LIMITES ÉTICOS À INVESTIGAÇÃO POLICIAL

Por Fernanda Herbella | 01/12/2015 | Direito

                        LIMITES ÉTICOS À INVESTIGAÇÃO POLICIAL

                                                                       FERNANDA HERBELLA

Delegada de Polícia Civil

Professora da Academia de Polícia

Doutoranda em Direito pela PUC/SP

A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim, a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tornou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos oficiais de polícia e aos juízes instrutores; e, o que é pior, aí fazem o trabalho deles. Cada delito desencadeia uma onda de procura, de conjunturas, de informações, de indiscrições. Policiais e magistrados, de vigilantes se tornam vigiados pela equipe de voluntários prontos a apontar cada movimento, a interpretar cada gesto, a publicar cada palavra deles. As testemunhas são encurraladas como a lebre de cão de caça; depois, muitas vezes sondadas, sugestionadas, assalariadas. Os advogados são perseguidos pelos fotógrafos e pelos entrevistadores. E  muitas vezes, infelizmente, nem os magistrados logram opor a este frenesi a resistência, que requereria o exercício de seu mister austero. (CARNELUTTI, 2001).

                        No processo penal, o ideal da busca da verdade real não se apresenta como um caminho livre, sem formas a observar, sem respeito a direitos fundamentais, inclusive.

                        Há uma valoração a ser tomada em consideração, seja quanto às fases doutrinárias da persecução penal, seja quanto à conduta do autor da infração penal. Desse modo, aspectos axiológicos vigem durante todo o drama característico dos procedimentos criminais.

                        Nesse sentido, as condutas dos agentes encarregados de buscar a verdade dos fatos tem de ser balizada pelos ditames da Lei, da Moral e da Ética. Com relação a esta, adotamos o conceito do filósofo Roberto Romano: “Ética é o conjunto de valores- ou de contravalores- que, de tão repetidos, se tornam automáticos, praticados até de forma inconsciente”.  (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2009)

                        Logo, trata-se de atividade limitada.

                        As tarefas de investigar, acusar, defender e julgar não são “cheques em branco”, a serem preenchidos ao sabor das circunstâncias, à luz de holofotes ou mesmo à custa do aniquilamento moral do agente criminoso.

                        A fixação constitucional de direitos e garantias fundamentais aos suspeitos, indiciados, acusados ou réus criminais apresenta-se como limite à ação estatal, não se tolerando sejam ultrapassados, sob pretexto algum. Assim, são inaceitáveis atos investigatórios ilícitos ou imorais quanto aos meios empregados. Disso decorre que a verdade real, como ideal, deve ser buscada legitimamente, sem deturpações nem desvios de finalidade.

                        O objeto de investigação (contemporaneamente mais sujeito e menos objeto) tem de ser resguardado ante a atividade estatal, que deve estrita obediência ao  princípio do devido processo legal.

                        Incontáveis casos vêm a público, por meio da Imprensa, sem que os defensores dos investigados tenham conhecimento formal do que paira sobre seus clientes, o que se traduz numa afronta à paridade de armas, num atentado à Ética. Em porções, os passos de investigações policiais e de medidas cautelares são servidos e alimentam- muito mal, por vezes, e de maneira irresponsável- a opinião pública.

                        Nesse passo, frise-se,  não se defende, neste texto, a investigação secreta ou escondida, mas a oportuna e conveniente divulgação dos resultados investigativos  por intermédio de Assessorias de Comunicação Social dos órgãos envolvidos na persecutio criminis.

                        Outra hipótese de falta de observância de preceitos éticos é o caso da  invasiva medida cautelar de interceptação de telecomunicações: se o policial encarregado de transcrever teores  de conversas telefônicas, levianamente e/ou de modo parcial carregar suas impressões ao conteúdo falado e transcrito, injustiças e erros – irreparáveis, muitas vezes- acontecerão.

                        Em tal caso, se houver divulgação indevida, a condenação pública ocorrerá e, quando houver o pronunciamento judicial - lastreado na verdade real ou naquilo que se apurou a este título- não terá o condão de desfazer o juízo coletivo acerca da conduta imputada penalmente a outrem, caso imponha-se a absolvição.

                        Reforça esse entendimento a lição de Luiz Flávio Gomes:

“O mais moderno modo de destroçar (injustamente) um ser humano, e nisso entra a conivência da mídia, consiste na divulgação intempestiva e irresponsável do fato que se investiga, com a consequente divulgação dos nomes de todas as pessoas envolvidas: suspeito, testemunhas, vítimas etc. [...]”. (gomes< 1997)

                        A dignidade humana sobressai no âmbito penal e cristaliza-se como princípio de observância máxima pelos agentes públicos incumbidos de elucidar infrações penais.

                        Não se pode descurar desse aspecto nos dias atuais, em que meios tecnológicos altamente desenvolvidos mostram-se como tentações aos investigadores. No afã de esclarecer-se um crime, pode ocorrer a inobservância de deveres legais ou morais; mas, temos por não apropriado esse modus procedendi. Por isso, discordamos do pronunciamento doutrinário de Selma da Costa Pinheiro, que afirma:

“Dentre os argumentos usados por alguns doutrinadores em face da vedação absoluta das provas ilícitas no processo penal pro societate, colacionamos os mais relevantes para contrapô-los na sequência: [...] 4) violação do princípio da moralidade dos atos praticados pelo Estado [...] Salientamos que esses argumentos, por mais razoáveis que possam parecer, numa análise rápida e precipitada, não merecem prosperar. Senão, vejamos [...] 4) Sabe-se que uma organização criminosa é fortemente equipada, tanto na questão tática como material, e, às vezes, a única forma de desbaratá-la é por um meio ilícito (como por exemplo: uma interceptação telefônica sem autorização judicial, em razão do fator tempo que é decisivo na persecução penal desses criminosos). Dessa maneira, o Estado (Polícia) não estaria violando o princípio da moralidade; pelo contrário, estaria cumprindo o seu papel de protetor da sociedade”. (pinheiro, 2008)

                        Ora, in casu, e se estiver a autoridade laborando em erro, decorrente, por exemplo, de uma denunciação caluniosa? Na linha de raciocínio exposta, tudo seria possível em nome do enfrentamento ao crime organizado. E se uma mentira, cuidadosamente elaborada, deflagrar a quebra de sigilo de telecomunicação, expondo a esfera de privatividade de um inocente? Vê-se, pois, que a inobservância de preceitos, inclusive morais, precisa gerar o mesmo efeito da ilegalidade, qual seja, a anulação dos atos decorrentes da violação originária.

                        A propósito, destaca Fábio Aguiar Munhoz Soares:

“Um dos argumentos mais utilizados pelos que defendem a inadmissibilidade da prova ilícita no processo é o de que a ideia da admissibilidade da prova ilícita serviria como instrumento a esconder a precariedade do aparato policial estatal, que, dentre outros fatores, mas primordialmente por falta de investimento, deixa de atuar nos lindes da legalidade, produzindo assim prova ilícita. Admitir a prova ilícita no processo é, por via transversa, incentivar as equivocadas escolhas do Estado em suas políticas públicas de investimentos”.(SOARES, 2011)

                        Entendemos não ser possível transigir com valores éticos e mandamentos legais em nome da elucidação criminal. Como dito, concebemos o poder administrativo investigatório como algo limitado. Em suma, trata-se de um poder-dever.

                        Os meios de investigação policial postos à disposição dos agentes, bem assim as técnicas e os métodos utilizados submetem-se ao princípio constitucional da legalidade no âmbito da Administração Pública. Portanto, “a prova é a demonstração lógica da realidade, no processo, por meio dos instrumentos legalmente previstos [...]” (grifado pela autora). (NUCCI, 2011).

                        O trecho transcrito a seguir enfatiza, de modo lúcido, o perigo do atuar inconsequente na seara que se discute:

“Também vem a talhe a opinião de Ernani Fidelis dos Santos: ‘As provas feitas por  filmagem ou gravações, quando constituídas especialmente para fins probatórios, são, na verdade, documentos, em sua máxima expressão. Mas, se não o forem e vierem a ser reconhecidos como meio não imoral de prova, devem receber rigorosa análise crítica, tal a insegurança de veracidade com que podem ser produzidos. Grava-se uma brincadeira, uma leviandade e, até mesmo, mentira deslavada, para se conseguirem fins inteiramente estranhos ao processo’”.(AVOLIO, 2015)

                        Deve-se destacar que vozes autorizadas defendem a possibilidade de tornar relativos os direitos frente ao poder estatal de perseguir fatos criminais. No ponto, pronuncia-se Alexandre de Moraes: “Apontando a necessidade de relativização dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal afirma que um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas (STF-RT, 709/418)”.(MORAES, 1998)                      Entretanto, do mesmo Supremo Tribunal Federal extrai-se o contraponto:

“Em qualquer das duas fases as autoridades envolvidas no apuratório devem primar pelo estrito cumprimento da legalidade dos atos praticados, vez que a Lei Maior, no seu art. 5º, LVI, proíbe no processo as provas obtidas por meios ilícitos (processo no seu sentido lato, incluindo-se inquérito e procedimentos administrativos de mesmo cunho). Não é outro o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Basta ver os dizeres do Ministro Celso de Mello ao relatar o habeas corpus nº 7.371, que assim se manifestou: "O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial" (DJ de 04.10.96, p. 37.100)”. (LIMA, 1999)

                               Nota-se que há celeuma doutrinária e jurisprudencial sobre o tema. Mas, não se pode perder de vista que, ainda que se considere que os criminosos estão mais audaciosos em suas investidas e que seu poderio tem potencial de intimidar o aparato estatal, o primado da legalidade deve prevalecer. Se assim não for, a insegurança jurídica será instalada em nosso meio, propiciando-se a manutenção de um campo de violações de princípios, preceitos e normas.

                        A respeito, pronuncia-se Gilberto Thums:

“Ada Pellegrini Grinover acentua que o princípio da legalidade no Estado de Direito caracteriza-se pela ‘atuação da autoridade pública de acordo com a lei, segundo as formas prescritas pela lei e dentro dos limites postos pela lei, com o objetivo maior, que é o de impedir o arbítrio daqueles que exercem o poder’”. (THUMS, 2006)

                        As apurações ilegítimas, mormente as que contêm meios imorais de obtenção de provas, devem ser fulminadas, principalmente porque desatendem os fins públicos. Nesse sentido, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, leciona sobre as formas e consequências da violação moral:

“Para que o administrador pratique uma imoralidade administrativa, basta que empregue seus poderes funcionais com vistas a resultados divorciados do específico interesse público a que deveria atender. Por isso, além da hipótese de desvio de finalidade, poderá ocorrer imoralidade administrativa nas hipóteses de ausência de finalidade e de insuficiência grosseira da ação do administrador público, em referência  à finalidade que se proponha atender.

Portanto, para que o administrador vulnere este princípio, basta que administre mal os interesses públicos, o que poderá ocorrer basicamente de três modos: 1º através de atos com desvio da finalidade pública, para perseguir interesses que não são aqueles para os quais deve agir; 2º através de atos sem finalidade pública; 3º através de atos com deficiente finalidade pública, reveladores de uma ineficiência grosseria no trato dos interesses que lhe foram afetos.

Em termos operacionais, a utilização de meios ilegítimos, como a traição da finalidade, tipificará formas de má administração da coisa pública e caracterizará a imoralidade administrativa, trazendo, como consequência, a anulação do ato” (grifos do autor). (MOREIRA NETO, 2014)

                        Para que se guie corretamente, o policial-investigador tem de estar a par das normas que regem suas condutas, mesmo as éticas, que devem constar de um código próprio (caso existente), pois

“La institución policial vive primordialmente en un mundo de normas, no es un mundo casi exclusivamente técnico como otros organismos del Estado. Las normas de ese mundo son fundamentalmente jurídicas, y emanam del derecho positivo general y del especial de la institución. En ese derecho positivo genrral hay normas que pueden sistematizarse en un derecho de policía, fundado en el denominado ‘poder de policía’. De ese derecho positivo especial de la institución hay normas que pueden sistematizarse en un derecho orgânico (general o interno), un derecho del personal, un derecho disciplinario, y otras ramas. Sólo corresponde apuntar, aqui, someramente, essas vinculaciones de la institución com la esfera jurídica”. FENTANES, 1979)

                        Mesmo nos casos limítrofes, conforme doutrina mexicana,

“[...] hay decisiones situadas en una zona intermedia entre la ley y la moral, para cuya solución el agente ha de estar provisto de reglas de ética profesional, sin olvidar nunca que estás no pueden ser contrarias a las normas jurídicas que rigen la persecución de los delitos”. (grifos originais). ( Manuales de capacitacion de la  policia judicial, 1988).

                        Não é desnecessário lembrar, a cada instante, que o administrator público (o policial, inclusive) é submisso à lei. A propósito, trata-se de mandamento internacional. 

                        Essa é a matriz do Código de Conduta para os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas por meio da Resolução nº 34/169, de 17 de dezembro de 1979:

                                                                                                                     

Artigo 1º - Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem cumprir, a todo momento, o dever que a lei lhes impõe, servindo à sociedade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que a sua profissão requer.

Artigo 2º- No cumprimento do seu dever, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos fundamentais de todas as pessoas. (Zaccariotto, 2009)

                        Estas breves reflexões, - de tempos em que medidas cautelares de investigação (como a interceptação telefônica) deveriam ser a ultima ratio, mas são a primeira medida tomada (por exemplo, hoje é rara a realização de “campanas” por Investigadores de Polícia, preferindo-se a vigilância eletrônica de alvos) -, pretendem ser alerta aos policiais judiciários.

                        O alerta, no caso, é de que subjaz um sujeito de direitos na persecução penal, e este tem família e relações sociais estabelecidas e sofrerá o peso das mãos do Estado, não existindo mais aquela época “quando os meios de comunicação tinham pequeno alcance e as más sementes não eram disseminadas com a incrível rapidez de agora”. (Acquaviva, 2007)

                        Enfim, chegamos à conclusão de que obedecer os limites éticos impostos à atividade policial investigativa redundará em resultados positivos. Ou seja, proceder eticamente é atender ao princípio da eficiência administrativa.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Notas introdutórias à Ética Jurídica. São Paulo, Ltr, 2007. p. 51 e 52.

AVOLIO, Luiz Fernando Torquato. Provas ilícitas- Interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. São Paulo, RT, 2015. p. 268.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. 2ª ed. Campinas, Bookseller, 2001. p. 46-47.

FENTANES, Enrique. Compendio de Ciencia de la Policia. Buenos Aires, Editorial Policial/Policia Federal Argentina, 1979. p. 33.

GOMES, Luiz Flávio. Liberdade de Imprensa, Investigação Criminal e respeito à Pessoa. Boletim nº 58. Edição Especial. São Paulo, IBCCRIM, 1997.

LIMA, Arnaldo Siqueira de. Vícios do inquérito maculam a ação penal. Boletim nº 82. São Paulo, IBCCRIM, 1999. p.10.

Manuales de capacitacion de la policia judicial. México, Instituto Nacional de Ciencias Penales, 1988. p. 28.

MORAES, Alexandre de. Provas ilícitas e proteção aos direitos humanos fundamentais. Boletim nº 63. São Paulo, IBCCRIM, 1998. p. 13.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo- Parte  Introdutória -Parte Geral- Parte Especial. Rio de Janeiro, Forense, 2014. p 102-103.

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. 2ª ed. São Paulo, RT, 2011. p. 17.

O ESTADO DE S. PAULO. Edição de 24 de julho de 2009. p. A-7.

PINHEIRO, Selma da Costa. Provas ilícitas no processo penal à luz do princípio da proporcionalidade. Revista Criminal- Estudos sobre a atividade policial- Ano 02, vol. 3, abr/jun. São Paulo, Ed. Fiuza, 2008. p. 172-173.

SOARES, Fábio Aguiar Munhoz. Prova ilícita no processo- de acordo com a  nova reforma do Código de Processo Penal. Curitiba, Juruá, 2011. p. 68.

THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais penais – Tempo- Tecnologia- Dromologia- Garantismo. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006. p.115.

ZACCARIOTTO, José Pedro (Organizador). A Polícia Civil e a Defesa dos Direitos Humanos- Coletânea de Instrumentos Internacionais de Proteção e Promoção dos Direitos Humanos. São Paulo, Academia de Polícia, 2009. p. 165.

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