Literatura Infantil e Ana Maria Machado

Por Marilene Schwinn | 03/10/2009 | Educação

O primeiro livro infantil publicado foi Bento-que-bento-é-o-frade, que recebeu um prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e nessa obra, Nita a personagem principal questiona o mundo que a cerca, como uma projeção de si mesma, viaja ao país dos Prequetés e traz de lá não só questionamentos mas também a esperança de mudanças.

Através dos traços pós-modernos da Literatura de Ana Maria Machado, cria-se uma vertente infantil do questionamento do poder, onde o encontro com qualquer forma de literatura que os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida. Nesse sentido, a literatura apresenta-se não só como veículo de manifestação de cultura, mas também de ideologias. A literatura infantil, por iniciar o ser humano no mundo literário, deve ser um instrumento para a sensibilização da consciência, para a expansão da capacidade de analisar o mundo, sem estar a serviço de qualquer interesse.

Entre os séculos XVI e XVII, houve o nascimento da sociedade moderna e com ela o surgimento do status de infância. Até então, as crianças eram somente adultos de tamanho pequeno, sem distinções de sinais culturalmente reconhecidos como roupas ou atividades especiais. Já a literatura infantil apareceu durante o século XVII, época em que há mudanças na estrutura da sociedade, com a ascensão da família burguesa. Assim, de uma forma inquestionável e praticamente natural, estabeleceu-se um vínculo entre dominador e dominado que reproduz o modelo capitalista de organização social.

O surgimento dessa literatura associa-se, desde as origens, a uma função utilitário-pedagógica, já que as histórias eram elaboradas para se converterem em divulgadoras dos novos ideais burgueses. Até bem pouco tempo, a literatura infantil era considerada como um gênero secundário, vista pelo adulto como brincadeiraou como forma de entretenimento. A valorização da literatura infantil, como formadora de consciência dentro da vida cultural das sociedades, é bem recente. Com base nessas considerações, pode-se depreender a importância da literatura infantil, pois apresenta um potencial de manipulação de ideologias em formação.

A literatura para crianças por muito tempo reproduziu esse modelo idealizado pela sociedade. A pós-modernidade, com toda sua linha crítica, incitam questionamentos em qualquer manifestação da cultura, inclusive no âmbito da literatura. Os textos caracterizados como infantis não são menores, menos ainda a qualidade literária de muitos autores como foi o caso de Monteiro Lobato, que encontrou na literatura para crianças a esperança que perdera com a literatura adulta.

Dentre nomes de relevo na produção literária infantil brasileira contemporânea figuram autores como Ziraldo, Sylvia Orthof, Ruth Rocha, Ligia Bojunga, Ricardo Ramos, Ana Maria Machado e muitos outros. Os textos desses escritores não apresentam uma visão pronta, mas um convite para partir do mundo da leitura para a leitura do mundo.

Ana Maria Machado, autora de literatura, sem adjetivos que delimitem o público a que suas obras se destinam foi premiada com Hans Christian Andersen, considerado o prêmio Nobel da literatura infantil mundial em 2000 e membro da Academia Brasileira de Letras, reconhecida nacional e internacionalmente.

Durante a ditadura militar no Brasil (1964 – 1985), muitos autores brasileiros encontraram na literatura infantil o espaço para expor seus questionamentos e protestos contra a política de repressão imposta pelo governo. Tudo isso só foi possível porque a literatura infantil sempre foi considerada um gênero menor, sem maiores perigos, coisa de mulher e, portanto, não era alvo do olhar incisivo dos censores.

Dessa forma, vários autores denunciavam através de textos dirigidos ao público infantil, os abusos de poder e a realidade político-social do país. Ana Maria Machado em seu livro de artigos Texturas (2001) registra bem esse momento do qual foi partícipe ativa, como no trecho a seguir: "(...) por incrível que pareça, os militares não deram a menor importância aos livros para criança. (...) E acabou ocorrendo algo inesperado: foi justamente a partir do AI-5 que houve o chamado boom da literatura infantil brasileira (...)" (MACHADO, 2001, - p. 81)

Nelly Novaes Coelho (2000), uma das críticas mais conhecidas no universo literário infantil brasileiro, assinala um conjunto de características estilísticas e estruturais da literatura infantile juvenil contemporâne. Muitas dessas características destacadas são reflexos das tendências pós-modernas, como a tendência de retomada de temas e recursos antigos a fim de integrá-los a novas estruturas. Seguem-se algumas dessas peculiaridades temáticas e formais de traços pós-modernos:

Seqüência narrativa – procura-se propor problemas a serem solucionados de maneiras diferentes, muitas vezes co-participativamente, do que apresentas respostas prontas.

Personagens – emergem as individualidades que se incorporam no grupo-personagem, com tendência a valorização de grupos, patotas, a personagem-coletiva. Surge o espírito comunitário e a individualidade do herói está pouco presente. As soluções apresentadas durante a enfabulação dependem da colaboração de todos. Identifica-se, por vezes, uma individualidade não integrada no grupo. Nesse caso, presencifica-se a personagem questionadora que põe em xeque as estruturas prontas, um convite à reflexão.

Voz narradora – mostra-se mais consciente da presença de um leitor possível, num tom mais familiar e até de diálogo. Não cabe mais tratar o leitor como receptor da mensagem, pois não há passividade. A perspectiva é de interlocutor, em tempos de valorização da análise do discurso e da pragmática.

Ato de contar – crescente valorização da linguagem e todos os processos a ela relacionados. São freqüentes as abordagens metalingüísticas, com histórias falando de si mesmas e de seu fazer-se.

Espaço – pode ser um simples pano de fundo para personagens ou participante da dinâmica da ação narrativa. Percebe-se uma preocupação crescente em mostrar as relações existentes nesse espaço, a fim de conduzir à reflexão.

Nacionalismo – busca das origens para definir a brasilidade em suas multiplicidades culturais, com identificação não só sul-americana como africana. Delimitar uma nova maneira de ser no mundo, a brasileira.

Exemplaridade – deixa de ser usada somente com intenção pedagógica e passa a revelar a ambigüidade natural do ser humano, sem maniqueísmos. Tende a ser uma maneira de propor problemas a serem resolvidos e estimular a optar conscientemente nos momentos de agir.

Muitas dessas características apresentam-se como marcas pós-modernas e estão presentes na obra infantil de Ana Maria Machado, objeto de estudo do próximo capítulo.

Ler é caminhar num bosque exuberante captando uma nova impressão em cada folhagem. No processo de leitura entra em atividade os sentidos do corpo para a criação do imaginário e a movimentação das idéias. Mas, por que lemos? Muitos fatores respondem a essa pergunta, entretanto devemos focalizar com demasiada importância a necessidade de conhecer e construir a nossa própria identidade para responder esse questionamento.

É na infância que o homem entra em contato e participa do mundo da ficção, tendo em vista a descoberta da própria identidade, o que é fundamental para o crescimento. A busca do próprio reflexo perdido, como é o caso do "patinho feio", do conto de Hans Christian Andersen, e do eu lírico do poema Retrato, de Cecília Meireles ("Em que espelho ficou perdida a minha face?"), é um ideal que a criança conquista por meio da sua auto descoberta na leitura dos contos maravilhosos (os de fadas). Diante disso, a leitura dos clássicos infantis emerge como forma de superação de nossos medos e adversidades.
A literatura infantil ajuda-nos a compreender a questão da perda, de abandonos, de esquecimentos, de quem um dia foi significativo. O conto maravilhoso vai além de sua dimensão estética e permite que a criança encare as realidades dolorosas e domina medos instintivos.

Quando a criança lê uma obra, ela é capaz de analisar as personagens, de reconhecer as implicações sociais desses seres e de aprender a lidar com diversos problemas: traições, temores, infidelidades, rejeição, vingança, injustiça etc.

A literatura infantil, indubitavelmente, exerce a função de mediadora da vida do leitor, para que ele alcance sua identidade. O indivíduo busca no "conto de fadas" um significado para a sua existência e aplica essa significação no mundo real. Eis aí então um paralelo entre mundo imaginário e real, que possibilita a fuga do pragmatismo social pelo encantamento, pela magia, visando o ideal de felicidade.

Um levantamento da produção literária para crianças e jovens no que se refere à narrativa, nos primeiros anos dessa década, aponta para a retomada de clássicos universais, de clássicos brasileiros, de contos de fadas, de histórias exemplares, das mitologias grega, indígena e africana, além de temas voltados para as relações interpessoais e para o relato de vida e obra de artistas que escreveram seus nomes na história brasileira e universal.

A linhagem dos contos de fadas é uma das mais ricas. Desde as traduções, adaptações e recontos até os contos modernos passando pelas paródias, surgem a cada ano novas edições. Sem nunca terem saído totalmente do cenário, os contos de fadas são sempre relidos e revisitados

"A Literatura, como toda arte, é, antes de mais nada, recreação, jogo lúdico, no contexto infantil; e isso é bastante para torná-la imprescindível a qualquer programa educacional que vise a criança". (CARVALHO, 1987 p. 176).

A literatura mostra o mundo por dentro, pois a ela o que interessa não é apenas o fato sobre o qual se escreve, mas as formas de o homem pensar e sentir esse fato que o identifica com outros homens de tempos e lugares diversos.

A literatura torna-se uma experiência significati­va e gratifïcante para o seu leitor, pois auxilia na ordenação de seu mundo e na busca de respostas para suas infinitas interrogações a respeito de si mesmo, do outro e da realidade que o cerca.

A literatura apresenta-se não só como veículo de manifestação de cultura, mas também de ideologias, pois a literatura direcionada a criança, seduz porque comunica as vivências das crianças em uma mensagem essencialmente artística ampliada e enriquecida pela imaginação por ela manipulada para sugerir as virtualidades desta experiência.

A Literatura Infantil enriquece a imaginação da criança e sua visão da realidade de um modo específico.

A literatura, principalmente a infantil, tem uma tarefa fundamental a ser cumprida na sociedade em transformação, seja de servir como agente de formação seja no espontâneo convívio com o leitor/livro, no diálogo leitor/ texto estimulado pela escola. A formação da consciência de mundo das crianças e dos jovens, atribuídos a maior responsabilidade aos livros e a palavra escrita.

A criança e a literatura infantil com­partilham da mesma natureza, ambas são lúdicas, mágicas e questionadoras, e essas afinidades fazem com que seja a literatura infantil o mais poderoso aliado do professor e da criança na busca da compreensão do mundo e do ser humano.

A literatura infantil prepara a criança a ser um futuro apreciador das letras, sua linguagem é mais cuidada, vai lendo sempre com mais facilidade, se tornando um futuro homem culto. Neste sentido, é importante o papel atribuído à fantasia no processo de imaginação e da atividade criadora.

O trabalho com a literatura implica antes de tudo o envolvimento daquele que vai desenvolvê-la em sala de aula. Analisando o material de leitura a ser oferecido ao leitor.