Literatura e tradição com Mia Couto

Por Daiana S. Moura | 07/08/2011 | Literatura

Literatura e tradição com Mia Couto

O conto "Nas águas do tempo", de Mia Couto, gira em torno das personagens do avô e do neto, tendo a figura da mãe num breve momento. Não há a nomeação das personagens pelo autor, essa representação simboliza de uma forma geral, todos os avôs (figura do velho), as mães e os netos (geração) que fazem parte da cultura africana. A estória inicia com o passeio do avô e o neto pelo rio em um pequeno concho (canoa), durante esse passeio o avô orienta o neto sobre as tradições, o curso da água e a margem. O objetivo era instruí-lo, orientá-lo sobre o ciclo que envolvia o mundo visível e o mundo metafísico. No decorrer da narrativa, há mais duas idas ao rio e podemos perceber que apesar do menino (personagem) aparentar ser uma criança, ele mantém uma resistência ao sobrenatural. O avô que apesar de ser bem mais velho, ainda crê no maravilhoso, no que os olhos vêem quando se abrem para dentro para ver os sonhos. Apesar de toda a experiência e sabedoria que o seu avô lhe inspirava, o neto não conseguia enxergar e até teve que mentir, dizendo que compreendia a relação dos panos, dos outros que acenavam na outra margem. Na terceira e última ida ao lago, o menino passou a acreditar diante da atitude do avô, em ir até a direção da outra margem e depois ver o aceno do pano vermelho do avô ao lado da aparição. O belíssimo conto termina a partir da figura do neto como um homem, orientando o seu filho com as mesmas estórias. O final do conto é muito importante, porque o representa de uma forma geral. Nele percebemos implicitamente a relação do círculo da vida na cosmogonia africana, em que há relações intermitentes e a união de tudo o que representa a força vital.
O conto se passa no período pós - independência, o autor não faz referência a nenhuma cidade específica. O autor menciona um rio, um lago, sem nomeá-lo, provavelmente deve ser um local ficcional. A principal metáfora se refere à água e ao tempo: "Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem". A água e o tempo representam o círculo da vida , uma geração que segue e outra que retoma. No caso, a água simboliza o curso da vida que sempre flui em um sentido e o tempo seria o simbolismo do passar dos anos. Eles são irmãos gêmeos, porque se perpetua os ensinamentos e a tradição. O que foi ensinado a um antepassado, também é ensinado a uma nova geração. É o encontro do novo com o velho, não se pode contrariar o curso da água, porque em tudo há um sentido e um propósito. Essa metáfora retoma um trecho do conto na página 10, em que o avô diz ao neto: "-- Sempre em favor da água, nunca esqueça! ... Não se pode contrariar os espíritos que fluem". Como se o destino estivesse se construindo através da água e do tempo, não podendo mudar o curso, porque poderia trazer alguma desgraça.
Mia Couto utiliza muitos recursos lingüísticos que o caracteriza dentre os muitos escritores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Alguns desses recursos são os neologismos e a recriação de provérbios. Podemos chamar esses recursos lingüísticos como marca de linguagem de Mia Couto. A seguir alguns exemplos com relação aos neologismos empregados por Mia Couto: " --Voltamos antes de um agorinha, respondia." (p.9), "... o dia já crepusculando,..." (p.9), " A maneira como me apertava era de um cego desbengalado" (p.9), " A canoa solavanqueava, ensonada". (p.10), " ? Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades." (p.11). A criatividade desse autor Moçambicano é muito rica e o evidencia no meio literário por apresentar um estilo próprio. O autor além de utilizar expressões diferenciadas, também nos faz percorrer pelo país africano, através de alguns elementos da cultura africana. Ao lermos o conto podemos perceber as marcas da oralidade (Ex."... Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte..." / "E saltou para a margem, me roubando o peito no susto."), da força vital (Ex: "Não se pode contrariar os espíritos que fluem".), a força da palavra (Presentifica uma história, faz acontecer e que provem benção ou maldição), encontro do novo com o antigo, que no caso em especial seria o neto e o avô, a visão animista (A ligação do mundo visível com o invisível, dos espíritos, dos antepassados, da natureza e dos animais), um tempo cíclico em que todos os seres estão em estado de evolução, o respeito pelo mais velho (" Eu jamais assistira um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me:..."/ " Mas obedeci meu avô, acenando sem convicções"), a tarefa de contar estórias ( Ex. " Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, dizia minha mãe".) e a morte vista como uma passagem ( Ex. " E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer"). A energia vital se manifesta através da palavra, junto o gesto e a dança perpetuando a tradição, nos fragmentos a seguir podemos perceber a força da palavra e do gesto: " Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço..." / De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça. -- Cumprimenta também, você! ".
Em meio a tantas lutas, a tantas guerras, ainda há um canal de esperança, sempre aberta a uma nova estória. Ainda há a tarefa de contar estórias, ainda há a tradição e todo um ritual em volta do povo africano. É a união do imaginário e do real, que só pode ser esquecido ou amenizado diante das estórias a procura da paz. Mia Couto não esconde em nenhum momento a sua insatisfação em meio a guerras e a opressão trazida pelos colonizadores. Nesse conto, podemos notar outro simbolismo que nos remete a sangue, guerra, violência e ao mesmo tempo a paz almejada e alcançada. Nos fragmentos a seguir está subtendido o significado do sangue de milhares de ancestrais, que foram massacrados durante séculos e o significado da paz, futura ou perpétua; " ? Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo? Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos. ? Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?"(p.10)/ " E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor"(p.13). A representação dos panos brancos dos outros que acenam na outra margem, pode significar os ancestrais pedindo paz ou encorajamento as novas gerações a seguir adiante e ir mais além, ou a felicidade pelo fim das guerras.
Não podemos deixar de mencionar algumas semelhanças entre o conto "Nas águas do tempo" de Mia Couto e "A terceira margem do rio" de Guimarães Rosa. Romancista e contista mineiro de renome internacional, João Guimarães Rosa, através das suas obras, influenciou Luandino Vieira, que por sua vez influenciou Mia Couto. Ao lermos os dois contos, notamos que os protagonistas são um homem e um menino, sendo que em um conto o homem é avô e no outro é um pai, ambos tem como cenário um rio ou lago e a figura da canoa. A simbologia do rio, da água e o menino como adulto no final dos contos também são semelhantes, remetendo ao círculo da vida que sempre flui e começa outra vez, sem parar no tempo, voltando ao ponto de início. Outra questão significativa é com relação ao número de idas do avô com o neto ao rio, que foram três vezes. Três vezes a outra margem e a terceira margem do rio. A terceira margem significa a margem que desejamos, que queremos conquistar, mas que temos medo de enfrentar. Na última ida ao rio, o avô segue em direção a margem e a ultrapassa sem enfrentar barreiras. Por fim consegue fazer o neto enxergar os panos, é o fim das guerras, é a terceira margem alcançada que foi muitos anos desejada. Há apenas uma contradição, porque em um conto, o neto conseguiu compreender a mensagem e no outro o filho não conseguiu entender, se covardou e fugiu. O neto conseguiu ver além, ultrapassou as barreiras e descobriu um rio que nunca haveria de morrer. É vislumbrar os brancos panos da outra margem, vivenciar a paz depois de tantas lutas.