Maternidade de Aluguel: Uma Prática Desnaturada e Bastante Rentável

Por B M C | 15/12/2009 | Arte

De acordo com a biologia e com o cristianismo, o ato de copular – ato sexual – tem a finalidade de reprodução e, por conseqüência, a perpetuação da espécie. Porém, desde os primórdios da humanidade, o acasalamento era visto como uma atividade mística e, inclusive, divina, até o advento da Igreja Romana, quando algumas teorias foram revistas. Desconsiderando práticas como fornicação, adultério, prostituição, pedofilia, homossexualidade e zoofilia, o ato sexual é, de fato e em síntese, a maneira pela qual os seres humanos se reproduzem. Tendo isso em mente, é de suma importância mencionar o estado da gestação como sendo o resultado primeiro e esperado da fecundação de um óvulo por um espermatozóide e, portanto, a maneira natural de se obter descendentes. Sexo-gestação-nascimento foi uma seqüência única até o mês de julho de 1978, quando o mundo parou para assistir o nascimento da inglesa Louise Brown, o primeiro bebê de proveta que a humanidade produziu. Desde então, a seqüência – mencionada no início do parágrafo – deixou de ser uma obrigação às pessoas que almejavam procriar. Esse fato culminou não apenas num avanço científico e na abertura do fabuloso mercado da Reprodução Assistida, mas na abertura de um mercado muito mais rentável e perigoso: o aluguel de barrigas. O ato de alugar o próprio ventre gerou grande furor e desde a época, não são poucas as vozes que gritam constantemente em tom de protesto a respeito desta prática. Segundo Strathern, práticas como a doação de óvulos e a gestação substituta aproximariam as representações da maternidade das de paternidade, tingindo-as de incerteza. O que, de fato, veio a ocorrer: A incerteza é maior do que os argumentos prós e contras à maternidade por substituição.

1 MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO

A Revista Veja, em sua edição de sete de maio de 2008, publicou uma matéria sobe as questões éticas da prática de aluguel de barriga. O texto contava a história de uma mulher denominada N.J., de 35 anos:

"Com uma renda familiar de 1 000 reais e três filhos, a dona-de-casa N.J., de 35 anos, ambiciona comprar uma casa. Depois de ler uma reportagem sobre medicina reprodutiva, ela decidiu alugar sua barriga. Pela internet, entrou em contato com um centro de fertilização no Rio de Janeiro e foi incluída no cadastro da clínica. Depois de um ano de espera, o negócio foi fechado com um casal europeu, por 100 000 reais."

A matéria informou ainda a respeito da locatária que, com 36 anos, não conseguia engravidar por causa de miomas uterinos e já havia perdido três bebês. "Meu ginecologista me sugeriu a barriga de aluguel. Como em meu país a prática é proibida e domino bem o português, pensei imediatamente no Brasil", informou a mulher à revista.

Como dito, a prática de barriga de aluguel é permitida no Brasil, mas apenas entre parentes, com exceção dos estados de São Paulo e Minas Gerais, onde a prática também é permitida entre não-parentes, desde que não haja dinheiro envolvido.

O "aluguel do útero" envolve questões delicadíssimas, tanto para a gestante quanto para a mãe biológica. De um lado encontra-se uma mulher que passa por uma gestação e, portanto, sofre todas as transformações físicas e psíquicas ocasionadas pela mesma e sabe que, apesar de tudo, a criança que carrega consigo não é e nunca será sua. "Por mais que digam que se trata apenas de uma transação comercial, é impossível uma mulher não ser afetada emocionalmente pela gestação", diz a terapeuta Magdalena Ramos, professora do Núcleo de Casal e Família da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. "Costumo dizer que o nascimento do bebê sempre representa um aborto psicológico para a mãe de aluguel." Do outro lado do round, encontra-se uma mulher, na maioria das vezes, transtornada, tentado realizar o sonho natura e instintivo de ser mãe, ainda que não em plenitude; uma mulher que, assim que tem a criança nos braços, deve – e procura – esquecer que esta foi formada dentro de outra mulher.

Muitos pensamentos assombram a cabeça das pessoas em uma explosão de dúvidas e questionamentos: Pode uma mulher se apropriar de um pedaço do corpo de outra? Tem direito uma criança, por menos culpada que seja, de usurpar o útero (e as acomodações e funções que este proporciona) de uma mãe que não é a sua? Qual é o valor de um útero? Qual é o valor de uma vida, pois? Pode a gestante se apegar à criança que não é sua? E seria justo a primeira ficar com a segunda, mediante a devolução do dinheiro à mãe?

1.1O discurso jurídico:

A estrutura do parentesco ocidental no Direito tem origem em Roma, tornando justa a fórmula do Código Napoleônico de 1804 de presunção de paternidade, segundo o qual "a paternidade é reconhecida como legítima pela demonstração do casamento do presumido pai com a mãe da criança". A maternidade, por sua vez, era sempre dada como certa a partir da comprovação do parto, ou seja, o Direito deveria se pautar na questão biológica.

Recentemente, todavia, o Direito tem apontado que a vontade individual é o complemento necessário do vínculo biológico, destacando a importância da "filiação vivida". De acordo com a concepção e análise de Schneider, haveria dois aspectos básicos, no entendimento de paternidade: (1) os laços de sangue, compreendidos e atualizados pela linguagem científica confirmados com facilidade pela análise de material genético, o DNA e, (2) o código de conduta que consiste no reconhecimento de laços a partir do comportamento entre parentes. Os laços de sangue seriam, assim sendo, a prova biológica e irrevogável sustentada pelo código dos genes do DNA e, portando, irreversíveis; já o aspecto da conduta seria uma pseudo-verdade construída aos poucos e, como tal, revogável e susceptível de dúvida. O aluguel de barriga põe por terra o que é considerado "verdade biológica", podendo-se gerar um ser numa progenitora que não é sua mãe.

Representa isso uma interferência humana no que não é de sua responsabilidade (o que é natural)? O que diz o Direito pela força da "razão"?

De acordo com Naara Luna, doutoranda do programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o famoso e conhecido caso do Bebê M foi o responsável pela abertura na discussão do Direito sobre a maternidade de substituição:

"O grande marco jurídico para discutir a maternidade substituta consiste no caso do bebê M, desenrolado nos tribunais dos Estados Unidos no final da década de 80. (...)Foi firmado um contrato através de uma agência de intermediação entre o casal Stern e Mary Beth Whitehead para que ela fosse inseminada com o esperma do sr. Stern e gerasse um filho a ser entregue ao casal. O "pai natural" assumiria a paternidade e sua esposa adotaria o filho do marido. A sra. Stern não era estéril, no entanto, sofria de problemas de saúde que contra-indicavam a gravidez. Por ocasião do nascimento da criança, Mary Beth, mãe genética e gestacional, recusou-se a entregar a criança, a consentir na adoção e a receber o pagamento pela "prestação de serviços"."

O caso gerou grande furor e polêmica no mundo todo, sendo noticiado na imprensa de absolutamente todos os países do ocidente e pela maior parte dos países do oriente. O sociólogo americano Robin Fox explica como se resolveu o problema:

"A decisão em primeira instância em Nova Jérsei foi de fazer cumprir o contrato, dar a custódia da criança ao casal Stern e deixar o processo de adoção prosseguir. Em segunda instância, a Corte Suprema de Nova Jérsei confirmou os direitos parentais de Mary Beth Whitehead e do sr. Stern sobre a criança, cancelou o processo de adoção, concedendo a guarda da criança ao casal Stern e direito de visitação à mãe."

Fox chama a atenção para o quanto "o respeito ao contrato e considerações sobre pesaram para as decisões": enquanto o casal Stern era de classe média e com ensino superior, a mãe era de classe baixa e possuía pouquíssima escolaridade. Esta análise onde se coloca no jogo o contrato versus o status coloca em choque o dilema principal da maternidade de aluguel: "o que ocorre se a mãe gestacional rompe o contrato e invoca o vínculo reconhecido pela tradição" e pela biologia?

Uma vez que a certeza da maternidade é dada pelo parto e que a mãe substituta também é geneticamente a mãe, é necessário determinar os direitos dessa mulher sobre a criança. Segundo Fox, neste caso as interpretações variam entre um processo de adoção e pagamento por serviços de gestante e a venda de bebês de mulheres de classe baixa para casais de classe alta. As acusações envolvendo a maternidade substituta vão nesse sentido, assim como certas tendências na legislação.

No Brasil, ainda não nenhuma lei aprovada a respeito; as práticas são, portanto, pautadas na Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, na qual está prescrito a doação de gametas "sem caráter comercial, anônima, buscando semelhança fenotípica (de aparência física) com o receptor". A gestação de substituição é denominada de "doação temporária de útero", sendo permitida sem caráter comercial, como já mencionado. Além disso, o aluguel deve ocorrer somente entre parentes de até segundo grau.

Percebe-se, todavia, uma tendência geral nas diversas legislações de constituir o laço legal de filiação materna pelo parto, uma regra contornada pela adoção nos países onde se admite a maternidade substituta.

1.2Furor na imprensa:

Segundo Naara Luna, um levantamento feito na grande imprensa brasileira entre os anos 1994 e 2001 mostrou que a maternidade substituta foi discutida ou citada em 94 artigos, porém, em apenas um artigo, o tema é discutido de forma geral, reconhecendo barreiras culturais que impedem sua popularização no Brasil. Quatro artigos citam legislação contrária à prática e muitas são as matérias que envolvem o assunto com um véu dramático, "três artigos relatam o caso da italiana para quem foram transferidos de uma só vez embriões de dois casais diferentes, ou seja, em uma mesma gestação foi mãe substituta para dois casais. O caso mais polêmico foi mencionado em quatro textos: outra italiana que gestou o embrião concebido com o óvulo de sua irmã já falecida a pedido do marido da morta, o pai genético da menina que nasceu. Dramático também foi o enfoque sobre casais que tiveram embriões trocados por erro médico: um artigo denuncia o erro que teria atingido vários casais na Inglaterra e três matérias sobre um caso ocorrido nos Estados Unidos em que a mãe substituta involuntária (branca) gestou seus embriões e os de um casal negro."

Não foram poucas as manchetes gritantes de casos de barriga de aluguel. As notícias chocavam e provocava grande discussão como: (1) a mãe substituta que recebeu os embriões gerados com gametas de seu filho e de sua nora e, (2) mãe em que foram implantados os óvulos da filha fecundados com esperma do genro.

Pelo levantamento, apenas um texto mencionou uma disputa judicial sobre a custódia do bebê entre um casal que idealizou a gestação e a mãe substituta, que teria simulado um aborto para ficar com o filho.

Um caso chocante e excessivamente preocupante é fato que ocorreu onde a mãe substituta abortou a pedido do casal locatário, após ter sido constatado, em diagnóstico, que o feto tinha Síndrome de Down.

Os casos mais publicados nos periódicos populares (não-científicos), foram: (1) a mulher que foi mãe gestacional em favor de sua irmã, a fornecedora do óvulo, (2) a sobrinha que deu à luz em favor da tia, a mãe genética, (3) o casal gay inglês que conseguiu a guarda de seus filhos genéticos gerados por mãe substituta nos Estados Unidos.

Um fato curioso que repercutiu na imprensa foi o surgimento de agências de intermediação para mães substitutas. Dois artigos mencionaram o fato, segundo o levantamento.

1.3As etnografias

A antropóloga Helena Ragoné investigou a maternidade substituta nos Estados Unidos, desenvolvendo sua análise a partir dos três atores: agências de intermediação, mães substitutas e casais que as contratavam. Ela contribuiu analisando a perspectiva das mães substitutas quanto a sua atividade, percebida enquanto vocação.

Segundo a antropóloga, "em geral trata-se de mães, de classe baixa, donas-de-casa, com concepções tradicionais sobre o papel da mulher e sobre família. A dádiva de um filho seria um ato de compensação financeira impossível, por isso é menosprezada a importância da remuneração que mancha a imagem de abnegação associada a mães. A empatia com o sofrimento de casais inférteis e o desejo de experimentar novamente a gravidez sem o encargo de criar mais um filho são motivações admitidas para a substituição." As substitutas reagem às campanhas contra o aluguel de barriga, nos Estados Unidos, alegando ter o direito de controlar seus próprios corpos.

Além disso, as mães de substituição não concordam com o sociobiólogo Fox, que supõe e defende a naturalidade do vínculo mãe-filho durante a gestação. E, de acordo com a concepção e com os estudos feitos por Ragoné, as pessoas contrárias ao aluguel de barriga são favoráveis à perspectiva de Fox. Ela explica:

"Os casais idealizadores da gravidez são pessoas de classe média alta, com educação e profissões de nível superior. Eles lamentam os estereótipos negativos que os representam como pessoas de classe alta acostumadas a comprar tudo, até um filho.Os casais e as substitutas depreciam a relevância das diferenças de classe existentes, um dos aspectos mais controversos dos arranjos de substituição."

1.4O caso da Índia

A prática de barriga de aluguel é legal na Índia desde 2002, mas o que leva casais do mundo todo a procurar mães de substituição naquele país é o baixo custo.

O jornal USA Today fez uma reportagem investigando este novo "emprego" das mulheres indianas. Segundo o jornal, "enquanto uma americana gastou com a fertilização in vitro na Califórnia cerca de 200 mil dólares e ainda precisaria pagar mais US$ 80 mil para alugar uma barriga por lá, ela pagou apenas 20 mil pelo procedimento na Índia. Deste valor, a mãe de aluguel recebeu somente US$ 4.500."

O periódico, que tem grande circulação nos Estados Unidos, denunciou a indústria do aluguel de ventres que trabalha sempre com preço menor, mostrando clínicas que dão 20% de desconto. "Com um salário que chega a 25 dólares por mês as mulheres estão fazendo fila na porta da clínica para se candidatarem a uma vaga. Os proprietários se defendem dizendo que só aceitam mulheres que já tenham filhos e que todas as despesas médicas são pagas pelos pais adotivos, mas com os preços caindo existe uma preocupação de que isto vá se refletir no atendimento médico às mães.

De acordo com o periódico, a clínica visitada pelo mesmo dá casa, comida e atendimento médico a 15 mulheres e já fez o parto de 40 bebês.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, alugar a barriga, ou ser mãe de aluguel, é um bom negócio. Além do excelente custo-benefício para ambas as partes – a mãe e a "doadora temporária de útero" -, a prática representa uma pseudo-indústria em várias partes do mundo, existindo agências especializadas, clínicas à disposição e clientela perpétua.

Todavia, o ato representa uma forma ética, ou melhor ainda, enquadra-se nos valores éticos? Tem-se conhecimento de que problemas e transtornos existiram e, ao que tudo indica, continuarão a existir, pois trata-se, acima de tudo de uma afronta a natureza da concepção e ao pensamento dos conservadores de toda a parte.

Se é legal, ou não, isso fica à critério dos diversos países, na soberania que têm em seus respectivos territórios. Agora, quanto ao fato de ser certo ou errado, nada se pode dizer, afinal, cada qual tem seu modo de pensar, de acordo com sua cultura, grau de erudição e instrução, e será muito difícil que haja algum tipo de consenso entre os indivíduos (e, quem dirá, entre os povos!).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

http://veja.abril.com.br/070508/p_140.shtml, acessado em 10 de setembro de 2008.

http://indiagestao.blogspot.com/2008/01/barriga-de-aluguel.html, acessado em 16 de setembro de 2008.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332002000200010&lng=pt&nrm=iso, acessado em 10 de setembro de 2008.

RAGONÉ, H. Surrogate Motherhood... Op. cit., p.196, nota 12.

FOX, R. The Case of the Reluctant Genetrix.n Op. cit.

Sobrinha empresta barriga para tia sem útero dar à luz 3 filhos. Folha de S.Paulo, 11-1-2000, São Paulo, p.3.5

MARANHÃO, Amélia. Mães de aluguel enfrentam preconceito: Duas irmãs de Nova York se unem para conseguir trazer menina ao mundo. O Globo, 20-7-1998, Ciência e Vida, p.24.