Liberdade de Expressão?

Por Jose de Ribamar Sousa Pereira | 17/01/2015 | Política

José de Ribamar Sousa Pereira*

Glória Maria Santiago Pereira*

ATENTADO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO?

O esvaziamento do sentido histórico e excesso de um racionalismo unitário recheado de coerções.

Convém ressaltar que, pelas considerações que se seguem, não se pretende fazer apologia de comportamento, de uma ideologia, de uma doutrina, de uma religião. Com isso, não se constitui em enaltecimento de qualquer ação ou atentado contra a vida. O evento de 7 de janeiro de 2015, que se configurou em ato terrorista, não se reveste de justificativa divina, mas de insensatez capital imersa num universalismo propalado, com miopia perante as diferenças. Mas, não podemos esvaziá-lo dos elementos sócio-históricos e culturais estruturantes, que precisam ser descortinadas, sem olvidar outras dimensões (política, econômica, jurídica, étnica, dentre outras). 

Trata-se de uma tarefa extremamente ousada e pretensiosa construir ilações, tomá-las como causa e fazer alguma afirmação simplista por se mostrar óbvia. A ação contra o jornal satírico Charlie Hebdo tem sido considerada, por unanimidade, um atentado à liberdade de expressão. Essa afirmação pode incorrer no esvaziamento do sentido histórico e excesso de um racionalismo unitário recheado de coerções. Tais coerções são fundadas na tradição do pensamento imerso na perspectiva sugestionada pelos interlocutores entre a concepção destes e a realidade dos fatos. O que é sugestionado pode ser apenas uma faceta estruturada sem a recorrência histórica, que se exime de uma discussão epistemológica.

Temos nos deparado com construções ideológicas, acríticas e, por consequência, desprovidas dos princípios epistemológicos das ciências[i] (em nosso problema, das ciências sociais). Precisamos nos afastar das experiências imediatas, das meras opiniões, do conhecimento falso (espontâneo e vulgar) resultante simplesmente das opiniões. Mas, como construir um conhecimento válido, racional e o mais próximo do que seria científico? Se desconhecemos as bases históricas do evento, estaremos desprovidas dos fundamentos e, portanto, não teremos como formular um conhecimento contra o senso comum. Podemos escolher o viés de uma base histórica sem digressões da própria história da França – relega-se à historiografia desse país -, que ressalte a questão das identidades.

Desde a segunda metade da década de 70, nos deparamos com discussões que reivindicam conflitos de identidade como manifestação residual dos históricos conflitos raciais (com alguns eventos que não esgotam o grande número de exemplos de conflitos: negros e brancos nos Estados Unidos da América, limpeza étnica na Guerra da Iugoslávia, o regime segregacionista sul-africano, o desenvolvimento da rebelião argelina, a partir de 1954, que contribuiu para a deterioração da República Francesa naquele período, dentre outros). Na década de 80 intensificam-se a tomada de consciência do processo de globalização. Paralela à tomada de consciência surgem teorias de apogeu do liberalismo e da democracia, que chegam profetizar o fim do Estado-nação e, as mais ousadas, o fim da história, no sentido hegeliano[ii] - o fim do processo histórico fundado nas tendências contrárias (FUKUYAMA, 1992).

Não se pretende refundar a teoria de HUNTINGTON[iii] (1996), uma vez que os critérios culturais e religiosos são preponderantes nos principais conflitos, ainda que, em última instância, a questão econômica conduz ao desfecho. Contudo, não podemos simplesmente apontar para esses critérios por serem observáveis e se mostrarem após a deflagração dos conflitos, pois estaríamos olvidando os elementos motivadores dos conflitos, com precedência temporal desses eventos. De forma concreta, reportando-nos à “ação terrorista”, em 7 de janeiro de 2015, ao Charlie, não convém aqui qualquer tentativa de justificar essa ação, mas não se deve olvidar elementos históricos e estruturantes que motivaram e continuarão motivando o confronto de sentidos geradores de conflitos, tais como: os ciclos migratórios na França; os efeitos desses ciclos; e as perspectivas sobre as políticas migratórias, particularmente, na primeira década do século XXI. Nesse contexto, configurou-se o peculiar retrato da questão mulçumana frente à política migratória. Temos a identidade religiosa de uma população que chega e se confrontar com um Estado laico e republicano. Esse Estado se movimenta, com alguma dose de conservadorismo, e tenta expressar anseios e descrenças de seus nacionais no processo global da migração – essa descrença se manifesta com a tomada de consciência dos nacionais franceses acerca da imigração (REIS, 1999)[iv].

A ação concretamente foi contra o Charlie, mas, simbolicamente, se constituiu numa ação de sentidos e posições políticas, que se expressam a partir das perspectivas distintas, que dificultam a absorção e convivência entre esses imigrantes e nativos. Assim, simbolicamente, temos o confronto entre a identidade nacional francesa e a identidade do imigrante (no caso particular, do imigrante adepto do islamismo). Não por acaso se constituiu em plataforma política a redução da taxa de estrangeiros na França (a relação entre população de estrangeiros e a população total na França).

Eventos isolados com repercussão internacional demonstraram-se efetivos na discriminação negativa por estigma da raça: (i) três meninas, em 1989, na cidade de Creuil, por deliberação dos seus professores, tiveram seus acessos à escola condicionados ao não uso dos véus que as identificavam como muçulmanas; (ii) em outubro de 2005, o então Ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, afirmou, em entrevista ao Jornal Le Monde, que os crimes violentos e vandalismo urbano fazem parte do cotidiano dos subúrbios da França; e (iii) a revolta de jovens dos subúrbios da França em outubro de 2005, por 19 (dezenove) noites consecutivas. O que existe em comum entre esses eventos é a base da motivação estruturante das ações: envolvem frações de grupos que se julgam vítimas de discriminação regida pelo pertencimento etnorracial. 

A construção social, com grande participação midiática, difunde o perigo islâmico e o medo, por meio de artigos sem nenhuma fundamentação, com rótulos e estereótipos formados sem a preocupação devida dos seus atores, que se revestem da blindagem de “especialistas”. Não raro depara-se com algumas ilações totalmente desprovidas de qualquer base teórica, que categorizam muçulmanos por patologias (são atores pagos por sites, tabloides, canais de televisão e outros).

Sem a pretensão de esgotar a estrutura lógica e racional, na busca da compreensão das ações atribuídas a qualquer grupo devemos nos afastar do imediatismo experienciado e das manifestações midiáticas. Essas manifestações são conduzidas pelas primeiras impressões, em geral, falaciosas: o que se mostra óbvio é considerar a ação em questão “um atentado à liberdade de expressão”, pois a ação foi direcionada, principalmente, aos atores das caricaturas de um certo profeta considerado pelos adeptos do islamismo o último profeta de Deus. Essa afirmação incorre no equívoco de tomar o efeito pela causa, que configura uma falácia causal, e evidencia o quão tênue é a linha entre liberdade de expressão e liberdade de insulto. Assim, nos resta algumas indagações. Precisamos realmente de algum abano ideológico na fogueira do estigma da discriminação negativa mútua? Podemos absorver, com indiferença, sátiras a qualquer profeta de qualquer religião? Não devemos nos reportar aos atentados (e matanças) às populações da África Subsaariana, em decorrência de conflitos étnicos, mas ocultos aos diferentes meios de comunicação? Diante dos elementos contemplados, o problema se resume ao propagado “atentado à liberdade de expressão”? As respostas todos já sabem.



[i] Os princípios das ciências podem ser entendidos como atos epistemológicos essenciais à prática científica: ruptura, construção e constatação, que se aplicam tanto às ciências naturais quanto às sociais. Nesse sentido, constrói-se uma ciência contra o senso comum, que rompe com o conhecimento falso e de opiniões e afasta-se das constatações dadas pela experiência imediata (BACHELARD, 1972: 14).

[ii] Ver detalhes em FUKUYAMA, F. O fim da história e o último homem. Tradução de Aulyde S. Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

[iii] O autor afirma que a principal fonte de conflitos não é mais a econômica e a ideológica, mas a cultural. Esta é a fronteira de divisões entre as civilizações.

[iv] A segunda metade da década de 70 se constituiu em referência da percepção dos franceses nativos quanto ao caráter permanente do afluxo de estrangeiro em território francês. Nesse mesmo período a legislação expressa a tomada de consciência dos nativos, a exemplo da Circular de 5 de julho de 1974, que estabelecia o fim da imigração de trabalho na França, colocando na ilegalidade parcela significativa dos imigrantes (ver detalhes em REIS, R. (1999). Políticas de nacionalidade e políticas de imigração na França. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol 14 nº 39. Disponível em: <  file:///C:/Cursos%20Di%C3%A1logos/Politicas%20DE%20NACIONALIDADE%20E%20POL%C3%8DTICAS%20DE%20Imigra%C3%A7%C3%A3o%20NA%20FRAN%C3%87A-online%20view-www.pdf.io.html>. Acesso em 10 de janeiro de 2015.

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