Lei Federal

Por NERI P. CARNEIRO | 28/02/2008 | Literatura

A população dum bairro duma cidade vizinha já estava em pé de guerra: Falta de água!

Já tinham procurado todos os escritórios da companhia de abastecimento de água, da cidade e do estado em busca de solução para o crônico problema do bairro.

O pessoal do prefeitura já nem os podia ver, escondiam-se para não ter que aturar todas aquelas ...

Nada!

Nada aqui significa que coisa alguma se fazia pelos moradores do bairro.

Um bairro bastante populoso, diga-se de passagem. Tinha um nome até imponente, mas a população já o estava chamando de "Bairro Seco" Não só o nome era imponente, mas também sua localização: situava-se na parte mais alta da cidade... Birro nobre!

Talvez isso explicasse a ausência da encantada água encanada que insistia em não comparecer ao bairro. Às vezes, de algumas torneiras descia um lodo cor de ferrugem... mas água que é limpa... nada.

Abaixo assinados, requerimentos, ofícios, memorandos, cartas... Já tinham feito passeatas, atos públicos. Já tinham ocupado prédios, escritórios. Já tinham procurado até os veículos de comunicação. Sempre com a mesma reclamação: queriam que a água chegasse ao bairro! Não queriam só ter a conta para pagar, no final do mês. Queriam pagar pela água que consumissem . Mas nenhuma solução...

Simplesmente não chegava água no bairro.

As justificativas para isso eram as mais estapafúrdias possíveis.

Mas, com desculpas ou não, a água não chegava ao bairro. Só as contas de água!

Ninguém sabia contar quantas contas eram cobradas pala água ausente.

Entre tantas manifestações e ocupações da prefeitura, e de outros órgãos, a população do bairro se fez presente numa das sessões da Câmara de Vereadores.

Foi lá que aconteceu o caso em questão, que agora vou contar.

Eu não estava lá, mas quem me contou conta que quem lhe contou jura que é verdade! Pois quem contou para quem contou a quem me contou é merecedor de confiança.

Povo presente.

Galerias do plenário da casa das leis municipais completamente ocupadas pela população do bairro.

Era hora dos nobres edis, mostrarem serviço! Afinal, para quê tinham sido eleitos?

Mostrarem aos eleitores que os votos não tinham sido em vão. Que se água não havia não era por falta de ação contundente da Câmara. Antes, pelo contrário, não foram poucas as vezes que o assunto fora tratado pelos vereadores, na tribuna ou nos projetos de leis, exigindo providências imediatas por parte do executivo, omisso;  ou do judiciário, inoperante; ou da própria companhia de abastecimento de água, sem adjetivo adequado para sua classificação.

Foi assim que se deu uma discussão entre um oposicionista e um situacionista.

Todas as palavras desperdiçadas nessa discussão não constam das atas da câmara de vereadores, mas quem ouviu não esqueceu. Dizem que alguém gravou...!

No seu discurso, o vereador da oposição, dizia que era necessária uma solução para o crônico problema da falta de água que atingia a população do bairro.

— Conceda-me um aparte, nobre colega - pede a palavra o vereador da situação!

— Pois não, nobre adversário, mas seja breve!

— Só desejo esclarecê-lo sobre um aspecto do problema. Na verdade quero esclarecer qual é o verdadeiro problema que impede que a água chegue ao bairro em questão. Bairro onde reside um povo da minha mais alta consideração. Um povo que já demonstrou sua coragem de luta. Que já provou sua capacidade de organização. Um povo a quem aprendi a admirar. Um povo que...

— Desculpa, nobre adversário, mas o discurso é meu. O senhor pediu um aparte para falar sobre um problema... qual e a parte do problema que vossa senhoria pretende juntar?

— Ah!, sim! Pois não. Na realidade aquele povo, por quem, já disse, tenho a mais profunda admiração e respeito. Aliás já tenho visitado diversas residências de amigos que moram naquele bairro. Para todos tenho demonstrado minha mais profunda preocupação a respeito de seu grave problema. Inclusive já estive na rádio local para uma entrevista, onde dizia que...

— Nobre adversário. Seu aparte não é para discurso! Quero saber qual é o verdadeiro problema pelo qual a água não chega ao nosso povo. Se o senhor sabe qual é o problema e não o traz para ser discutido em plenário e nem apresenta projetos para resolvê-lo, o senhor, com todo respeito, está traindo seus eleitores daquele bairro. E digo mais: Se realmente o senhor sabe a causa daquela população não ter água e mesmo assim não apresentou projeto para sanar essa brutal agressão à população daquela região de nossa cidade, onde reside esta bela gente que hoje nos brinda com sua presença, tenha certeza, o senhor, que hoje mesmo apresentarei projeto de lei para sua cassação por ter traído esta casa de leis e ao povo que o elegeu...

— Me entenda nobre colega! O problema é sério e por isso não vou responder à sua ameaça. Não estamos aqui para trocarmos ameaças, mas para tentar resolver o problema da falta de água para nossos concidadãos. Por isso vou dizer em poucas palavras: todos sabemos que aquele bairro localiza-se na parte mais alta da cidade. Pois bem: o problema que impede a chegada da água àquela localidade, conforme me garantiu o superintendente regional da companhia de água, é a Lei da Gravidade...

— Mas que lei é essa da qual nunca ouvi falar? Qual foi o vereador imbecil que apresentou um projeto de lei que prejudica toda a população de um bairro? Mais imbecis ainda foram os vereadores que aprovaram essa lei. Pois façamos agora mesmo uma moção ao nobre presidente desta casa de leis. Façamos um projeto, conjunto, para derrubarmos essa ignóbil, desbaratada, estapafúrdia lei da Gravidade que tanto tem prejudicado nosso povo...

— Nobre colega não podemos derrubar essa lei... A lei da Gravidade não pode ser derrubada por nós, vereadores...

— Como não podemos, nobre adversário? Não foram os vereadores de outras gestões que a aprovaram? Pois nós, por amor a este povo, temos obrigação de derrubá-la...

— O senhor não me entendeu, nobre colega. Não temos poder sobre essa Lei. A Lei da Gravidade não pode ser derrubada por que é uma Lei Federal...

Bem, não sei se o vereador foi cassado ou só albergado, mas o povo daquele bairro continua sem água...

Neri de Paula Carneiro

Filósofo, Teólogo, Historiador

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