LIBERDADE DE EXPRESSÃO X DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Por tirciane chuvas aragão albuquerque | 18/06/2016 | Direito
LIBERDADE DE EXPRESSÃO X DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
O artigo trata de um conflito entre os direitos fundamentais da Liberdade de Expressão e da Dignidade da Pessoa Humana, frente ao caso em que o grupo de pagode ‘Só Samba’ lançou a música “Mulher”, cujo trecho do refrão é “mulher não presta e tem que apanhar”. A Organização Não Governamental (ONG) Themis, de defesa dos direitos da mulher, entrou com uma ação na justiça para proibir a divulgação da música, sob o fundamento de que ela ofende o direito das mulheres e incita a violência masculina.
A discussão gera dois posicionamentos. O primeiro defende a Liberdade da Pessoa Humana. Na avaliação deste caso, é necessário ocupar-se da relação entre comportamentos e manifestações de opiniões preconceituosas e discriminatórias, e a liberdade de expressão, confrontando dois direitos fundamentais: o da liberdade de expressão (e não-censura) e o de não sofrer discriminação (dignidade da pessoa humana).
A dignidade da pessoa humana é pedra fundamental da Constituição Federal, de onde irradiam os demais princípios e normas do Estado Democrático de Direito, estabelecendo logo em seu artigo 1º:
“(...) A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III – A dignidade da pessoa humana; (...)”.
Atente-se também para o artigo 5º, inciso X (CF):
“(...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (...)”.
Ainda no art. 5°, inciso XLI (CF), “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Já o artigo 3º, inciso IV (CF), define que o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil é a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A dignidade, portanto, é atributo pertencente a toda pessoa humana, sem exceção, decorrente de sua própria condição existencial. Nesse contexto, ainda que não haja uma definição exata do conceito de dignidade no ordenamento jurídico, é evidente que toda pessoa humana carrega em si tal atributo. O Ministro Eros Grau destaca:
“A dignidade da pessoa humana comparece, assim, na Constituição de 1988, duplamente: no art. 1º como princípio político constitucionalmente conformador (Canotilho); no art. 170, caput, como princípio constitucional impositivo (Canotilho) ou diretriz (Dworkin) - ou, ainda, direi eu, como norma-objeto (...).
(...)Observe-se, ademais, neste passo, que a dignidade da pessoa humana apenas restará plenamente assegurada se e enquanto viabilizado o acesso de todos não apenas às chamadas liberdades formais, mas, sobretudo, às liberdades reais”. (GRAU, 2004, pp. 180-181)
A jurisprudência brasileira tem admitido a responsabilização do autor ou de veículos de divulgação da atividade artística, quando esta é exercida fora dos limites constitucionais, a saber:
“(...) a) na apelação cível nº 16893/2000, a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em votação unânime, condenou a Sony MusicEntertainment (Brasil) Indústria e Comércio Ltda. ao pagamento de indenização de R$ 300.000,00 pela produção de fonograma contendo a música "Veja os Cabelos Dela", interpretada por Francisco Everardo Oliveira Silva, popularmente conhecido como "Tiririca", por considerar a composição musical ofensiva à etnia negra”. (Ação Civil Pública nº 2003.71.00.001233-0/RS, 2008, p. 14)
Em um caso idêntico, a empresa Furacão 2000 Produções Artística Ltda. foi condenada pela Justiça Federal ao pagamento de multa no valor de 500 mil reais pelo lançamento da música “Um Tapinha Não Dói”. A ação civil pública foi ajuizada pelo Ministério Público Federal e pela Themis – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em janeiro de 2003, por considerar que a música banaliza a violência contra a mulher, transmite uma visão preconceituosa contra a imagem da mesma, além de dividir as mulheres em boas ou más, conforme sua conduta sexual. Segue trecho da decisão:
“(...) IV - julgo procedente o pedido de condenação de Furação 2000 Produções
Artísticas Ltda. ao pagamento de indenização por dano moral difuso à mulher, que fixo em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), a ser revertida em favor do Fundo Federal de Defesa dos Direitos, a teor a teor do artigo 13 da Lei 7.347/85”. (Ação Civil Pública nº 2003.71.00.001233-0/RS, 2008, pp. 24-25)
O tipo de música em questão ofende a dignidade de todas as mulheres por incentivar à violência, tornarem-na justificável e reproduzirem o estigma de inferioridade ou subordinação em relação ao homem. Tal iniciativa constitui-se em um discurso do ódio (MEYER-PFLUG, p.97), que consiste na manifestação de ideias que incitam à discriminação em relação a determinados grupos, em sua maioria, as minorias. Esse discurso costuma se utilizar de palavras agressivas que provocam reações de indignação justificáveis. Palavras que, mesmo em uma sociedade democrática, não podem ser usadas indiscricionariamente.
A garantia de liberdade de expressão pressupõe a liberdade em harmonia com os demais valores protegidos pelo ordenamento jurídico. Assim, a proteção à liberdade de expressão não é absoluta. Se fosse, outros direitos igualmente assegurados pela Lei Fundamental seriam violados. O exercício dos direitos de um cidadão deve ser confrontado com os demais valores igualmente assegurados pela Constituição Federal. Trata-se de uma postura democrática, que tende a resguardar e harmonizar os interesses de segmentos distintos da sociedade.
O próprio texto constitucional de 1988 traz restrições à liberdade de expressão, que são “a vedação do anonimato, a proteção à imagem, à honra, à intimidade e à privacidade”. Ademais, “ao se interpretar um direito fundamental deve-se buscar sempre a interpretação que confira maior eficácia a eles” (PULIDO, 2003, apud MEYER-PFLUG, 2009, pp. 82-83).
A garantia constitucional da livre manifestação do pensamento, bem como a livre expressão da atividade, no caso, artística, não pode justificar a violação de outros valores constitucionais igualmente assegurados, de maneira que o dano eventualmente ocasionado deverá merecer a devida reparação.
No emblemático “Caso Ellwanger”, julgado (Habeas Corpus 82424) na Suprema Corte brasileira em 2003, o Supremo Tribunal Brasileiro confrontou os dois direitos fundamentais e considerou que a discriminação racial oriunda do exercício da liberdade de opinião compromete a idéia da igualdade em si, como um dos pilares do sistema democrático. O caso referia-se à publicação, distribuição e venda de escritos anti-semitas. O ministro Celso de Melo, um dos ministros que denegaram o habeas corpus, fundamentou sua decisão nos tratados e na proteção dos direitos humanos, bem como na necessidade do Poder Judiciário de controlar os abusos decorrentes do exercício da liberdade de expressão:
“O ministro entendeu que a proteção à liberdade de expressão não vai a ponto de exteriorizar propósitos criminosos, ´especialmente quando as expressões de ódio racial (...) transgridem, de modo inaceitável valores tutelados pela própria ordem constitucional`”. (MEYER-PFLUG, 2009, p. 201)
Já para o ministro Gilmar Mendes, “se a liberdade de opinião tivesse um valor absoluto e fosse intocável, inúmeros outros bens protegidos constitucionalmente seriam sacrificados”. Além disso, “relatou que a Constituição Federal (CF), em seu artigo 5, inciso XLII, tipifica o racismo como um crime inafiançável e imprescritível” (site do SFT).
Por outro lado, proibir a veiculação de uma música é cercear a liberdade, abrindo um precedente muito sério no Estado Democrático de Direito. Dispõe o artigo 5º, inciso IX (CF):
“(...) IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença(...)”.
A obra musical não discrimina ou incentiva a violência contra a mulher, limitando-se a demonstrar artisticamente a existência do masoquismo como manifestação do prazer feminino. Não se trata de incentivar a violência, mas de uma manifestação cultural das classes sociais menos favorecidas, e de trazer à tona a intimidade de cada ser que, a partir de seu próprio juízo de valor, pode optar pela forma de amor que melhor lhe aprouver.
De fato, a música é de mau gosto e pode ofender as mulheres, mas esse tipo de ofensa não é forte o suficiente para caracterizar a censura da obra, sua discriminação na esfera penal ou uma condenação na esfera cível. É preciso garantir a liberdade de expressão.
O limite à liberdade de expressão ou a criminalização do humor politicamente incorreto somente deve ocorrer em situações extremas em que fica nítida a intenção de menosprezar, desrepeitar e agredir (ainda que com humor), o que não é o caso.
Não há dúvida de que o humor costuma criar estereótipos. Brinca-se com a inteligência dos portugueses, a desonestidade dos advogados, a ganância dos judeus, a preguiça dos baianos, a virilidade dos gaúchos e assim por diante. É verdade que esses tipos de brincadeira têm limites, mas punir criminalmente, por exemplo, uma pessoa que fez uma piada politicamente incorreta é uma distância muito grande. Apenas os abusos extremos merecem o restabelecimento da censura ou uma resposta penal.
Assim, a censura é uma das armas mais poderosas dos regimes totalitários, no cercear da liberdade e na castração da criatividade. É condenável e intolerável o uso da censura por regimes democráticos, como o brasileiro.
É possível ainda que tal expressão artística seja caracterizada como discurso do ódio, mas ainda que seja, a perseguição penal ou a censura não são a melhor solução:
“Assegurar o direito de opiniões adversas, como o discurso do ódio, é um preço que se deve pagar para preservar o tão valioso valor da democracia. O direito de expressar todas as ideias tem por fundamento justamente o repúdio a qualquer forma de intolerância ou violação da dignidade humana”. (MEYER-PFLUG, 2009, p. 227)
Nos Estados Unidos, o discurso do ódio encontra-se no mundo das ideias e a garantia do princípio da isonomia é um dos pilares do ordenamento jurídico. A jurisprudência norte americana reflete tal postura em diversos exemplos. No caso “Brandenburg vs. Ohio”, a Suprema Corte Americana analisou o ato de um cidadão que, em um comício da Ku Klux Klan, discriminou os negros. A decisão protegeu o direito de manifestação da Ku Klux Klan, aplicando ao caso o critério do “perigo iminente e manifesto”:
“(...) por ser uma manifestação isolada, não seria capaz de representar um perigo real que justificasse uma restrição à liberdade de expressão. Analisou-se a probabilidade de essa manifestação vir a produzir um efetivo resultado, ou seja, uma ação concreta. Não pode o Estado censurar aquelas pessoas que manifestam favoráveis à violência, desde que tal exposição não tenha o condão de gerar uma ação concreta.” (MEYER-PFLUG, 2009, p. 141)
Assim como ocorre no Estados Unidos, o sensato seria permitir tais manifestações, para que ocorra um debate aberto e democrático, de modo que a tendência é que essas manifestações percam sua força e o seu valor. Que músicas desse tipo acabem tendo o destino de todos os similares de mau gosto: cair no esquecimento. Sem mencionar que a discussão acerca do tema beneficia somente o grupo Só Samba, que será destaque na mídia, tornando-se muito mais conhecido do que já é.
Ante o exposto, conclui-se que a liberdade de expressão, como um Direito não absoluto, não pode conduzir à intolerância ou à discriminação e ao preconceito. Tampouco deve afetar a dignidade da pessoa humana e a democracia, ou seja, os valores intrínsecos a uma sociedade pluralista. Os objetivos da preservação dos valores intrínsecos a uma sociedade pluralista, da proteção da dignidade humana e até mesmo da liberdade de expressão não se aplicam à intolerância discriminatória e preconceituosa, e à instigação à violência. Ante o desrespeito a valores basilares de nossa sociedade e à omissão dos órgãos fiscalizadores, cabe à Justiça brasileira conferir plena efetividade ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, fazendo cessar, imediatamente, as humilhações e constrangimentos praticados.
A garantia constitucional da livre manifestação do pensamento, bem como da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, não pode representar salvo-conduto para a violação de outros valores constitucionais igualmente assegurados. A suspensão da veiculação da música em questão não significa a restauração da censura, mas sim a afirmação de que a liberdade de expressão artística deve ser exercida em harmonia com os demais direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.
REFERÊNCIAS
- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 11. ed. Rio de Janeiro: Ed. Roma Vitor, 2007.
- BRASIL. Ministério Público Federal – RS. Ação Civil Pública nº 2003.71.00.001233-0/RS, 2008. Disponível em: ˂http://www.ufrgs.br/faced/direitoshumanos/sentencas/themis_sony.pdf˃. Acesso em: 23 abr. 2010.
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. Disponível em: ˂http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=99190&caixaBusca=N˃. Acesso em: 23 abr. 2010.
- GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, (Interpretação e Crítica). 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
- MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
- THE People vs. Larry Flynt. Direção de Milos Forman. Intérpretes: Woody Harrelson; Courtney Love; Edward Norton; Brett Harrelson e outros. Los Angeles: Columbia Pictures Corporation, 1996. DVD (120 min). Produzido por: Columbia.