do educador que ele pode mostrar com seus exemplos: "só existe saber na invenção, na busca inquietante, impaciente, que os homens fazem, no mundo, e com os outros." (1975 p.58).
Pude continuar estudando e trabalhando na escola, onde todos os dias reinventava a minha pratica e com isso fui incomodando alguns colegas e auxiliando outros.
Porém, não há nada tão ruim que não possa piorar.
No ano letivo de 1987 nas inscrições para atribuição de aula compareci satisfeita por estar chegando aos poucos onde eu queria.
Nesse dia aconteceu algo inesquecível e impressionante que jamais esquecerei:
Como eu não tinha documentos o que já citei anteriormente a diretora da Escola chamava a cada um dos inscritos com suas pastas de documentos na mão e lhes atribuía a seu bel prazer as aulas que ela achava conveniente. Ao chegar ao meu nome segurou entre os dedos as duas ou três folhas de papel que para mim significava "documentos" olhou-as, fez um muxoxo e em seguida amassou-as literalmente, atirou-as no lixeiro ao lado e disse em tom de deboche: "estamos num mundo de papéis e você não os têm e como tal, desqualificada, não poderá assumir uma sala de aula, você pode até servido até aqui, mas de agora em diante passa ser como o lixo dessa escola"...
Baixei os olhos envergonhada, magoada, revoltada e retirei-me dali sobre os olhares perplexos dos meus companheiros.
Todas as dores da exclusão, da discriminação do preconceito e da repressão afloraram e no trajeto até minha casa chorei muito, vi desabar novamente meu sonho, que por tantas vezes tentei alcançar, e aqui com Paulo Freire para reforçar o que sentia; "A radicalização ... é sempre criadora e pela criticidade que a alimenta...é critica e libertadora"( 1975 p.25).
Insisti na luta, não podia desistir, seria pior parar agora, então o que fazer?
Para continuar no curso tinha que estar na sala de aula e se acaso não estivesse com uma sala de aula poderia ser excluída também do curso. Para evitar esse desastre cheguei em casa com um plano ? abri na sala da minha casa uma sala de aula saí no bairro com um caderno na mão recrutando crianças para alfabetizar, dar reforço, ajudar nas atividades escolares ? com isso poderia continuar fazendo o meu curso tão desejado e necessário.
Levei a lista de alunos para minha orientadora expliquei o que estava acontecendo e ela humanamente entendeu e atribuiu a mim uma nota relativa a estágio supervisionado ,esteve na minha turma improvisada , avaliou positivamente e como o mestre Paulo Freire se refere a Escola:
[...] "Neste lugar de encontros não há ignorantes absolutos , nem sábios absolutos: Há homens que em caminhão buscam saber mais."
Ora se a minha turma improvisada tinha o caráter voluntário, não se cobrava nada para atender as crianças, apenas uma contribuição também voluntária por parte dos pais. Você deve está curioso para saber como eu alimentava minha família.
Pois bem, durante dois longos anos meu trabalho que gerava renda para manter minha casa era totalmente informal. Como já citei morávamos numa cidade centrada na atividade garimpeira e com o fluxo de peões eu aproveitei para ganhar uns trocados; Como? Vendia café com leite, bolo , cuscuz e tapioca na calçada de um supermercado. Levantava ás cinco da manhã , preparava tudo e ia com meu filho mais velho para a beira da avenida vender o café da manhã para os garimpeiros que passavam para o serviço no "baixão"(área de trabalho no garimpo).
Ficava ali até aproximadamente 09:30 da manhã, depois recolhia os materiais de trabalho e retornava para casa levando o dinheiro para comprar os ingredientes para o dia seguinte e a alimentação dos meus filhos.
À tarde atendia as crianças em minha sala de aula improvisada e enquanto ás leituras e atividades para as crianças entre eles meus filhos, que também estudavam , deixava uma panela no fogão cozinhando em fogo brando, o milho de canjica que no Maranhão se chama "chá de burro" o qual eu levava para vender, á noite, na porta do cinema(Cine Ouro Verde)
Enquanto eu ficava na porta do cinema vendendo a canjica, o dono do estabelecimento deixava meus filhos assistirem à sessão. Pelas 21:30 até às 22:00 quando o filme terminava e o movimento na rua aumentava devido ás boates e bares que existiam em grande quantidade eu estava retornando para casa , com panelas e copos numa carrinhola , o dinheiro das despesas do dia seguinte , muito cansaço, sono e precisando estudar um módulo para fazer a prova , dormir pouco, acordar cedo para começar tudo na próxima manhã.
Foram dois longos e abençoados anos. Em meados de 1988 precisamente em maio abriu-se a inscrição para o concurso público para o provimento de vagas de professor e eu estava quase concluindo o curso Logos II - Magistério. Continuava sem documentos os quais eram necessários para o ato de inscrição. Então precisei ir a Cuiabá tirar a carteira de Identificação. Não tinha dinheiro para a viagem e um amigo médico me doou a passagem de ida.
Um vizinho, pai de um aluno que eu atendia e que era freteiro- tinha uma camionete que levava garimpeiros para o baixão- ficou sabendo da minha necessidade e agilizou com os outros freteiros uma doação para minhas despesas na viagem que na época durava três dias.
Retornei de Cuiabá com a carteira de identidade fiz a inscrição, a professora fez uma declaração de que eu estava regularmente no curso de magistério.
Fiz o concurso e fui aprovada em décimo lugar por ordem de classificação.
Em 28 de outubro de 1988 houve a festa de formatura do curso Logos II ao qual compareci com meus filhos, quatro convidados e usando um vestido emprestado pois não tinha como comprar um vestido branco, novo.
Concluindo, em fevereiro de 1989 fui empossada na Escola de onde fui mandada embora, assumindo o concurso público com publicação no Diário Oficial.
Exibindo pela primeira vez o meu certificado de conclusão e as cópias dos documentos pessoais para a mesma Diretora que me havia expulsado dali.
Essa ponte construída com esforço e perseverança me levou para minha sala de aula, donde nunca deveria ter saído.
A partir daí todos os meus certificados de conclusão, que datam desse ano constam desse momento importante.
Quando me recordo da ilustre Diretora que acertadamente me empurrou para a busca, posso citar novamente o grande psicólogo e pedagogo Paulo Freire: "Raros são os que ao serem promovidos, não se tornam mais duros e opressores de seus antigos companheiros do que o patrão mesmo... para assegurar seu posto tem de encarar com mais dureza ainda...".
Essa dureza me impeliu à luta e a busca e serviu-me incentivo para que eu não desistisse de perseguir meu sonho tantas
V - O CALVÁRIO DAS LETRAS
Para encontrar nova chance de estudar foram-se mais cinco anos de espera.
Enquanto isso participei de vários movimentos sindicais, encontros de professores, mas sem muita teoria apenas alguns de bates mais a nível do senso comum, da consciência ingênua que habita o subconsciente de alguns profissionais estudaram a penas o Magistério e já acham o bastante.
Nesse espaço de tempo trabalhei de tudo, se tinha um período em sala de aula, no outro eu lavava roupa para ganhar dinheiro, pois mesmo concursada o salário demorava até seis meses para sair e quando saía não tinha data certa e a gente já devia quase tudo.
Quando conseguia trabalhar á noite na Escola, era ótimo porque o dia se tornava mais adequado para outras atividades.
No ano de 1993, já havia separado do marido, estava trabalhando de arrumadeira em hotel e á noite na Escola ouvi o comentário sobre um VESTIBULAR que estava com as inscrições abetas para professores.Três cursos eram ofereci
dos Biologia, Matemática e Letras, através de um convênio com as prefeituras dos municípios do Nortão e recebeu o nome de Projeto Parcelados.
Através da Universidade do Estado de Mato Grosso(UNEMAT)? as Licenciaturas Plenas Parceladas tinham sede no Campus Universitário do Vale do Teles Pires em Colíder ? MT, e só os municípios conveniados poderiam participar.
Nos reunimos pelo menos vinte professores e fomos à prefeitura de Peixoto de Azevedo saber da decisão do Prefeito, que ao chegar no seu gabinete pediu a secretária que nos dispensasse pois não havia marcado reunião com essa gente.
Fomos embora tristes cabisbaixos e mais adiante eu e duas colegas nos entreolhamos e decidimos que iríamos por conta própria até Colíder fazer as inscrições e tentar o Vestibular da Unemat.
Chegamos em Colíder, preenchemos as fichas de inscrição e ninguém questionou de qual município nós éramos, se cujo município era ou não conveniado...enfim estávamos inscritos.
No dia de prestar as provas do Vestibular estávamos lá as três, novamente ninguém falou nada, fizemos as provas.
Naquela hora mais uma vez me considerava vitoriosa, era meu aniversário, não poderia haver presente melhor.
Estava dando tudo certo, bom demais pra ser verdade.
Uma das coisas mais importantes do Projeto das aulas Parceladas era que as aulas presenciais aconteciam no período de férias depois ficavam os trabalhos, os estágios...
Porém para mim não podia ser assim, tão fácil, normal, tinha que complicar, é, para mim tem que ser complicado...
Quando foi publicada a lista de aprovados lá estávamos nós, as três ? aprovadas na primeira chamada ? era a hora de fazer matrículas para o início do curso.
Hora de complicar tudo!
Alguns candidatos inscritos dos municípios conveniados tinham ficado para a segunda chamada e se nós desistíssemos a vaga era deles e, é claro, só nós éramos de um município não conveniado ? Peixoto de Azevedo MT.
No ato da matrícula nos pediram um atestado de residência.que deveria ser emitido pela Polícia Civil do Município de Colíder declarando o endereço ? comprovante de domicílio.
Uma das colegas desistiu no ato, não poderia vir para Colíder e abriu mão de sua vaga que era no Curso de Biologia.
A outra entristeceu, pediu um prazo que era de apenas três dias.
A colega que desistiu tinha uma casa em Colíder, ainda em processo de construção, faltava todo o acabamento, instalação hidráulica e energia. Também dependia do marido, que era advogado e que tinha escritório em Peixoto, não viria pra Colíder só para ela estudar.
E eu? Não tinha na-da... absolutamente na-da.
Aliás, tinha seis filhos, a mais velha já havia se casado e me deu mais um filho por tabela (o genro) não tinha dinheiro para nada. Pelas duas vezes que vim a Colíder, tanto para fazer a inscrição, como para fazer a prova foram as colegas que me trouxeram,... afinal o que me restava?
Vontade! Coragem! Sonho!
Então decidi: Venho morar em Colíder, não se passa no vestibular todo dia, essa é a minha chance, é agora ou nunca!
Aquela colega que desistiu doou-me sua casa inacabada sem água e sem energia, não me cobraria nada, eu poderia morar pelo tempo que quisesse.
Regressei a Peixoto fui até a casa de um senhor que algumas vezes já havia me ajudado, contei-lhe o que estava ocorrendo e novamente ele mandou seu motorista com caminhão e dois ajudantes levar minha mudança para Colíder.
Saímos á noite, chegamos lá pela madrugada e ao amanhecer fui até à delegacia pedir o comprovante de domicílio...moro em Colíder na Rua Castro Alves Nº 436.
Fiz a matrícula e dei início a mais uma etapa da VIA SACRA...
Estávamos atravessando uma crise política, a moeda passava por sucessivas reformas, no momento transitório a URV (Unidade Real de Valor) estava em vigor na tentativa de conter a inflação e, em Mato Grosso a questão política também estava passando por um período de adequação, sucessão governamental com quatro meses de salário atrasado, mais o décimo terceiro, podemos dizer, um momento adequado para se mudar de cidade e iniciar um curso superior.
Equilíbrio total!!!
A minha colega que estava indecisa, veio em tempo de fazer sua matrícula para iniciar o curso e também para ficar comigo, naquele endereço que eu já havia "adquirido".
Assim ficamos cinco crianças e quatro adultos em péssimas condições de moradia, alimentação...
Comecei a trabalhar, pela manhã consegui aulas numa escola particular na 4ª série, à tarde trabalhava na Escola Pública com uma turma de Pré e à noite consegui dez aulas de História e Geografia na Escola EJA.
Dessa forma eu saía de casa às 05:30 da manhã atravessava a cidade, lecionava naquela escola, ás 11:30 só passava de uma esquina para outra entrava na Escola Pública, preparava a aula as atividades e lecionava até as 17:00. Saía dali e atravessava novamente a cidade até cinco quadras da minha residência (nos dias que tinha aula no EJA) cumpria meu horário e só então ia embora, Os filhos estavam sós, uns cuidavam dos outros.
Mesmo com essa jornada o dinheiro era tão pouco e a família tão grande que cheguei a comer refogado de mamão verde, jiló e até omelete de um ovo para todos. Novamente a fome estava presente.
Mas realmente isso tinha um significado diante de tudo que eu almejava.
Durante as aulas na faculdade me deparei com a teoria Marxista que de certa forma me fez reconhecer o papel de explorada, servil por uma sociedade dita democrática a qual leva o cidadão comum a uma espécie de jogo de valores; visto que: "Não sendo a sua inferioridade legal outra coisa senão o reflexo da servidão econômica particular de que é vítima, a sua igualdade civil e política não poderá conseguir eficazmente se não alcança emancipação econômica e se acha subordinada a desaparição de todas as servidões." ( Marx1995 p.34)
Quem somos nós, trabalhadores assalariados, expropriados, e como tal vítima da sociedade capitalista pela exploração no trabalho duro com carga horária exorbitante.
Pude ler e discutir com os colegas sobre a mão-de-obra mais-valia, valor e sobre-valor que Marx aborda veemente no seu livro O Capital.
Com as leituras sucessivas das teorias marxistas através das aulas e dos debates como as leituras das apostilas e sempre um professor articulando os debates, foram se desorganizando em mim um sucessão de coisas que até então acreditava como certas, reais, e verdadeiras.
Comecei a adquirir livros de autores que apareciam nas bibliografias, nas citações e com isso e com isso fui montando uma biblioteca particular, com os livros que no momento me interessavam.
Isso não ajudou muito, no momento, pois não tinha maturidade suficiente para entender alguns conceitos. Nesse desarranjo mental li tudo que pude adquirir desde O Manifesto do Partido Comunista, ao Capital de Karl Marx. Li Os Aparelhos Ideológicos do Estado de Louis Altusser, quando li Sociologia Crítica de Pedrinho Guareschi fiquei intrigada com tudo que ele escreveu os conceitos por ele citados são relativos aos defendidos por Marx, porém no livro Não há uma folha com bibliografia consultada; Como pode se lançar mão de tantos termos ou conceitos e teorias sem dar o devido crédito ao seu autor?...
Realmente não entendi, mas essa é apenas uma das minhas dúvidas. No entanto conheci um professor que presenteou-me com o livro Cultura e Democracia de Marilena Chauí o que me esclareceu algumas dúvidas e suscitaram outras.
Na tentativa de direcionar todas as leituras tivemos um trabalho de ensaio científico, através dele poderíamos coordenar o nosso aprendizado.
Então reuni as dúvidas e parti para a escolha do "objeto" de pesquisa e a montagem do projeto propriamente dito.
Como eu morava em Peixoto de Azevedo uma cidade centrada na atividade garimpeira(ouro) e com uma situação econômica vergonhosa, busquei direcionar meu trabalho de pesquisa aos Garimpeiros que, ganhando tanto ouro, tanto dinheiro, viviam em situação de miséria, as famílias abandonadas, as condições de vida precárias, etc.
Parti para a luta tentando explicar esse movimento econômico social com trabalho de pesquisa que recebeu o título de "O poder Econômico como Mecanismo Ideológico da Política sobre o Garimpo em Peixoto de Azevedo ? MT".
Ficou extenso o título e o trabalho também, no entanto pude perceber como os aparelhos ideológicos dos sindicatos, das cooperativas, da política, da comunicação e enfim da cultura, desarticula qualquer forma de humanização desses cidadãos.
Nesse caso Marx tem razão em afirmar que:
"onde o trabalho proporciona escassamente o que é indispensável á vida de todos; aí onde, por conseqüência, aquele absorve quase todo tempo de cada um, a divisão da sociedade em classes mais ou menos subdivididas é fatal. Uma maioria consegue, pela violência e pela fraude eximir-se do trabalho diretamente produtivo, para dedicar-se á direção dos negócios, isto é á exploração da maioria consagrada ao trabalho. Graças ao costume e á tradição esta maioria chega a suportar sem existência uma organização que considera natural." ( 1988. p. 18.)
Com o andamento das pesquisas consegui veicular partes das leituras feitas associando os conceitos como "exploração" "mão-de-obra", "mais-valia", "produção", " meios de produção", etc. Enfim apresentei meu trabalho ainda um tanto insegura, mas acreditando que alguns dos conhecimentos empíricos que antes eram apenas hipóteses estavam cientificamente coordenados na pequena parte recortada da sociedade que eu havia pesquisado, a qual ilustrei a luz das teorias sociais Marxistas e dos filósofos de Marilena Chauí. "Não obstante esses movimentos sociais jamais se efetuam pacificamente, os novos elementos tendem a surgir violentamente contra o estado das coisas ...para poder continuar sua evolução." ( 1988.p.19 )...
Nesse momento em que as teorias começam a tomar consistência em minha prática reflexiva passamos do período básico do curso para o período específico onde as turmas foram subdivididas para o estudo das disciplinas formativas de cada Área do Conhecimento.
A partir de então entrei em contato com os estudos de Lingüística, Língua Estrangeira; Espanhol, Latim. Teoria literária narrativa, poesia etc.
Conheci uma professora Drª. em Literatura Popular, que ao chegar na nossa turma já me conhecia de nome e fama.
Sabes por quê?
Lembra que quando falei da minha alfabetização relatei que aprendi textos orais decorados, por causa das rimas, dos versos curtos de musicalidade?
Pois bem, em todas as disciplinas ou encontros sempre escrevia e escrevo algumas estrofes de Cordel ou faço umas paródias para animar o grupo, só não sabia que isso poderia render tanta coisa.
Imagina!
A Drª. era formada em Literatura Popular De Cordel, mas ela pesquisou à respeito e escreveu sobe cordel. No entanto eu escrevo o cordel com toda a sua métrica, rima, ritmo, etc.
Porém, as expressões "cultura popular" e "cultura do povo" provocam certa desconfiança e mal-estar. "No entanto, convém admitir que tais reações nascem do contexto político em que elas são abundantemente empregadas." (Chauí p.61 1989).
Essa era a realidade, sempre imaginei que literatura popular não tinha valor cientifico, pois se lê muito sobre o povo significa algo pobre, sem importância.
Foi essa importância que busquei em Grauisch quando cito alguns autores que considerou populares como Shakespeare, Tolstoi, Dostoievisk, Vitor Hugo...e por fim indaga e responde: "a ausência desse tipo de produção cultural decorre da distância infinita entre a intelectualidade e o povo. (Chauí p. 88 1989)
Comecei então a pesquisar autores, a ler bibliografias Literatura (Marisa Lajolo) Folclore Brasileiro (Luis da Câmara Cascudo) e ainda a própria Drª que escreveu a respeito do assunto. Comprei a coletânea de Patativa do Assaré e de seus correligionários como Leandro de Barros, Juvenal Galeno, Minelvino Francisco da Silva , João Martins de Ataíde, José Canelo de Rezende, Manoel de Almeida Filho.
Todos cordelistas renomados e que desde criança lia suas obras nos sertões.
Tendo escolhido esse tema realizei a pesquisa sobre Literatura Popular em Cordel e consegui bons resultados. Meu orientador, um professor Mestre da UFMT, que defendeu sua tese sobre O Minhocão, assinou meu trabalho me preparando para a colação de grau que aconteceu no dia 16 de outubro de 1999.
Apresentei à banca a minha teoria de defender o que documentei e tive a felicidade de defender o que para mim é sagrado tanto como cultura, tradição.
Continuo escrevendo cordel nos encontros de professores, nas reuniões pedagógicas, nas festas de aniversário, nos cursos de formação, enfim cordel é a expressão de cultura popular brasileira em linguagem simples, acessível e humorística.
Atualmente divulgo a Literatura Popular de Cordel através de Projetos de Aprendizagem nas Escolas onde trabalho. Concluo com exposições das produções dos alunos em feira do conhecimento literário e já ganhei um premio na FETESC. (Festival de Teatro Escolar) com a apresentação de uma peça sobre o meu cordel preferido, aquele que aprendi quando criança "O Reino do Mar sem fim" de cordelista nordestino
A verdadeira expressão do saber popular.
Assim posso afirmar que cordel é minha vida, cultura, tradição, saber e manifestação popular, por isso deve estar dentro dos principais momentos de minha história.
O cordel em minha vida
Esteve sempre presente
Sei que também estará
Na vida de muita gente
Comigo ele sempre foi
Um professor excelente.
(Moreira de Acopiara 2008).
Durante algum tempo tentei de várias formas veicular meus conhecimentos para a sala de aula onde trabalhava. Havia uma pressa em ter resultados visíveis na prática. Enquanto isso a cabeça fervilhava de idéias.
No final do ano de 1999 quando estava de férias fiz um trabalho para a Secretaria Municipal de Educação da cidade de Peixoto de Azevedo, não havia pessoal disponível para fazer uma triagem numa escola indígena que ficava situada a aproximadamente1: 15 minutos de vôo mata à dentro.
Era o momento de realização pessoal.
Fui prestar serviço e conhecer uma aldeia, ver índio no seu habitat natural. Fiquei uma semana produzindo o material solicitado pela Secretaria de Educação e enquanto isso fazia o meu trabalho paralelo. Entrevistei alguns chefes, sobre a educação de seus filhos indaguei sobre o que eles gostariam que seus filhos realmente aprendessem. A noite não há luz elétrica, porém todas as noites impreterivelmente há festas, onde todos dançam, cantam, brincam. Não tem como explicar tanta emoção, nenhum livro conseguia relatar ainda como a comunidade indígena, vive, trabalha, se diverte.
Amanhecer na aldeia é uma sensação indescritível o brilho do sol, o canto dos pássaros, o vento nas folhas verdes das árvores, em vários tons e ainda os cantos entoados em vozes alternadas na língua nativa.
Com esse envolvimento entre emoção, vontade de viver essa aventura e de trabalhar na Educação Indígena, me inscrevi para trabalhar na escola da Aldeia no ano 2000.
Durante esse ano alfabetizei oitenta crianças, trabalhei com leitura e produção de textos com cinqüenta jovens. Consegui escrever uma cartilha Bilíngüe com os alunos e trouxe material suficiente para escrever um livro e produzir um cordel sobre essa experiência.
No ano de 2001, comecei a trabalhar, além da escola pública regular, com monitora na faculdade de Letras, fiz um curso de teoria da narrativa, participei de seminários e iniciei as aulas numa universidade particular, nas turmas de contabilidade, Letras e Administração.
Naquele ano iniciei um trabalho com os alunos do Ensino Médio com as disciplinas de Sociologia e Filosofia onde tive a oportunidade de organizar dois seminários. O primeiro com todas as turmas do matutino sobre filosofia básica(saber empírico,o saber científico e o saber filosófico baseado no livro de Henrique Nielsen Neto) e o segundo com as turmas do terceiro ano, que tratava sobre as "Doze Faces do Preconceito" de Jaime Pinsk e com as turmas do primeiro e segundo ano conclui o ano com um trabalho sobre o Dia da Consciência Negra.
Foi um sucesso e tornou-se um marco histórico na Escola.
VI ? APÓS A PÓS... PÓS
No ano seguinte parti para a primeira tentativa de pós-graduação.
Nesse momento a vida não estava nada organizada muitos acontecimentos na família me tiravam o sossego, mas era preciso estudar, o trabalho requer capacitação, atualização, reflexão.
Como estava trabalhando na Universidade Integradas de Alta Floresta(UNIFLOR)), surgiu a oportunidade de fazer a Pós Graduação em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Várzea-grandense de Educação(IVE), e como estava ainda com os resquícios da aldeia e com um material rico sobre as Narrativas Indígenas, nas quais estão presente elementos estruturais, conceituais e mitológicos.
Escrevi a monografia ilustrada com quatro narrativas indígenas contadas pelos caciques e traduzidas pelos alunos da minha turma. Na epígrafe coloquei uma frase que foi proferida pelo Chefe indígena Megaron Txucarramãe. Para mim era algo muito importante registrar essa experiência e divulgar histórias fantásticas.
Nesse trabalho recorri aos formalistas russos como Roland Bartes, ao Salvatore Di?Onófrio sobre os elementos narrativos, a Aryon Rodrigues e Aracý Lopes com as teorias sobre o Índio na sala de aula.
No entanto não obtive resultado satisfatório pois a situação financeira estava completamente desequilibrada o que não me permitiu pagar as mensalidades.
Isso quer dizer que, estudei dezesseis meses e levei mais seis produzindo uma monografia e no final não consegui concluir, por falta de pagamento.
A segunda tentativa de Pós tudo estava organizada. Havia mudado de cidade, já estava organizada com a minha "casa própria" havia comprado uma moto estava pagando, meu companheiro sempre me dando apoio.
Porém na metade do curso que com tanto afinco estava estudando aconteceu outra situação delicada: um acidente de trânsito deixou meu companheiro por nove meses incapacitado.
Novamente fiquei sem pagar o curso, pois no momento tinha outras prioridades.
Esse curso de pós-graduação em Língua Estrangeira ? me fez refletir sobre o ensino-aprendizagem de maneira geral.
Cada cursista conduzia seus trabalhos, projetos de pesquisa para as séries iniciais, ou seja, para as crianças.
Então imaginei que quando a criança não aprende, o professor deve desistir dela, ou ela vai tornando-se adulta e continua sem aprender.
Deve haver algo dirigido a jovens que desistiram da escola e retornaram ela para estudar exatamente como quando eram crianças.
Se não conseguiu aprender com os métodos pedagógicos enquanto criança, aprenderá agora com o mesmo método e com a mesma dinâmica depois de adulto?
Pesquisei sobre como um jovem-adulto aprende que métodos e técnicas devem ser empregados na aprendizagem deles.
Deparei então com a Andragogia e escrevi sobre ela.
Preparei uma monografia que delineava a Construção do conhecimento sob a abordagem Andragógica, comparei os Modelos da Pedagogia e de Andragogia, fiz uma análise conceitual sobre o termo e uma abordagem teórica metodológica sobre a Andragogia na prática educativa.
Isso rendeu um belo trabalho, mas com falta de pagamento das parcelas atrasadas não poderia concluir e muito menos receber um certificado.
Posso afirmar que as minhas tentativas de estudar ou fazer um curso particular, está comprovado que não consigo concluir nenhum.
Agora tenho me esforçado para cumprir mais uma etapa, que por sinal tem sido prazerosa.
VII - PROEJA-ESPECIALIZAÇÃO
Para iniciar a Especialização em PROEJA , não poderia faltar uma seletiva, critério para organização da turma , composta por profissionais da Educação em todas as Áreas.
No dia marcado para avaliação seletiva apenas onze inscritos compareceram , o que deixou claro o desinteresse pelo curso,porém outra prova seletiva e mais alguns "casos" foi possível foi possível montar uma turma com quase sessenta cursistas dos quais poucos concluíram o curso.
Eu participei da primeira prova ,estava entre os onze o que conforme Souza "Há uma aspiração de escolarização adiantada para ascender profissionalmente" por isso sabemos que a qualificação possa então a apresentar-se como em dis instrumento de luta contra o desemprego e a marginalização.
Como sempre desejei estudar, crescer ,profissional e intelectualmente essa oportunidade de ingressar no curso foi mais uma vez bem-vinda.
Levado em conta que sempre estudei em projetos ou programas governamentais foi agora exatamente através do Decreto 5.840 de 13 de Julho de 2000, que "O Presidente da República no uso de suas atribuições que lhe confere o Artigo 8,inciso IV da constituição ,tendo em vista o disposto no artigo nos artigos 35,37 e 39 de 20 de dezembro de 1996".
Decreta:Art. 1:
"Fica instituído no Âmbito dos Centros Federais de Educação Tecnológica, Escolas Técnicas Federais,Escolas Agrotécnicas Federais, vinculadas as Universidades Federais,o Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade da Educação de Jovens e Adultos ?PROEJA, conforme as diretrizes estabelecidas neste Decreto."
Como não poderia ser diferente, para o cumprimento desse decreto seria necessário habilitar primeiro os profissionais que atuarão nesse trabalho de educação profissional integrada ao ensino médio.Esse curso de grande valia no âmbito,profissional,social ,cultural e viabilizou a socialização dos vários trabalhos por mim realizados.
Para Paulo Freire, através da educação seria possível ampliar a participação.Na sua concepção "a construção de uma nova sociedade não pode ser conduzida pelas elites dominantes ,incapazes de oferecer as bases de uma política de reformas."(Freire 1983 p. 34)
Assim o grupo foi estruturado com profissionais que se sentiam comprometidos com as classes populares e buscavam uma real transformação, construída no respeito mútuo,na solidariedade humana , na reflexão coletiva ,no compromisso de cada um com a aprendizagem do grupo.
Nesse curso pude experimentar a Aprendizagem de Adultos através da Andragogia , trabalhando com a modalidade de EJA no Projeto Beija-Flor da Escola Nossa Senhora de Lourdes onde atuo como professora.
Muitas das teorias estudadas fui aplicando em respeito aos alunos adultos,seus entraves, seus avanços,nas minhas turmas não houve desistentes,pois a motivação em participar de aulas criativas onde a troca de experiências fazia a diferença.
Tive ainda a experiência com jovens no PROJOVEM em 2009, onde trabalhei Língua Portuguesa por quatro meses.
Em virtude das desistências, algumas salas foram fechadas, outras foram unificadas, por essa razão não permaneci no programa até o fim.
Essa contribuição recíproca trouxe-me inúmeras vantagens.
Para Freire(1983) ao ligar-se a uma das tendências da moderna concepção progressista ,admite que é necessário tornar a educação acessível às camadas populares.Porém,a educação cumprirá caráter político e social na medida em que possa criar o espaço de discussão e problematização da realidade com vistas à educação consciente,voltada para o exercício da cidadania por sujeitos comprometidos com a transformação da realidade envolvendo jovens e adultos.
Quando os profissionais da Educação , durante as aulas no curso de Especialização ,por algumas vezes citavam que na sua experiência de sala de aula, que os alunos jovens/adultos não demonstram interesse em aprender , faltam muito, alegam cansaço e desmotivação com os professores as coisas não são muito diferentes.
Vários colegas nossos são realmente um espelho de nossos alunos: dormem na classe, não acompanham as discussões, não entregam os trabalhos em dia,estão sempre cheios de razão, desistem na metade do curso ,etc...
Qual é a diferença entre eles?
São adultos que já detém uma parcela do conhecimento elaborado, porém demonstram descaso quando se refere ao estudo.
Imagine os alunos sobrecarregados de compromisso, um dia de trabalho extenuante, salário curto e um profissional despreparado ministrando aulas...
A esse respeito Paiva comenta: "nenhum país em nossos dias será capaz de enfrentar a nova configuração produtiva e competição internacional sem uma revisão ampla de seu sistema de ensino como um todo e sem o estabelecimento de políticas abrangentes para jovens e adultos (1994 p.34)
Posso afirmar sem sombra de dúvida que a formação adquirida através da Especialização em PROEJA proporcionou maior fundamentação para minha pratica educativa e legitimou tudo que até então eu já sabia, conhecia e praticava sem muita segurança.
Atualmente consigo repassar informações adequadas,relacionar aprendizagem teórica com prática educativa e ainda subsidiar os debates relacionados à EJA.
Pretendo produzir textos mais criativos e melhor elaborados à partir das teorias estudadas durante o curso que estou concluindo.
VIII- CONSIDERAÇÕES
Um trabalho dessa natureza exige compreensão das múltiplas histórias da docência, registrando o "devir" da prática de ensino-aprendizagem.
Levando em conta a característica do professor reflexivo que no seu cotidiano, recria, reinventa, refaz e reorganiza sua trajetória através da formação continuada é possível observar que estas reminiscências estão sempre em consonância com o tempo didático.
Quando um professor lê um texto para si ou para outro, situa-se nele como interlocutor desse, e contextualiza e intertextualiza o que faz da leitura um encontro de personagens e personalidades. Todo texto contém em sua estrutura ensinamento estético, moralístico,humorístico ou até mesmo "prazeroso".
Espero que ao ler este relato de Memórias de Formação se tenha uma visão holística de que o professor não pode e não deve ser quadrado, mas ser em formação, portanto com um leque de informações, que em efeito, dá a cada um, característica peculiar.
Nessa leitura proponho ainda um olhar dinâmico, para a diversidade, a multiculturalidade e a transdisciplinaridade, pois os saberes não são estanques, ao contrário, são entrelaçados, interrelacionados e por essa razão o ser humano vive em constante transformação.
Em cada tempo em cada circunstância o professor-educador, aluno-aprendiz deve buscar alternativas de mudanças na sua prática, tanto de aprendizagem quanto de aplicabilidade.
Visto ser o professor uma personalidade no mundo da Educação, esse processo cotidiano de ensino e aprender está intrínseco em sua existência e como tal precisa registrar essa epopéia como forma de exercício produtivo.
Enfim, leitura e escrita seja de que maneira for, em prosa, ou em verso, há nela sempre um contexto histórico-filosófico,cultural e social e nele estamos todos inseridos como professor-aprendiz.
REFERÊNCIAS
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