Lei Antifumo

Por José Ricardo Chagas | 24/08/2009 | Direito

Breve historicidade sobre o fumo e seu poder espiritual curativo

A origem temporal do ato casual se acender um cigarro e se aspirar a fumaça de folhas secas do tabaco, planta andina, é praticamente impossível de se determinar. O fumo fazia parte do cotidiano dos nativos da América e sua função estava muito mais relacionada aos sistemas de crenças destes povos do que ao prazer puro e simples do consumo.

O fumo no Brasil fazia parte dos rituais dos índios, o que, em relatos dos portugueses, marujos de Pedro Álvares Cabral, a fumaça obtida a partir da queima das folhas era considerada a materialização milagrosa do hálito dos pajés. Para o índio, o fumo é a planta sagrada e é a sua fumaça que cura as doenças, proporcionando o êxtase que dá poderes sobrenaturais, pondo o pajé em contato direto com os espíritos.

A magia e as propriedades consideradas curativas do fumo despertaram a atenção dos portugueses. A primeira plantação européia surge em 1518, quando o missionário espanhol Romano Pane enviou ao Imperador Carlos V sementes de tabaco que foram então cultivadas. A expansão mundial do uso se deve à interação de Portugal com sua colônia, o Brasil. Em 1550, na corte de Lisboa, eram patentes as descrições do poder curativo da planta trazida da colônia por Luís de Góis, um donatário que viera ao Brasil em 1530, na expedição de Martin Afonso de Souza.

A erva santa, ou erva das indias, capaz de curar dores de cabeça, males do estômago e úlceras cancerosas, em 1559 chegou às mãos da rainha Catarina de Médici por instruções do embaixador francês na corte de Portugal, Jean Nicot, pois Sua Majestade sofria crises de enxaqueca. A rainha começou a cheirar o pó e a pitar cigarros de tabaco, o que fora copiado por sua corte. Em seguida, o tabaco fora batizado cientificamente pelo botânico De la Champ como Herba Nicotiana, dando o nome do embaixador Nicot a todo o gênero de plantas ao qual o fumo pertence.

O combate mundial ao tabagismo – leis antifumo

No Brasil, o combate ao tabagismo se iniciou em 1996, com o advento da lei federal nº 9.294. Em 1941, o partido nazista já proibia o fumo em instituições oficiais e em 1990 a cidade americana de San Luis Obispo se tornou a primeira do mundo a instituir lei antitabagista, banindo o fumo de todos os espaços públicos, incluindo os bares e restaurantes.

Hoje o fumo é proibido em lugares fechados na maior parte dos países de primeiro mundo, exceção ao Japão, o que, porém, em algumas cidades multa o pedestre que andar na rua com um cigarro aceso. O fumo é proibido na Irlanda do Norte, primeiro país a proibir totalmente o fumo em locais públicos e na Inglaterra, inclusive nas embarcações que naveguem em suas águas territoriais. Exemplos seguidos pela Noruega, Espanha, Itália, Malta, Suécia, Escócia, Gales, Letônia e Lituânia; a Alemanha também seguiu a tendência mundial, com algumas exceções.

A Europa, por sua vez, como um todo, luta contra o tabagismo. A França não seria exceção, o que desde o ano de 2007 proibiu o fumo nos locais públicos fechados. Já os Estados Unidos, este timidamente inicia sua participação antitabagista. Há alguns dias o presidente Barack Obama assinou uma lei histórica para ampliar o controle do governo americano sobre a industria fumígena.

Da legislação antifumo federal

Desde 1996 que a lei nº. 9.294 já dispunha sobre as restrições ao uso de produtos fumígeros:

Art. 2°. É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente.

§ 1° Incluem-se nas disposições deste artigo as repartições públicas, os hospitais e postos de saúde, as salas de aula, as bibliotecas, os recintos de trabalho coletivo e as salas de teatro e cinema.

O decreto nº. 2.018 de 1º de outubro de 1996 regulamenta os conceitos de recinto coletivo e área devidamente isolada e destinada exclusivamente ao tabagismo.

Art. 2º. Para os efeitos deste Decreto são adotadas as seguintes definições:

I - RECINTO COLETIVO: local fechado destinado a permanente utilização simultânea por várias pessoas, tais como casas de espetáculos, bares, restaurantes e estabelecimentos similares. São excluídos do conceito os locais abertos ou ao ar livre, ainda que cercados ou de qualquer forma delimitados em seus contornos;

II - RECINTOS DE TRABALHO COLETIVO: as áreas fechadas, em qualquer local de trabalho, destinadas à utilização simultânea por várias pessoas que nela exerçam, de forma permanente, suas atividades;

III - AERONAVES E VEÍCULOS DE TRANSPORTE COLETIVO: aeronaves e veículos como tal definidos na legislação pertinente, utilizados no transporte de passageiros, mesmo sob forma não remunerada.

IV - ÁREA DEVIDAMENTE ISOLADA E DESTINADA EXCLUSIVAMENTE A ESSE FIM: a área que no recinto coletivo for exclusivamente destinada aos fumantes, separada da destinada aos não-fumantes por qualquer meio ou recurso eficiente que impeça a transposição da fumaça.

A lei n.º 8.069 de13 de julho de 1990 estatuiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, proibindo vender, fornecer ou entregar, à criança ou ao adolescente, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica.

Art. 81. É proibida a venda à criança ou ao adolescente de:

III - produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida.

Da imposição legislativa antifumo do Estado de São Paulo

A partir da zero hora do dia sete de agosto último, está proibido fumar em ambientes fechados de uso coletivo em todo o Estado de São Paulo. A lei antifumo, lei nº. 13.541, sancionada pelo governador José Serra há noventa dias, entrou em vigor e proíbe o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco.

Lei nº. 13.541

Artigo 1º - Esta lei estabelece normas de proteção à saúde e de responsabilidade por dano ao consumidor, nos termos do artigo 24, incisos V, VIII e XII, da Constituição Federal, para criação de ambientes de uso coletivo livres de produtos fumígeros.

Artigo 2º - Fica proibido no território do Estado de São Paulo, em ambientes de uso coletivo, públicos ou privados, o consumo de cigarros, cigarrilhas, charutos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco.

§ 1º - Aplica-se o disposto no "caput" deste artigo aos recintos de uso coletivo, total ou parcialmente fechados em qualquer dos seus lados por parede, divisória, teto ou telhado, ainda que provisórios, onde haja permanência ou circulação de pessoas.

§ 2º - Para os fins desta lei, a expressão "recintos de uso coletivo" compreende, dentre outros, os ambientes de trabalho, de estudo, de cultura, de culto religioso, de lazer, de esporte ou de entretenimento, áreas comuns de condomínios, casas de espetáculos, teatros, cinemas, bares, lanchonetes, boates, restaurantes, praças de alimentação, hotéis, pousadas, centros comerciais, bancos e similares, supermercados, açougues, padarias, farmácias e drogarias, repartições públicas, instituições de saúde, escolas, museus, bibliotecas, espaços de exposições, veículos públicos ou privados de transporte coletivo, viaturas oficiais de qualquer espécie e táxis.

Artigo 6º - Esta lei não se aplica:

I - aos locais de culto religioso em que o uso de produto fumígero faça parte do ritual.

Da Constituição Federal

Constituição Federal de 1988.

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

V - produção e consumo;

VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação.

Fundamentação legislativa – (in)Constitucionalidade

O fundamento da lei antifumo é nítido, diminuir a incidência de doenças pelo tabaco no ser humano, criando assim ambientes de uso coletivo públicos ou privados livres de tabaco. Segundo a ACT - Aliança de Controle do Tabagismo, a lei antifumo não é inconstitucional uma vez que amplia a proteção à saúde das pessoas, fumantes e não fumantes, e está de acordo com as recomendações da Convenção Quadro para Controle do Tabaco (CQCT), primeiro tratado internacional de saúde pública, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n5.658/2006. A CQCT está totalmente embasada em evidências científicas e uma de suas determinações é a adoção de locais fechados públicos e de trabalho 100% livres de fumo. Não há nível seguro de exposição à fumaça do tabaco.

Dos 4.800 elementos constituintes do cigarro, ao menos 250 são tóxicos, e 50 são cancerígenos. Segundo a ACT, a fumaça emitida pela ponta do cigarro é aproximadamente quatro vezes mais tóxica que a fumaça aspirada pelo filtro. O fumo passivo é uma questão de saúde pública e os dados são alarmantes: o tabagismo passivo é a terceira causa evitável de mortes no mundo, segundo fonte da OMS; pelo menos sete indivíduos não fumantes expostos involuntariamente à fumaça do tabaco morrem por dia no Brasil, dados do INCA - Instituto Nacional do Câncer em 2008; e pelo menos duzentos mil trabalhadores morrem, por ano, no mundo, pela exposição ao fumo passivo, segundo dados da OIT - Organização Internacional do Trabalho.

Em defesa da lei antifumo, advoga-se a tese de que a imposição de ambientes fechados livres do fumo não viola por maneira a livre iniciativa de fumar, porque a proibição é restrita apenas a locais fechados. Em verdade o direito de fumar não é absoluto e pode sofrer restrições, principalmente quando o objetivo é a garantia de direitos fundamentais, como o direito à vida e à saúde das pessoas.

Assim, o texto de lei paulistana proíbe o consumo de cigarro e similares em todos os espaços coletivos do Estado de São Paulo, sejam eles públicos ou privados, exceção às residências, o que para o legislador paulista Adriano Diogo trata-se de um absurdo jurídico, uma vez que não cabe ao estado membro legislar sobre essa matéria. Segundo o parlamentar é um tema de competência da União. No mesmo sentido é o parecer do jurista e parlamentar paulista Fernando Capez, o qual sinalizou pela ilegalidade e inconstitucionalidade da lei em comento.

Em verdade, o fumo deve ser visto como uma droga que causa dependência e malefícios muitos à saúde, tornando-se de certo uma questão de saúde pública. Porém vivemos numa democracia, em estado democrático de direito e a lei antifumo paulista agride o direito de liberdade consagrado constitucionalmente, invadindo esfera de competência privativa da União.

Sob a alegada intenção de proteção à saúde do não fumante, principal argumento utilizado pelos defensores da lei antifumígena, é que o fumo, por se tratar de substância nociva à saúde, teve seu uso restringido pelo governo do Estado de São Paulo. Entendimento diverso teve o governo capixaba, vetando projeto de lei similar ao paulista, entendendo por sua inconstitucionalidade, pois entraria em conflito com a lei federal 9.294/96 que, também, proíbe o fumo em locais coletivos, mas garante a existência de ambientes reservados aos fumantes e, ainda, que em tema de proteção à saúde a competência para estabelecer normas gerais seria da União.

Da exceção à religiosidade. A saúde e a religião como fundamentos contrapostos.

Unanimemente, o cigarro é visto como um problema de saúde pública, devendo de certo ser equiparado a uma epidemia, uma vez que custa ao Brasil mais de um bilhão de reais por ano, chegando a matar duzentas mil pessoas ao ano. Assim, o direito à vida é a base fundamental da legislação antitabagista. Destarte, não é o que se vislumbra na lei antifumo, onde religião, saúde e direito a vida são fundamentos contrasensuais.

A lei antifumo preceitua que a proibição de fumar não se aplica aos locais de culto religioso em que o uso de produto fumígeno faça parte do ritual. Assim, exclui do fundamento basilar desta legislação, qual seja, a saúde humana, o direito a vida, daqueles que se utilizam do fumo em cultos religiosos.

È no mínimo um contrasenso, uma vez que o fundamento da novel lei se baseia na proteção da saúde da pessoa humana, livre da incidência de doenças pelo fumo. Estariam os religiosos fumantes e fieis seguidores livres dessa incidência? Em contrapartida encontram-se outras religiões que reclamam isonomia legislativa, pois se respaldam nessas incongruências legais. É o caso da luta Rastafari, religião xamanica, que vem alcançando adeptos em todo o Brasil e que faz uso de substâncias psicoativas em seus cultos, como é o caso da ganja, cannabis sativa.

Na cultura Rastafari a utilização da maconha é algo de fundamental importância no culto, é o contato com Jah (Deus). Semelhante ao rastafariano, é o culto realizado pela união do vegetal (UDV) e pelo Santo Daime, ambas religiões xamânicas, onde se faz uso de uma substância psicoativa em seus cultos, a ayahuasca, que significa cipó dos espíritos.Segundo estudos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA - Universidade Federal da Bahia, todas as religiões, cada qual a seu modo, buscam conectar-se com o divino.

Conclusão

Iniciando um raciocínio conclusivo, hei de clarear e patentear que não comungo com nenhuma seita ou religião que faça uso de substância alucinógena ou mesmo fumíngena, não sendo sequer simpatizante de qualquer de seus métodos religiosos.

Data vênia, a presente lei antifumo tem o cunho de promover a dignidade da pessoa humana, garantindo em parte a manutenção da saúde pública, não fosse o contrasenso excepcional aos cultos religiosos que do fumo fazem uso. A Constituição Federal em seu art. 5º, caput, preceitua que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.Ainda, no art. 5º, VIII, preceitua a igualdade de credo religioso. Assim, incongruente e dissociado dos mandamentos constitucionais está a novel lei em detrimento a permissão de uso fumígeno em cultos religiosos, bem como todo o ordenamento liberatório/proibitivo do uso de substancias psicoativas nos demais cultos religiosos.

Bibliografia

ABIFUMO - Associação Brasileira da Indústria do Fumo. Disponível em: <www.abifumo.org.br>

CF - Constituição Federal de 1988

Decreto nº. 2.018 de 1º de outubro de 1996

Folha de São Paulo. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp>

HOMSI, Clarissa; CARVALHO, Adriana. ACT - Aliança de Controle do Tabagismo. Disponível em: <www.actbr.org.br>

Jornal Estadão. Disponível em: <http://www.estadao.com.br.>

Jornal Gazeta Mercantil. Disponível em: <www.gazeta.com.br>

Lei nº. 9.294 de 15 de julho de 1996

Lei n.º 8.069 de13 de julho de 1990

Lei nº. 13.541 de 7 de maio de 2009

Revista Metrópole. Disponível em: <www.revistametropole.com.br>

Tabacofreecenter. Disponível em: <www.tobaccofreecenter.org>

Agosto, 2009.

José Ricardo Chagas