LOUCURA E DIREITO PENAL: O TRATAMENTO PENAL DA DOENÇA MENTAL NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

Por Érica Veronese | 12/07/2018 | Direito

Este artigo tratará sobre o tratamento penal da doença mental no ordenamento brasileiro. 2018. Artigo Científico para obtenção de grau em bacharel em Direito. Universidade Candido Mendes - Méier. O trabalho se propõe à análise crítica do tratamento penal vigente no ordenamento brasileiro destinado aos ―loucos‖, aqueles com doença/transtorno mental. Para isso, será realizada uma abordagem multidisciplinar, abrangendo-se a construção da loucura na sociedade desde a idade clássica até o código penal vigente, expondo desde o surgimento das instituições manicomiais de tratamento e custódia dos sujeitos considerados inimputáveis devido à doença mental, até as principais leis do direito brasileiro, trazendo o entendimento da inimputabilidade no que se refere à imputação de penas, para, por fim enfrentar a problemática legislação das medidas de segurança e a contradição desta com a Constituição e com a Lei 10.216 de 2001.

Palavras-chave: Direito Penal. Doença mental. Manicômios Judiciais. Inimputabilidade. Medida de Segurança. Ordenamento Penal Brasileiro.

INTRODUÇÃO

Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, conhecidos como manicômios judiciários, são instituições de natureza híbrida, entre a prisão e o hospital psiquiátrico, e surgiram a princípio como instituições feitas para abrigar os “loucos de todo gênero”. Pelo atual ordenamento jurídico penal, recebem ainda, pessoas consideradas como inimputáveis devido à doença mental para cumprir uma medida de segurança. Entre a prisão e o hospital, os manicômios judiciários permanecem um impasse entre as políticas de saúde e segurança pública, sem acompanhar as transformações na atenção às pessoas com transtorno mental preconizada pela reforma psiquiátrica brasileira.

Este artigo científico tevepor objetivo a reflexão da problemática persistente do tratamento mental dos sujeitos considerados “loucos” abordados no sistema penal e nos manicômios judiciários e o instituto das Medidas de Segurança. Mostrou-se evidente que a aplicação complexa desse sistema não se faz eficaz a realização do real objetivo do tratamento médico e a reinserção social do punido, especialmente em se tratando desse grupo historicamente segregado e com pouco entendimento por parte do meio social. Tema este, interessou-me, devido à forma superficial e relativa que ainda são abordadas as medidas protetivas de tratamento e custódia pelo sistema penal vigente, como as medidas de segurança,ao passo que, vi a forma humanizada no tratamento destes indivíduos estigmatizados, ao frequentar o Instituto Municipal Nise da Silveira, localizado no Rio de Janeiro.O assunto interessou-me também, devido à vasta abordagem em disciplinas variadas, como a psicologia, sociologia e, claro, o direito, ainda que este último muitas vezes, silenciar-se no que se refere ao pensamento crítico de seus dispositivos.

A problemática referida manifesta-se desde a exclusão social da loucura e a complexo e ao mesmo tempo, simplório modo de abordagem, desde os primeiros códigos penais e também as péssimas condições das instituições, até a sanção penal vigente em nosso ordenamento jurídico adotada como tratamento.

As pesquisas foram realizadas a partir da leitura de livros, teses e dissertações.  Logo, buscou-se nesse artigo apresentar uma singela contribuição ao estudo do assunto, questionando o fazer da justiça frente a esses institutos.

CAPÍTULO 1 –A CONSTRUÇÃOSOCIAL DA LOUCURA NA SOCIEDADE

De onde teria surgido a noção cultural e, posteriormente, médica, de que um comportamento que difere do padrão, seria causado por doença localizada na mente de uma pessoa?

Preliminarmente, pode-se entender a loucura como produto de uma segregação social, que antes de ser considerado pressuposto de uma patologia, é um acontecimento sociológico e cultural, pois, poder-se-á, considerar a loucura como um elemento manifesto da doença mental, quando esta, estiver inserida em uma cultura que a reconheça como patologia. Sobre loucura e cultura dizia Foucault (1926 a 1984): “Daí cada cultura formará da doença uma imagem cujo perfil é delineado pelo conjunto das virtualidades antropológicas que ela negligencia ou reprime”. (FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Edições Tempo Brasileiro, 1978. p.50). E, para Émile Durkheim (1858 a 1917) “são considerados patológicos os fenômenos sociais que se afastam da média”. (FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Edições Tempo Brasileiro, 1978. p.50).

Desta forma, aqueles que se desviavam da normalidade ou da generalidade, os indivíduos que destoavam das regras de comportamento social, eram estigmatizados e estereotipados,consequentemente, a classificação do fenômeno em “normal” ou patológico está associado à sua constância na sociedade. E, por isso, segregados, postos às margens do convívio social. Foucault expõe que:

Fizeram do desvio e do afastamento a própria natureza da doença, é, sem dúvida, por uma ilusão cultural que lhes é comum: nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou que encerra; no instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente. (FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Edições Tempo Brasileiro, 1978. p.51).

No mesmo sentido, Franco Basaglia (1924 a 1980), precursor do movimento chamado “Psiquiatria Democrática” na Itália,salienta que o hospital psiquiátrico pode nos ensinar muito sobre a sociedade em que vivemos, pois é a partir do juízo do meio social, acaba-se classificando o que é doença. No qual o “oprimido é cada vez mais afastado da percepção das causas e dos mecanismos da opressão”.(BASAGLIA, Franco.A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. 3ª edição. Rio de Janeiro: GRAAL, 2001. p. 271).

1.1 A doença mental na história ocidental

Durante os séculos, várias foram as alternativas e formas encontradas pela sociedade para com os “loucos”. A princípio, no ocidenteaté o advento da medicina, não se revelou diretamente uma história da loucura, mas sim uma história de ideias religiosas, afirmava-se serem os loucos, até mesmo na própria psiquiatria da época, indivíduos “possuídos”, presos a significações sobrenaturais. A história da loucura inauguraao final da Idade Média (período entre os séculos XIV e XV), na épocaem que a lepra, principal motivo para início de exclusões e internações, desaparece, fazendo-se necessária uma nova encarnação do mal nos séculos XIV ao XVII. (FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 7.).

Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento. (FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 10).

No século XVI, acontece uma mudança referente ao tratamento da loucura. Apresentou-se a principal dúvidarelativa a ela:uma ausência de certeza. Com isso, “dividiu-se razão da loucura, o bem do mal, baseada na moral racional”. ParaBasaglia, os conceitos do “bem” e do “mal” passaram a ser vistos não apenas como uma norma ética, mas também social e até mesmo científica, repropondo-se a todo o momento na forma de modelos. A sociedade organizou-se através desta divisão radical entre os que têm e os que não têm, “da qual resulta a subdivisão mistificadora entre o bom e o mau, o são e o doente, o respeitável e o não-respeitável”. (BASAGLIA, Franco. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. 3ª edição. Rio de Janeiro: GRAAL, 2001. p. 101 e 181).Desenvolveu-se , por séculos, um parentesco entre desatino e culpabilidade, ainda hoje experimentada e, teoricamente, descoberta pelo médico como a verdadeira natureza do “doente”. (FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 99)

No decorrer do século, ocorreu o que Foucault nomeia de “disciplina” e “física do poder”, aquela consistia no controle dos elementos do comportamento, que representou uma maneira específica de punir, que objetivava penalizar tudo o que era inadequado à regra, tudo o que se afastava dela. Através de uma vigilância hierarquizada com um controle normalizante (estabelece padrões), visando qualificar o indivíduo, classifica-lo e depois puni-lo, e, com o desenvolvimento dessa vigilância, ocorreu a “física do poder”, que entendia ser o domínio do corpo para transformá-los em dóceis e adestráveis.(FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 33ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. p. 118.). Visto isso, os que não se adequavam a tal mecânica do poder foram, consequentemente, estigmatizados como marginais à ordem e considerados como perturbadores do espaço social, associados com a pobreza, aos miseráveis, aos vagabundos.Cabe frisar que esta moral, fundada na disciplina e exercida pela prolongada “coação”, não foi responsável apenas em dividir abstratamente o bem e o mal, como também em promover a separação física destes, criando espaços de internamento, nos quais haveria a redenção dos loucos aos “pecados contra a carne e às faltas contra a razão”. (FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade Clássica.São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 99). E com isso, foi no decorrer do século XVI e XVII que a (considerada) loucurafixou-se nos interiores dos asilos.

Durante o XVII, houve-se um grande crescimento dos internamentos, a loucura deixou de ser o estranho habitual e foi encaixada em status de exclusão. A permanência dos asilos era diretamente ligada ao programa de trabalhos forçados, como papel de sanção e controle moral. A partir do internamento de loucos junto a libertos e criminosos maiores e menores que a loucura foi associada com o mau, o obscuro, aquilo que se deve afastar. Foi quando esta estabeleceu um paralelo de culpa moral e social.

Em meados do século XVIII, houve a medicalização da loucura e a institucionalização dos hospitais, como espaço terapêutico. Aqui a internação será visto como essencial para a cura da loucura. As casas de internamento não conseguiram manter a loucura silenciada, porém, havia ainda a necessidade de contê-los e da sanção penal, pois os loucos restituídos à sociedade podiam tornar-se perigosos a suas famílias. E, como forma urgente de solucionar esse problema, as antigas casas de internamento foram aos poucos reservadas a eles, especificamente.  É o surgimento dos manicômios e a psiquiatria com o domínio do saber, tornando-as, medidas de caráter médico.

No Brasil, a loucura fazia parte do convívio social desde o século XVI até o início do século XIX. A partir desse ponto, começou a ser reconhecida como desordem e perturbação da paz social. Progressivamente, os loucos foram sendo retirados do contexto social e isolados nos porões das Santas Casas de Misericórdia e nas prisões públicas. Para os médicos da época, entretanto, essa situação não resolvia o problema da loucura. A segregação, a falta de higiene e um tratamento físico e moral inadequado tornavam a cura impossível. E por isso, começam a reivindicar a criação de uma instituição terapêutica específica para os loucos, o hospício. (Revista de Ciências Sociais, n. 40, Abril de 2014,).Até que, em fins do século XVIII e no século XIX, surgem os asilos com valor terapêutico, e a loucura passa a ser definida como “alienação mental”, como proposto por Philippe Pinel.

Artigo completo: