May Day Sampa
Por Bernard Gontier | 27/02/2008 | CrônicasMay Day, may day
Help...alô...sim...?
E a próxima conferida no visor me transmite uma visão estonteante.
São Paulo.
Ai, ai.
São Paulo. Na Terra, minha Terra Natal.
São Paulo da Garôa. (Faz tempo).
São Paulo Túmulo do Samba. (Mentira).
São Paulo Capital do Nordeste. (Com muito orgulho). São Paulo dos paulistas e paulistanos que já deixaram de sê-los. (Com uma ponta de tristeza). São Paulo das Transformações. (Com milhões e milhões de boquiabertos).
Sobrevô-a - Sampa - e pelo menos uma consideração é inevitável.
Tenho certeza de que alguém já ouviu falar naquela sensação que acomete alguns cocainômanos, quando entram literalmente em pânico após algumas horas, digamos, de consumo. Parece que é um tal estado de estupor (segundo ouvi dizer), onde o sujeito tranca portas e janelas, assusta-se com a campainha do telefone, apaga e acende as luzes, espia pelas frestas, um medo terrível o assola, e nesse instante ele não pode definir o que de fato é tão apavorante, mas parece que, (ainda de acordo com os relatos), a coisa transita entre a polícia, capaz de descobri-lo nessa medonha contravenção, ou entra-se na paranóia onde terríveis bandidos vão finalmente entrar na sua casa e despojá-lo de todos os bens, inclusive a vida. E parece que nessa dinâmica vai a madrugada, o gajo encerrado entre 4 paredes, ora se esgueirando por elas, ora encolhido no chão, à espera de um mal terrível que jamais acontece mas que só se dissipa em sua mente ao raiar do dia, na distância segura da última cafungada e na certeza de uma boa xícara de café. Bom, tudo isso são só testemunhos colhidos ao léu, mas que fatalmente me levaram a uma triste reflexão: não é necessário fazer uso do referido estupefaciente para se chegar em tal estado de espírito. Para quem pensa estar participando de uma brincadeira verbal, aqui vai: há poucos anos São Paulo foi eleita a cidade onde mais se morre por arma de fogo no mundo. O título foi outorgado por organismo internacional, desses que outorgam. E não pensem que as coisas de lá para cá melhoraram. Parece que o título veio para ficar.
Lembra daquele seu amigo, assaltado em frente ao trabalho, às 8 da noite lá na Pompéia? E a sua sogra, na esquina da Groelândia com a Nove de Julho? E a namorada, feita refém por sabe-se lá quantas horas, nas mãos de 2 sujeitos muito bem vestidos e até quase bem educados, que não lhe roubaram um tostão, tampouco lhe encostaram a mão, mas que no final de contas, inspirados talvez por alguma noção divina, ou apenas seguindo suas prévias intenções, largaram a moça na Cantareira eesta, ainda que incólume, passou uma semana a base de sedativos, trancafiada no quarto. Perdeu não só o veículo como um certo gênero de confiança que, do dia para noite, deixou de ser básico para se tornar artigo a ser reconquistado depois de muita terapia.
Basta morar em São Paulo.
Algo desenfreada esta dinâmica, ora com as cores da tragédia, ora com as da tragicomédia. Mas ambas chegando até você tanto pela experiência daqueles que estão próximos, quanto pela tenebrosa aventura de assistir aos tele-jornais. Trata-se, saiba, de uma soma explosiva.
Fica-se, portanto, instaurada uma atmosfera onde "dois homens entram de metralhadora num hospital da zona leste para terminar o trabalho, num rapaz de 20 anos", "adolescente morto com uma bala na cabeça em cruzamento da Faria Lima com Rebouças", "mulher estuprada e assassinada na frente do marido e dos filhos em assalto nas Perdizes", "arrastão em restaurante de luxo no Jardim América", "toque de recolher imposto pelos traficantes agora sai das favelas para atingir rua de comércio movimentado em ...." Tal bombardeio, aos poucos, vai se instalando no fundo do seu ser, a princípio lá no fundo, mas só a princípio.
A mente, antes ocupada em horários a cumprir, contas a pagar, filhos a zelar, e segue-se aí extensa lista repleta de deveres, sonhos e ambições, culpas, aprendizados, relacionamentos etc., etc. etc, a mente, enfim, começa repentinamente a dobrar-se ao fruto de todos aqueles relatos plus todas aquelas reportagens. É então que aquele tal estado de espírito entra em ação.
Você está no carro, na porta da padaria com a família, e repara naqueles dois mulatos do outro lado da rua, e seus olhares se encontram.
Jogando a hipocrisia de lado, sabemos bem o quanto a nossa cultura e a nossa educação nos torna preconceituosos. Quem disse que os dois mulatos não são pais de família, trabalhadores, cientes de seus deveres como cidadãos? E quem por acaso ainda não sabe que os protagonistas do maior medo do paulistano hoje "o sequestro relâmpago" são os brancos, distintos caucasianos, empunhando ternos e armas e chamando as vítimas de vítimas?
Se a coisa parasse digamos, numa única e ensolarada quinta-feira à tarde na padaria poderíamos até estar de bem com a vida. Mas não.
A paranóia ganha corpo e asas, fazendo aparições todos os dias, chova ou faça sol, evando os filhos para o colégio, indo (e) ou voltando do supermercado, naquela esquina simpática onde outrora você muitas vezes havia passado sem susto, hoje não mais, e toda e qualquer figura humana que não lhe seja familiar agora é um suspeito em potencial.