Leitura Como Prática Social

Por Maurício Canuto | 05/06/2009 | Educação

Imagem: Leitores de Jornal

A humanidade, desde o seu surgimento, incorporou, como forma de comunicação e interação, a linguagem. Fluindo junto com a linguagem surgiram à escrita e a leitura. Atualmente, o termo leitura ampliou-se e novas maneiras e formas de ler fazem parte desse universo discursivo. Trata-se de ampliar uma concepção que toma a leitura como o domínio de um conjunto de habilidades que, segundo Kato (1985: 87), envolve estratégias de vários tipos, tais como a de encontrar parcelas significativas do texto, a de estabelecer relações de sentido, a de avaliar a consistência das informações extraídas, e a de inferir o significado pretendido pelo autor. Nesse caso, o texto detém um sentido anterior à leitura, cabendo, pois, ao leitor recuperá-lo. No entanto, a leitura exerce e continua tendo sua função social.

Historicamente, a leitura como função social tem seus registros com a introdução da leitura em voz alta. Segundo Manguel (1996), ler em voz alta era norma desde os primórdios da palavra escrita. Acreditava-se que o som fazia as palavras serem vividas com fervor por aqueles que a ouviam. O texto era escrito em rolos para ser ouvido por muitos, a leitura era sempre pública e o texto lido apenas por um, pois eram poucos os que sabiam ler e escrever. Relacionando essa prática com a sala de aula, podemos entender que em termos escolares, por exemplo, a prática da leitura em voz alta pode ter sua herança remontada, provavelmente, à Antiguidade, quando a leitura relacionava-se à performance oral. Até boa parte da Idade Média, a prática da leitura em voz alta persistiu.

A passagem da leitura em voz alta para a leitura silenciosa é tida por Chartier (1997), como a primeira revolução da leitura, uma vez que estabelece uma nova relação entre leitor e texto. A leitura silenciosa permitiu inclusive leituras simultâneas e mais reflexivas, pois era possível consultar mais de um livro ao mesmo tempo e esperar o tempo da reflexão, se assim se desejasse. Chartier aponta ainda mais duas outras revoluções da leitura: o crescimento da produção do livro e a transmissão eletrônica de texto. Com relação à primeira, durante o século XVIII, Alemanha, Inglaterra, França e Suíça assistiram à multiplicação e à transformação intensiva dos jornais, o triunfo dos livros de pequeno formato e a proliferação de sociedades de leitura, clubes do livro, bibliotecas de empréstimos que favoreceram um contato maior com os livros. Antes disso, o acesso aos livros era bastante restrito. Fora da igreja, era privilégio apenas da aristocracia.

Uma nova prática de leitura incorpora os campos semânticos, relacionando a leitura à transmissão eletrônica de textos. Nesse campo, o leitor possui maior flexibilidade, ou seja, nos textos fixos (livros) sua relação é clandestina, qualquer que seja sua interpretação ou análise, refere-se ao seu entendimento e no máximo pode ser registrada ou alocada nas margens em branco do texto. Enquanto no texto eletrônico o leitor tem a possibilidade de decompor e recompor o texto segundo suas conveniências.

Segundo Chartier, ler é:

"Apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, esta liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura". (CHARTIER, 1997, p. 10)

Não há um saber-ler único e exclusivo que sirva de parâmetro para avaliar a correção ou a incorreção dos diferenciados processos de leitura que podem ser desenvolvidos. A História da Leitura assinala que a questão fundamental não é o que é a leitura, mas onde e em que condições ela é realizada. Leríamos diferentemente se em nossas experiências de leitura estivessem implicadas outras condições sócio-históricas de produção de leitura, assim como lemos diferentemente um mesmo texto de acordo com o contexto em que a leitura acontece. Assim, na escola, a leitura transforma-se em processo enfadonho que não realiza nenhuma conexão com a vida dos alunos. De maneira geral, embora envolvido em um discurso que ressalta o prazer são incontáveis as narrativas utilizadas na escola para assinalar a alegria que causa a leitura. O aprendizado da leitura nas escolas brasileiras está, historicamente, envolto por práticas que reiteram o dever e a tarefa[1]. A metodologia enfatiza um ensino prescritivo, que prevê a memorização de regras gramaticais e ortográficas depreendidas do estudo do texto. Questões voltadas à análise do texto como produto de uma atividade humana, em que estão implicados sujeitos sociais que têm, no momento da produção, interesses específicos e uma avaliação do contexto em que seu texto se define, não são tocadas. O texto é, assim, tratado na escola como uma entidade autônoma, com um significado acabado, que não se subordina às reações do leitor e nem às condições de sua leitura. E, em alguns casos, remetem a verdades absolutas disseminadas por livros didáticos e o professor que considera ser o detentor do saber, mas essa discussão fica mais para frente.

Sendo assim, a leitura envolve-se, pois, com a nossa própria constituição como sujeitos sócio-históricos, ao mesmo tempo em que somos influenciados por toda a herança de práticas de leitura[2] que recebemos, à medida que as exercitamos, podemos estabelecer novas formas de ler que nascem da composição entre aquilo que já sabemos fazer em relação à leitura e aquilo que demanda o contexto em que ela é realizada, isto é, a leitura não é recriação, mas produção de sentidos, em que estão implicados aspectos sócio-históricos e um trabalho singular de construção de significados.

[1] Kato (1985), sugere que seja abandonada essa visão estruturalista para incorporar uma posição de interação.

[2] Orlandi (1996), considera que a história de leitura do leitor, remete a outras considerações junto ao texto lido, além de incorporar ou refutar interpretações feitas.


Este sub-tópico pertence à monografia "Leitura: um contraponto entre a fala do professor e o silenciamento da voz do aluno", de autoria de Maurício Canuto, entregue a Universidade Nove de Julho em 2008