LEGITIMIDADE DO SISTEMA DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICABILIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO

Por Railson do Nascimento Silva | 19/08/2014 | Direito

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS IV CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO RAILSON DO NASCIMENTO SILVA PAULO DANIEL SANTOS SILVA LEGITIMIDADE DO SISTEMA DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICABILIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO Jacobina 2014 RAILSON DO NASCIMENTO SILVA PAULO DANIEL SANTOS SILVA LEGITIMIDADE DO SISTEMA DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICABILIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito. Orientador: Prof. Rodrigo Guerra Jacobina 2014 TERMO DE APROVAÇÃO RAILSON DO NASCIMENTO SILVA PAULO DANIEL SANTOS SILVA LEGITIMIDADE DO SISTEMA DE JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA APLICABILIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca examinadora: Nome:______________________________________________________________ Titulação e instituição:____________________________________________________ Nome:______________________________________________________________ Titulação e instituição: ___________________________________________________ Nome:______________________________________________________________ Titulação e instituição:___________________________________________________ Jacobina ____/_____/ 2014. Dedico este trabalho aos meus amados pais José Evangelista e Luciene e ao meu irmão Robson Nascimento. (Railson do Nascimento Silva) Este trabalho é dedicado à minha querida família. (Paulo Daniel S. da Silva) AGRADECIMENTOS Agradeço ao Deus vivo, primeiramente, por ter me iluminado e guiado na sua magnitude, durante todos esses anos de minha existência. Aos meus pais José e Luciene, pilares que me sustentaram e me fizeram crescer e que durante toda minha vida acadêmica nunca se opuseram em prestar uma palavra de incentivo para que conseguisse atingir todas as minhas metas. Ao Professor-orientador Rodrigo Guerra, que foi, indubitavelmente, elemento fundamental na execução desta monografia. Além de todos os colegas de classe, que durante estes quase cinco anos caminharam junto comigo na busca incessante da construção do saber. E por fim, agradeço a todos que de algum modo auxiliaram para que este trabalho monográfico fosse materializado. (Railson do Nascimento Silva) Depois de longos 5 anos, tenho a satisfação em agradecer às pessoas que estiveram e estão sempre ao meu lado, mormente à minha mãe, mulher a quem eu admiro muito, as minha irmãs, irmão, padrasto, cunhado e amigos, pessoas a que tenho muito carinho. Neste momento não poderia esquecer e deixar de agradecer à minha querida esposa, minha companheira, pela necessária compreensão e respeito, e por me dar o maior dos presentes, meu filho Alexandre. Por fim, agradeço aos meus colegas, professores, funcionários do campus IV da UNEB e ao Professor-orientador, pela imprescindível contribuição na construção deste trabalho. (Paulo Daniel S. da Silva) “É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar o modelo de Justiça Restaurativa na perspectiva de ser o mesmo inserido no ordenamento jurídico brasileiro e praticado pelos órgãos do Poder Judiciário. Contextualiza o surgimento da Justiça Restaurativa a partir de um delineamento acerca da evolução do sistema punitivo/retributivo e sua crise de legitimidade. Dessa forma, a superação do paradigma retributivo pelo paradigma restaurativo, fundamenta-se na deslegitimação daquele. É defendido aqui a implementação dessa nova modalidade de resolução de conflitos abordando-se seus princípios e características e modelos de aplicação. Trabalha-se com a tese de que para que o modelo restaurativo seja implantado não se exige a abolição do atual sistema reconhecendo-se suas virtudes, principalmente quando limita o poder de punir do Estado e defende as garantias constitucionais. Expõe, por fim, que mesmo diante de barreiras culturais o ideal pautado na restauração do dano, através da participação direta do ofensor, da vítima e da comunidade é possível no Brasil. Palavras-chave: Sistema Restaurativo; Sistema Retributivo; Conflitos, Conciliação Voluntariedade. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 8 1. REFERENCIAIS HISTÓRICOS QUE NORTEIAM O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA 10 2. CONCEITO, DISTINÇÃO, PRINCÍPIOS, CARACTERÍSTICAS E MODELOS DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA. 19 3. A CONTRIBUIÇÃO DO MODELO RESTAURATIVO NO ROMPIMENTO DO CICLO DE CRIMINALIDADE E AS SUAS POSSÍVEIS FALHAS DE APLICABILIDADE 41 CONCLUSÃO..........................................................................................................................54 REFERÊNCIAS 56 INTRODUÇÃO Diante das diversas tentativas frustradas em aperfeiçoar o sistema de atuação punitivista estatal que se baseia no modelo retributivo de aplicação de pena, emerge um novo ideal pautado na restauração do dano, através da participação direta do ofensor, da vítima e da comunidade. O histórico de intervenção estatal na resolução de conflitos caracteriza-se de modo global pelo uso da força e da violência, uma constância de privação de direitos e garantias fundamentais paradoxais ao ideal de humanidade. A tortura físico-psíquica como resposta ao conflito gerado na sociedade inaugura uma série de máculas que se perpetuaram no histórico do sistema criminal e que acaba a desaguar na mesma fonte, porém em novo cenário, onde a prática do encarceramento humano assume o papel central na resolução de conflitos sem deixar de lado a proposta inicial de sofrimento físico-psíquico. É diante de uma concepção mundial de primazia na defesa dos Direitos Humanos que o sistema criminal punitivista retributivo perde força e dá lugar a uma intensa busca por modelos alternativos de resolução de conflitos. Em especial a mediação e a conciliação e posteriormente o que ficou conhecido por modelo restaurativo, despontam como possíveis saneadores dos problemas enfrentados no atual panorama. O modelo restaurativo de justiça será analisado a partir da concepção de um sistema alternativo, ou complementar de resolução de conflitos a ser inserido no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de uma nova percepção de Justiça, que tem por finalidade reparar a relação da vítima com o infrator, sem a tradicional intervenção retributiva do Estado. A Justiça Restaurativa é uma modalidade de resposta ao crime distinta da resposta dada pela Justiça Criminal tradicional, porque entre as suas virtudes está o fato de buscar resolver o problema do ilícito penal considerando suas causas e todas as suas consequências. Nesse novo conceito, é dada à vítima especial atenção, considerando suas opiniões, e ao infrator o estímulo de reparar os danos decorrentes do ilícito, sejam esses morais, materiais ou emocionais. Analisa-se aqui, de maneira crítica, como não poderia deixar de ser, o sistema de justiça aplicado no Brasil a partir do momento do cometimento de um crime, com a forma de punir do Estado e as consequências nefastas decorrentes desse modelo de punição, que atinge não apenas ao infrator, mas toda a sociedade. Nesse momento, abordar-se-á, ainda, a ineficiência do atual sistema de justiça criminal frente ao objetivo que lhe é proposto, qual seja promover o controle social das condutas e assim reduzir os altos índices de criminalidade e reincidência. Resta imperioso construir um conceito de Justiça Restaurativa, tratar de seus valores, princípios, bem como analisar como funciona todo o procedimento restaurativo. Registrando-se, por oportuno, que embora haja um esboço traçado a cerca de seus contornos básicos, os estudiosos não conseguiram chegar a um consenso quanto ao seu específico significado. Para Zerh: Justiça Restaurativa é um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm interesse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível (ZEHR; 2012, p.49). São diversos os benefícios apontados pelo modelo proposto inicialmente na Nova Zelândia, no entanto, não se pode negar existe uma problemática política e filosófica na implementação da Justiça Restaurativa no Brasil, no decorrer deste trabalho serão analisadas estas dificuldades e críticas, partindo-se da idéia de que o direito penal, no atual Sistema, não é aplicado como ultima ratio, sendo aplicado irrestritamente como o único instrumento de resolução de conflitos. Sem contar a barreira cultural, onde está impregnado o sentido de vingança, de punitivismo, onde a pena é vista como um fim em si mesmo, como o é para grande parte da população, além de todo um aparato normativo e da adoção do princípio da indisponibilidade da ação penal.   1. REFERENCIAIS HISTÓRICOS QUE NORTEIAM O SURGIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA A penalização do indivíduo é a consequência direta da violação de um direito tutelado pelo ordenamento pátrio. Uma vez praticado um fato criminoso, o Estado intervém com uma sanção retributiva, justificada em si mesmo pelo formalismo dos códigos e normas jurídicas. No entanto, mesmo diante de uma suposta segurança jurídica proposta por tal modelo, o atual panorama denuncia um declínio de eficiência na redução da criminalidade e reincidência e um paradoxal avanço na violação dos direitos humanos, nascendo daí a necessidade de modificar as peças do jogo para adequá-lo aos ideais do Estado Constitucional de Direito. Conforme salientado por Luigi Ferrajoli, embora o estado tenha o dever/poder de aplicar a sanção àquele que, violando o ordenamento jurídico penal, praticou determinada infração, a pena a ser aplicada deverá observar os princípios expressos, ou mesmo implícitos, previstos em nossa Constituição Federal. (FERRAJOLI, 2006, p.310 apud GRECO, 2011, p. 469). A gênese do ato de punir remonta á origem da humanidade. Os escritos bíblicos apontam que a primeira sanção foi aplicada ainda no paraíso, quando Eva, induzida pela serpente, comeu o fruto proibido e o ofereceu ao seu companheiro (infração), logo em seguida foram expulsos do Jardim Sagrado e condenados a viverem em pecado pelo resto das suas vidas (pena). (GRECO, 2011). Com o surgimento das primeiras comunidades, vieram também as primeiras formas de punição pré-estabelecidas por convenções e/ou imposição de um monarca ou de uma divindade suprema. É neste contexto que se formam as primeiras legislações que se tem registro, tais como a Lei dos hebreus, o Código de Hamurabi e de Manu. (GRECO, 2011). Ataliba Nogueira em sua obra “Pena sem prisão” aponta que os romanos possuíam uma forma própria de tratar o Direito Penal em seu caráter penalizador: “morte simples (pela mão do lictor para o cidadão romano e pela do carrasco para o escravo), mutilações, esquartejamento, enterramento (para os Vestais), suplícios combinados com jogos do circo, com os trabalhos forçados: ad molem, ad metallum, nas minas, nas lataniae, laturnae, lapicidinae (imensas e profundas pedreiras, destinadas principalmente aos prisioneiros de guerra). Havia também a perda do direito de cidade, a infâmia, o exílio (a intedictio aqua et igni tornava impossível a vida do condenado). Os cidadãos de classes inferiores e, em particular, os escravos, eram submetidos à tortura e a toda sorte de castigos corporais” (NOGUEIRA, 1956, p.22 apud GRECO, 2011, p. 471). Denota-se de tal citação, que desde a Antiguidade a pena é pautada no sofrimento corporal e se desenrolou deste modo até meados do século XVIII, momento em que o teocentrismo da sociedade pré-moderna cede espaço ao antropocentrismo com a valorização da razão humana, interferindo em diversas áreas do conhecimento humano. A razão tem autonomia nesse novo horizonte que se avizinha, e o projeto tem por fim criar a “ordem”, com o desenvolvimento de formas racionais de organização social. Razão e ordem unem-se numa relação espiral na modernidade, estando no centro da espiral a razão e no extremo oposto a ordem, amarrando e entrelaçando o conhecimento e as ciências humanas. E compreende-se como ordem a regularidade e estabilidade dos atos humanos (...). (SALIBA, 2009). Conforme pontuado, a partir do Século das Luzes, ocorreu uma intensa onda de renovação em diversos ramos da sociedade e não foi diferente no que diz respeito ao direito e à aplicação de pena. Fator marcante desta época foi a incessante busca pela segurança e estabilidade da sociedade moderna, que uma vez submetida à razão humana, encontraram no positivismo jurídico a forma de conciliar a ordem e o progresso. O positivismo encontra, a partir desse momento, o seu campo de desenvolvimento e com ele outras expressões invadiram o cenário jurídico moderno, sendo eles a constituição do Estado e a afirmação do modelo capitalista, e a nação, como fonte de segurança e estabilidade territoriais (SALIBA, 2009). O Direito, agora expressado pelo prisma da positivação e justificado pela necessidade de proteção do modelo capitalista de mercado, foi teto e base de controle e de “normalização” da sociedade disciplinar (Foucault, 2003), seu objetivo central volta-se para a “docilização dos corpos”, junto às instituições disciplinares, e na “sociedade disciplinar”, fabricando submissos e exercitados, corpos dóceis. (FOUCAULT, 2004, p. 118-9 apud SALIBA, 2009, p. 36). A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de instituições “especializadas” (as penitenciárias, ou as casas de correção do século XIX) seja de instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado (as casas de educação e os hospitais), (...) seja enfim de aparelhos estatais que têm função não exclusiva, mas principalmente fazer reinar a disciplina na escala de uma sociedade (a polícia). A partir dessa nova roupagem que emerge com a modernidade, o Direito, e em específico o Direito penal, não está mais atrelada à falta moral ou religiosa, sua fonte agora está no poder político da sociedade e não na lei natural. (SALIBA, 2009). As características mais significativas do Estado Absolutista eram a identidade entre o soberano e o Estado, a unidade entre a moral e o Direito, entre o Estado e a religião, além da metafísica afirmação de que o poder do soberano lhe era concedido diretamente por Deus. A teoria do Direito divino pertence a um período em que não somente a religião, mas também a teologia e a política confundiam-se entre si, em que até para fins utilitários era obrigatório encontrar-se um fundamento religioso se se pretendesse ter aceitação. Na pessoa do rei concentrava-se não só o Estado, mas também todo o poder legal e de justiça. A idéia que então se tinha da pena era a de ser um castigo com o qual se expiava o mal (pecado) cometido. De certa forma, no regime do Estado absolutista, impunha-se uma pena a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado, contra o próprio Deus. (BITENCOURT, 2004). O Direito ganha importância central na modernidade, e o Direito Penal passa a ser determinante para fixar os projetos deste período, vez que se encontra embutido na espiral da razão e da ordem com a função de promover o controle social e a dominação. Diante disso, a pena deixa de ser uma forma de martírio voltada diretamente ao castigo da integridade físico-psíquica do homem de alto teor reflexivo, onde o pecado é o mal central a ser rebatido e, a partir desse momento, passa a assumir uma postura de privação de bens, de direito e de liberdade, justificada pela legalidade imposta pelo positivismo, medida esta necessária à preservação e ascensão do modelo capitalista. (SALIBA, 2009, p.38). Posteriormente, a humanidade assiste a chegada daquilo que se denominou de pós-modernidade, e daí mais uma transição passa a ocorrer nos mais distintos ramos da ciência e do conhecimento humano. Agora a mudança ganha uma maior amplitude e generalidade, uma série de acontecimentos e comportamentos distintos tomam conta do cenário mundial e traz à tona a formação de uma nova concepção, um novo paradigma. “Há uma mudança em curso, a ser notada no dia-a-dia, e o retorno àqueles valores da modernidade não é possível, tornando-se necessária a construção de um novo contrato de cidadania, amparado em direitos sociais recíprocos entre cidadãos e Estados e num novo modelo de sistema penal. A modernidade redesenhou os caminhos da humanidade, com fundamental importância ao Direito positivado, consagrando-o como valor supremo para proteção dos interesses sociais em preferência ao Direito natural e, em alguns momentos, aos Direitos humanos. A pós-modernidade ainda desenha seus contornos, e o novo Direito, nas palavras de Young, tem de privilegiar um novo contrato de cidadania.” (SALIBA, 2009, p.39). O mundo ocidental contemporâneo afastou-se ainda mais do modelo de pena baseado na violação da integridade física e mental e agarrou-se á máxima da dignidade da pessoa humana. Diversos pactos e acordos internacionais são definidos com o fito de afastar o tratamento desumano e degradante. O homem passa a ser visto como ser social digno de proteção jurídica e tem seus valores fundamentais elencados como invioláveis pelo Estado. (GRECO, 2011). Descreve bem essa mudança de mentalidade, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada em 1948 pela Assembléia-Geral das Nações Unidas, que diante das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial viu a necessidade de positivar uma idealização de proteção do direito à vida como bem primordial. E guardou o seguinte enfoque: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; (...) Considerando que é essencial a protecção dos direitos do homem através de um regime de direito, para que o homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão; (...) Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declararam resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. Apesar de a história demonstrar uma aparente evolução na forma de positivar o direito e eleger os bens tutelados, a conclusão que se chega é que o sistema de penalização não caminha em passos gradativos. Resta evidente em especial, no atual cenário criminal brasileiro, que a sociedade civil convive amedrontada frente aos altos índices de criminalidade e violência, e clamando às autoridades públicas por medidas emergenciais e de alta rigidez, acabam justificando naturalmente um retrocesso no modus operandi de penalização do indivíduo, uma vez que atropelando direitos e garantias fundamentais positivados constitucionalmente, o Estado regride ao modelo esboçado no início da história das sanções. O percurso traçado entre as penas corporais e de morte até a instituição da pena privativa de liberdade como resposta central para o crime foi longo e cruel. Toda autoridade possui Ferrajoli ao afirmar que “a história das penas é mais sangrenta que a história dos crimes”. (FERRAJOLI, 2005, p.365). Definitivamente, a partir do século XIX, as penitenciárias e casas de detenção assumem o papel de depósito para onde deve ser varrido todo o “excedente humano”, dispensável à movimentação do capital. E é a partir dessa mudança de paradigma que o direito constrói seus mecanismos disciplinares de promoção da ordem pública pela contenção das liberdades individuais e violação dos direitos e garantias fundamentais. “Na passagem dos dois séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz ‘igual’, um aparelho judiciário que se pretende ‘autônomo’, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, ‘pena das sociedades civilizadas’”. (FOUCAULT, 1987, p. 195 apud PALLAMOLLA, 2009, p.30) No entanto, desde muito cedo o sistema prisional já enfrentou numerosas criticas, pois a notoriedade do fracasso deste modelo acompanha-o desde o seu nascimento. Pouco tempo após a sua implementação, eclodiram diversos movimentos clamando pela sua reformulação, em função dos males que trazia aos seus usuários e à comunidade. A partir do reconhecimento das falhas encontradas no sistema prisional, o Direito penal passa a conhecer ondas em busca de alternativas à prisão. “As prisões não reduzem a taxa de criminalidade – mesmo que se aumente, multiplique ou transforme as prisões, a criminalidade permanece a mesma ou aumenta; a detenção provoca reincidência; a prisão fabrica delinquentes em razão das condições a que submete os apenados; a prisão favorece a organização de delinquentes solidários entre si e hierarquizados; os que são libertados da prisão estão condenados à reincidência, devido às condições de vigilância a que são submetidos; por fim, a prisão fabrica, indiretamente, delinquência, pois faz as famílias dos apenados caíram na miséria”. (FOUCAULT, 1987, p. 195 apud PALLAMOLLA, 2009, p.31). Não é apenas difícil a recuperação no cárcere ou pelo cárcere. O propósito resso¬cializador mostra-se, simplesmente incompatível com a prisão. Se o encarcera-mento dessocializa, despersonifica e produz sequelas irremediáveis na mente do homem, o discurso ressocializador muito se aproxima do nonsense, do absurdo mesmo, beirando o ridículo. (SILVA, 2009). Na trajetória do modelo retributivo, foram inúmeras as tentativas de corrigir as suas falhas. Um sistema proposto a sanar a criminalidade e as suas consequências, depara-se com resultados paradoxais, que retratam a formação de criminosos no interior das instituições disciplinares. Inicialmente, as penas eram rígidas e severas, não guardando proporcionalidade entre a gravidade do delito e a sanção aplicada. Posteriormente, com o Renascimento, foi introduzido o critério que buscou correlacionar a infração à pena imposta, tornando a aplicação da sanção mais ‘racionalizada’. A partir desse momento, as prisões passaram a popularizar e a se tornar o fundamento legal e direto de se aplicar a punição. Ademais, frente a tais alterações, as penas alternativas também emergiram como uma possível solução para salvar o paradigma punitivo em voga, com a proposta de instituir medidas alternativas de castigo para repelir a criminalidade. (PALLAMOLLA, 2009). Entretanto, essa busca de mudanças que instituiu as medidas alternativas ao encarceramento, não atingiu os objetivos esperados, pois ao invés de acarretar uma substituição do modelo posto, acabou ocasionando uma ampliação do campo de atuação do controle formal, somando à nova ‘pena alternativa’ à já conhecida pena privativa de liberdade, sem instituir uma modificação significativa na forma de gerenciar a punibilidade no sistema criminal. (PALLAMOLLA, 2009). No ordenamento pátrio, as denominadas penas alternativas à prisão surgiram no ano de 1984, através Lei 7.209, mas foi apenas em 1995, com o advento da Lei dos Juizados Cíveis e Criminais, que foi dado início a uma tendência valorativa desta forma de penalizar e, posteriormente, ocorreu uma readequação, alterando, profundamente, alguns dispositivos do Código Penal com a Lei 9.714/98, que ficou conhecida como Lei de Penas e Medidas Alternativas. As penas alternativas poderão substituir as penas privativas de liberdade nas seguintes hipóteses previstas no artigo 41 do Código Penal: I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; II - o réu não for reincidente em crime doloso; III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do con¬denado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substitui-ção seja suficiente. As penas alternativas possuem sua peculiaridade de execução enquanto comparada com a pena privativa de liberdade, pois aquela pode ser cum¬prida na forma de: a) prestação de serviços à comunidade; b) interdição temporária de direitos; c) proibição de exercer cargo público ou mandatos, nos quais foi eleito para essa função; d) suspensão de habilitação para dirigir; e) proibição de frequentar alguns lugares espe¬cíficos; f) prestação em dinheiro em favor da vítima para sanar o dano que cometeu e prestação em dinheiro ou alimentos a entidades que exerçam atividades sociais, dentre outras medidas alternativas (CAMILA PERBONE, 2014). As penas privativas de liberdade enclausuram o homem e impedem que ele permaneça no convívio social, aumentando a possibilidade do indivíduo cometer o mesmo crime ou outros de potencial ainda maior, marginalizando e impossibilitando o infrator de reconhecer a sua transgressão e de deixá-lo pagar de uma forma mais coerente com o tipo de ato ilícito que praticou (CAMILA PERBONE, 2014). A aplicação de penas alternativas além de gerar um dispêndio financeiro menor, reduz as chances de o infrator, em regra, contribuir para a elevação dos índices de reincidência. Além do que, quando o infrator é beneficiário desta oportunidade, toda a sociedade também é contemplada, vez que permite que integre mão de obra em ações sociais, em entidades públicas e organizações não governamentais (CAMILA PERBONE, 2014). Assim as penas alternativas à prisão, muito embora não tragam uma solução total aos problemas enfrentados pelo Estado quando do cometimento de uma infração penal, mostra-se como o caminho a ser seguido a fim de que o infrator não conheça as paredes do cárcere e por via de consequência não volte a delinquir. “O fracasso da prisão como agência terapêutica foi constatado relativamente às penas de curta duração, logo depois de iniciada a prática do encarceramento como pena. É antiga, portanto, a ideia de que o ambiente do cárcere deve ser evitado, sempre que possível, nos casos em que a breve passagem do condenado pela prisão não enseje qualquer trabalho de ressocialização. Por outro lado, essas pequenas condenações não se prestam a servir como prevenção geral, acrescentando-se o inconveniente de afastar o sentenciado do convívio familiar e do trabalho, desorganizando, sem nenhuma vantagem, a sua vida.” (PIMENTEL, 1983, p. 163). Com a desvalorização do modelo de aprisionamento do indivíduo, e a constante busca por alternativas a este modelo, por volta dos anos 90, eclode nos Estados Unidos da América, o modelo de Justiça Restaurativa ideal de inspiração anglo-saxônica, que surge com a proposta de reverter a situação de ineficiência e altos custos, tanto financeira como humanos, do sistema de justiça tradicional e o fracasso deste sistema na responsabilização dos infratores e atenção as necessidades e interesses das vítimas. (MORRIS, 2005, p. 440-441 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 34). Conforme preceituado pela Professora Rafaella Pallamolla em sua obra Justiça restaurativa: da teoria à prática este modelo: “é fruto de uma conjuntura complexa, pois recebeu influência de diversos movimentos: o que contestou as instituições repressivas e mostrou seus efeitos deletérios (como o abolicionismo); o que (re) descobriu a vítima (vitimologia); e o que exaltou a comunidade, destacando suas virtudes.” (JACCOUD, 2005. p. 164-5 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 36). Assim o complexo de práticas e valores que embasam o surgimento da Justiça Restaurativa no cenário jurídico atual, parte de um emaranhado de costumes de povos antigos Orientais e Ocidentais. No entanto, a sua formalização enquanto modelo formal de resolução de conflitos, baseado na restauração do dano através da participação dos seus atores (vítima-ofensor- comunidade) é imputada a práticas recentes e que vão assumindo notoriedade a nível global dia-a-dia.   2. CONCEITO, DISTINÇÃO, PRINCÍPIOS, CARACTERÍSTICAS E MODELOS DE APLICAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA. A superação do paradigma retributivo, que propõe a retribuição do mal do delito pelo mal da pena, pelo paradigma restaurativo, fundamenta-se na deslegitimação daquele, tendo em vista que o processo penal contemporâneo é voltado exclusivamente à questão da culpa do acusado. A justiça restaurativa apresenta-se como opção ao vetusto modelo, que não tem por fim abolir o sistema penal, mas propõe a diminuição de seus efeitos, em respeito à dignidade da pessoa humana e aos Direitos Humanos (SALIBA, 2009). O modelo de justiça restaurativa baseia-se em um paradigma não punitivo, que apresenta soluções às ineficácias do sistema de justiça criminal atual, alterando o foco do processo penal no estabelecimento da culpa e punição para o ato danoso, suas consequências e suas possíveis soluções (CRUZ, 2013). Faget sustenta que três correntes de pensamento favoreceram o surgimento, no período moderno, da justiça restaurativa, pois esta remonta sociedade pré-estatais, e dos processos que a ela estão associados: a que contesta as instituições repressivas (abolicionismo); a que redescobriu a vítima (vitimologia) e; a de exaltação da comunidade (FAGET, 1997, apud JACCOUD, 2005 p. 164). Desse modo, pode-se afirmar que o desenvolvimento da justiça restaurativa é fruto de uma conjuntura complexa. O primeiro movimento – nascido em universidades americanas inicia uma crítica profunda das instituições repressivas, destacando seu papel no processo de definição do criminoso e, a partir das ideias de Hulsman, Foucault, Cristie dentre outros, nutrem a reflexão e o desenvolvimento de um movimento que recomenda o recurso para uma justiça diferente, humanista e não punitiva (JACCOUD, 2005) Para a vitimologia, segundo Pallamolla (2009), o direito penal esqueceu-se da vítima ao tratar apenas da proteção de bens jurídicos desde o viés do castigo àquele que cometeu um delito, e negligenciou o dano causado àquela e a necessidade de reparação. Segundo a autora, não há dúvida que existem pontos de contato da justiça restaurativa e o movimento da vitimologia, como, por exemplo, o incentivo à mediação e à reparação (PALLAMOLLA, 2009). Contudo, a relação entre estes movimentos deve ser analisada com cuidado, pois o movimento vitimista inspirou a formalização dos princípios da justiça restaurativa, mas não endossou seus princípios nem participou diretamente de seu advento. (JACCOUD, 2005) Desta forma, não é correto afirmar que a justiça restaurativa seja um movimento restrito às vítimas, visto que se preocupa com estas, mas também com o ofensor e a comunidade envolvida no conflito. Jaccoud (2005) nomeia de exaltação da comunidade o movimento que faz menção às virtudes da comunidade, que também inspirou a justiça restaurativa. Nesse movimento, o princípio da comunidade é valorizado como o lugar que recorda as sociedades tradicionais nas quais os conflitos são menos numerosos, melhor administrados e onde reina a regra da negociação. A Justiça Restaurativa expressa uma forma de justiça centrada na reparação, representando uma verdadeira ruptura em relação aos princípios de uma justiça retributiva, a qual se baseia somente nas sanções punitivas. Pode-se dizer, sem sobra de dúvida, que a justiça restaurativa é uma nova forma de pensar o delito, visto que não se preocupa apenas com a violação da lei, mas como causador do dano, com as vítimas e até mesmo com a comunidade. Seu conceito nasce em 1975 através da do psicólogo americano Albert Eglash (JACCOUD, 2005). No entanto, a justiça restaurativa não possui uma conceituação objetivamente definido. E esta não é a única dificuldade. As mesmas dificuldades e complexidades observadas na definição da justiça restaurativa também atingem os objetivos deste modelo, direcionados à conciliação e reconciliação entre as partes, à resolução de conflitos, à reconstrução de laços rompidos pelo delito, à prevenção da reincidência e à responsabilização, dentre outros, sem que estes objetivos sejam, necessariamente alcançados simultaneamente em um único procedimento (PALLAMOLLA, 2009). Azevedo, citado por Saliba, destaca a existência de conceitos amplos e restritos de justiça restaurativa e depois a conceitua como: A proposição metodológica por intermédio do qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes das comunidades voltadas a estimular: a) a adequada responsabilização por atos lesivos; b) a assistência moral e material de vítimas; c) a inclusão de ofensores na comunidade; d) o empoderamento das partes; e) a solidariedade; f) o respeito mútuo entre vítima e ofensor; g) a humanização das relações processuais em lides penais: e h) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito (AZEVEDO, apud SALIBA, 2009, p 146). Não obstante a dificuldade em conceituar a justiça restaurativa existe um consenso entre boa parte dos autores que trabalham com o tema em torno da definição de Tony Marshall (PALLAMOLA, 2009, p. 54), para quem: A justiça restaurativa é um processo de diálogo, onde as pessoas afetadas em decorrência de determinado crime se reúnem visando solucionar, conjuntamente, qual a melhor forma de resolver o problema e lidar com suas implicações futuras, em regra, com a ajuda de um facilitador. Outra concepção bastante respeitada no meio acadêmico sobre justiça restaurativa, atribuída a Howard Zehr e citada por Pinto, (ZEHR, 2009, apud PINTO, 2005, p. 21) é de que O crime é uma violação nas relações entre o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve ser restaurado. Incumbe, assim, à Justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado. Por sua vez, a ONU, no Projeto de Declaração relativa aos Princípios Fundamentais da Utilização de Programas de Justiça Restaurativa, conceitua esta como sendo “um processo no qual a vítima, o infrator e/ou outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime participam ativamente e em conjunto na resolução das questões resultantes daquele, com a ajuda de um terceiro imparcial” (WINKELMANN; GARCIA, 2012). Nas palavras de Gomes Pinto (2007, p. 20): Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário do judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator. Para além dos conceitos, Pinto (2007, p. 20) afirma que a justiça restaurativa fundamenta-se: Num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a restauração dos traumas e perdas causados pelo crime. Nas lições deste estudioso, o procedimento pode ser realizado na forma de mediação, onde se propicia às partes a possibilidade de uma reunião num cenário adequado, com a participação de um mediador, para o diálogo sobre as origens e consequências do conflito criminal e a construção de um acordo e um plano restaurativo (PINTO, 2005). Zehr (2012, p.18) entende que a abordagem restaurativa não se limita a um encontro. Mas, quando o encontro acontece, o termo “mediação” não constitui uma descrição adequada daquilo que vai acontecer pois conflito mediado se presume que as partes atuem num mesmo nível ético, muitas vezes com responsabilidades que deverão ser partilhadas. Para participar de um encontro restaurativo, segundo o autor, na maioria dos casos o ofensor deve admitir algum grau de responsabilidade pela ofensa, e um elemento importante de tais programas é que se reconheça e se dê nome a tal ofensa. E continua dizendo que: “Mesmo que o termo “mediação” tenha sido adotado desde o início dentro do campo da Justiça Restaurativa, a linguagem neutra dessa maneira pode induzir ao erro, e chega a ser um insulto em certas situações. Por isso que cada vez mais se utiliza os termos “encontro” ou diálogo.” (ZEHR, 2012, p.19). Reconhecendo a dificuldade doutrinária em estabelecer um conceito à justiça restaurativa, Saliba (2009, p. 148) apresenta seu como sendo: A justiça restaurativa é um processo de soberania e democracia participativa numa justiça penal e social inclusiva perante o diálogo das partes envolvidas no conflito e comunidade para a melhor solução que o caso requer, analisando-o em suas peculiaridades e resolvendo-o em acordo com a vítima, o desviante e a comunidade, numa concepção de direitos humanos extensíveis a todos, em respeito ao multiculturalismo e à autodeterminação. O que precisa ficar claro, é que a justiça restaurativa não é, de modo algum, resposta para todas as situações, nem é sua pretensão substituir o famigerado Processo Penal. Há um consenso de que os direitos humanos fundamentais devem ser salvaguardados, mesmo a justiça restaurativa ganhando ampla implementação. Os defensores dessa modalidade de resolução de conflitos concordam que o crime tem uma dimensão pública e uma privada. Ao colocar o foco sobre as dimensões privadas do crime, a justiça restaurativa procura oferecer um maior equilíbrio na maneira como se vivencia a justiça (ZEHR, 2012) Defende-se aqui, como já foi dito, não a extinção do sistema criminal com sua preferência pelo aprisionamento. Nas palavras de Zehr, (2012, p. 23) Se a justiça restaurativa fosse levada a sério, nosso recurso ao aprisionamento seria reduzido e a natureza dos estabelecimentos prisionais mudaria significativamente. No entanto, as abordagens restaurativas podem também ser usadas em conjunto com as sentenças de detenção, ou em paralelo a estas. Elas não são necessariamente uma alternativa à privação de liberdade. Como pôde ser observada, a justiça restaurativa possui um conceito não só aberto como também fluido, pois vem sendo modificado, assim como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências restaurativas. Enquanto movimento internamente complexo, a justiça restaurativa apenas é capaz de sustentar um conceito aberto, continuamente renovado e desenvolvido com base na experiência (PALLAMOLLA, 2009) A vítima na justiça penal retributiva foi esquecida e colocada em segundo plano, limitando-se sua participação à narrativa dos fatos e, num restrito número de ilícitos penais, está legitimada para iniciar a persecução penal ou a legitimar o início da ação penal pelo Ministério Público (SALIBA, 2009). Nas palavras de Rafaela Alban (2013, p. 76): As vítimas são substituídas pela autoridade do Estado, tendo mínima participação no processo penal, atuando como testemunha ou através de um assistente de acusação, nos delitos processados mediante ação penal pública incondicionada. Ainda, outorga-se legitimidade às vítimas nos delitos que se processam mediante ação penal privada e pela ação penal pública condicionada à representação. Antes do surgimento do Direito Penal, conforme Santana (2010), a vítima se encontrava nos centros dos interesses dos sistemas primitivos de justiça, basicamente fundados na vingança privada. Com o surgimento do jus puniendi o Estado, agora garantidor da ordem pública, começa a abandonar a figura da vítima. Ocorreu que o surgimento na noção de bem jurídico, surgiu a objetivação da figura da vítima, deixando ela de ser o sujeito pelo qual recairia a ação delitiva, que sofreria a conduta delituosa, e passando a ser um sujeito portador de um valor, o bem jurídico, exatamente o que, realmente, vem a ser lesado (Santana, 2010). Na justiça restaurativa a vítima é tratada como parte lesada, com interesse na justiça e na reparação dos danos, e com vistas à reconciliação e pacificação do conflito levado ao processo restaurativo (SALIBA, 2009) O dano material suportado não é o enforque principal do processo restaurativo, sendo seus fins muito mais amplos, já que buscam discutir os motivos e as consequências do crime para a vítima, ofensor e comunidade. A palavra da vítima passa a ter importância e ocupar uma posição de destaque, tanto que o diálogo não se limita ao quantum devido, podendo-se dizer que para a reconciliação das partes e a pacificação social não há limitação nos assuntos a serem tratados (SALIBA, 2009). Esse modelo restaurador, amparado no diálogo, vem em defesa e proteção da vítima, evitando sua vitimização secundária que é existente no tradicional procedimento da justiça penal, visto que muitas vezes, as próprias vítimas sofrem danos subsequentes por conta do preconceito social. A propensão, normalmente, então, é a de negligenciar a vítima e, não raras vezes, culpá-la. O diferencial da Justiça Restaurativa, em contraposição ao retribucionismo então vigente, é que as vítimas compartilham com os agressores a necessidade de reintegração social (ROLIM, 2006) O sistema criminal retribucionista, com sua maneira de fazer justiça, identifica determinada conduta como crime e a partir de pressupostos que conferem a base à reação ao delito (PALLAMOLLA, 2009). Para ele, a culpa deve ser retribuída; a justiça deve vencer, e esta não se desvincula da imposição da dor; a justiça é medida pelo processo; e é a violação da lei que define o crime. O delito é visto como dívida moral que deve ser paga à sociedade por meio da justiça e da punição por ela estabelecida. A ideia é apenas retribuir o mal feito, sem trazer qualquer benefício à comunidade e ao infrator. A justiça retributiva, através do processo penal, afasta a vítima, o ofensor, e a comunidade afetada pelo delito. Questões éticas e sociais relacionadas ao evento são afastadas. Zehr, citado por Pallamolla, enumera as principais características da justiça retributiva, em contraposição às características do modelo restaurador: - O foco da justiça criminal está na infração cometida e em seu autor, e não no dano causado à vítima, suas necessidades e direitos; - Analisa-se o ato delituoso como uma transgressão às leis da sociedade. O infrator cometeu um ato proibido, por ser danoso ou imoral, pela lei penal. Dessa forma, não é conferida importância às relações interpessoais que perpassam o delito, bem como é ignorado o aspecto conflituoso do crime; - Os danos são conferidos em abstrato e não em concreto; - O Estado passa a ser vítima da ação e pode iniciá-la contra o infrator, bem como tem o poder exclusivo de prosseguir ou não com a ação, e pode, muitas vezes, dar seguimento à ação mesmo quando a vítima não queira. Assim, Estado e infrator são as partes do processo, enquanto a verdadeira vítima é afastada e não entra em contato com o ofensor; - Terminada a ação e atribuída a culpa ao infrator, este é punido. É-lhe imposta alguma perda ou sofrimento; - Este processo estigmatiza aqueles considerados culpados, o que acarreta perda considerável de sua reputação moral, fato que lhe acompanhará, provavelmente por toda a vida, mês mo depois de ter “pago a dívida com a sociedade”; - Em razão dos danos causados por esta resposta penal, são concedidas garantias processuais ao acusado para que se reduzam os riscos das injustiças; - Os acusados têm o direito de mentir em sua própria defesa. (ZEHR, apud PALLAMOLLA, 2009, p. 71) Jaccoud (2005) considera o modelo reparador como o único que enfatiza os prejuízos causados pelo delito, ao pretender que se restaure a situação anterior, por meio da reparação (simbólica psicológica e/ou material). À vítima é conferido lugar central e o ofensor participa do processo, no intuito de realçar a importância da reparação: o ofensor está envolvido não porque alguma coisa deve ser feita com ele, mas porque isto promoverá restauração. Antes de qualquer comparação entre a teoria retributiva e a teoria restaurativa, faz-se necessário destacar que ambas reconhecem a intuição básica de que o comportamento socialmente nocivo desequilibra a balança (ZEHR, 2012). Neste caso, há um consenso de que a vítima merece algo e o ofensor deve algo. Ocorre que as duas teorias divergem no quesito como “pagar” ou cumprir com essa obrigação. Entende-se, majoritariamente, que o modelo Restaurativo apresenta-se como um padrão contrastante à Justiça Criminal. Para esta, a dor é elemento capaz de acetar as contas (ZEHER, 2012), o que gera críticas em virtude de se mostrar contraproducente, tanto para a vítima como para o autor da ofensa. Já para àquela, o único elemento a acertar as contas é a conjugação do reconhecimento dos danos sofridos pelas vítimas e suas necessidades ao esforço ativo para estimular o ofensor a assumir a responsabilidade. Ampliando-se um pouco as diferenças e utilizando-se dos estudos de Renato Sócrates Pinto (2005) abaixo relacionados, pode-se afirmar que algumas das diferenças básicas entre o modelo dito retributivo e o modelo dito restaurativo pode ser encontrado em: seus valores; procedimentos; resultados; efeitos para a vítima; efeitos para o infrator. No que tange aos valores, o conceito estritamente jurídico de crime é a violação da Lei Penal; para a justiça restaurativa o crime pode ser conceituado como ato que afeta a vítima, o próprio infrator e a comunidade, causando uma variedade de danos. Há um monopólio estatal da Justiça Criminal em contraponto ao modelo de Justiça Criminal participativa da Justiça Restaurativa (PINTO, 2005). Para o modelo retributivo a culpabilidade individual é voltada para o passado, causando o problema da estigmatização; para o modelo restaurativo a responsabilidade é voltada para o futuro, através da restauração. Há uma nítida indiferença dos órgãos estatais quanto às necessidades do infrator, vítima e sociedade, afetados pelo ato delituoso, o que se contrapõe ao modelo restaurativo, onde há um comprometimento com a inclusão e Justiça Social (PINTO, 2005). Concernente aos procedimentos utilizados pela Justiça Criminal e pela Justiça Restaurativa, sua principal distinção dá-se quanto ao rito. Enquanto que no primeiro é solene e público, no segundo é informal e comunitário; Para aquele, há aplicação do princípio da indisponibilidade da Ação Penal o processo decisório fica a cargo de autoridades estatais como juízes, promotores de justiça e delegados; Enquanto que no procedimento restaurativo, aplica-se o princípio da oportunidade, é voluntário e colaborativo, sendo processo decisório compartilhado entre as pessoas envolvidas (PINTO, 2005). No que diz respeito aos resultados, a Justiça Retributiva tem como foco a prevenção geral e especial, enquanto que o modelo restaurativo de resolução de conflitos em como foco as relações entre as partes. Para este há a necessidade da reparação e do pedido de desculpas; Para àquele há penalização através de penas privativas de liberdade, restritivas de direitos, multas e principalmente a estigmatização depois de cumprir seu castigo em regime carcerário desumano e degradante, enquanto que para os defensores do modelo alternativo a reintegração do infrator e da vítima é prioritária, não sendo necessariamente imprescindível (PINTO, 2005). O Sistema Penal busca o passado, tentando reconstruir o fato delituoso ora em questão. O processo penal tem como foco, de maneira exclusiva, na culpa do infrator, tendo, na maioria das vezes, suas garantias processuais e constitucionais deixados de lado. Evidencia-se, assim, que o foco não está no dano à vítima, ao infrator e à comunidade, ou na experiência destas na ocorrência do delito, como a Justiça Restaurativa objetiva, mas sim na violação à lei e à determinação da justiça (CRUZ, 2013) Um dos grandes inconvenientes na instrução do processo penal é a pouquíssima ou nenhuma consideração dada à vítima do delito. A ela, é dado um lugar periférico do processo, não tendo participação e mal sabendo o que se passa no decorrer do processo. Já no sistema da Justiça restaurativa a vítima ocupa o centro do procedimento, com relevante papel, tendo controle sobre tudo o que se passa. Ao contrário do procedimento criminal comum, recebe assistência psicológica e social. De Vitto (2005, p. 43), ao analisar o papel da vítima no sistema de Justiça Restaurativa expõe que: No tocante à vítima o modelo representa claros benefícios, na medida em que lhe devolve um papel relevante na definição da resposta estatal ao delito e preocupa-se em garantir a reparação dos danos sofridos e minimizar as consequências do fato, o que evita a vitimização secundária. O infrator no procedimento restaurativo participa ativamente, interagindo com a vítima e com a comunidade, sendo inteirado sobre os fatos e contribuindo para a decisão. No modelo retributivo, o autor do delito comunica-se, em regra, com os atores estatais do sistema criminal através de advogado, não é efetivamente responsabilizado e sim punido pelo fato delituoso, não tendo, principalmente, suas necessidades consideradas. Nesse sentido, defendendo a tese de que o modelo restaurativo promove a democracia ao dar oportunidade de participação efetiva das partes envolvidas no conflito, Pinto (2005, p.21) expõe: A vítima, o infrator e a comunidade se apropriam de significativa parte do processo decisório, na busca compartilhada de cura e transformação, mediante uma recontextualização construtiva do conflito, numa vivência restauradora. O processo atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas. Ao dissertar, ainda, sobre as possíveis dicotomias entre Justiça Criminal e Justiça Restaurativa, Howard Zehr (2012) ensina que os defensores desta última acalentam o sonho de chegar um dia em que a justiça será totalmente restaurativa. Para o estudioso, o realismo desse sonho é discutível, ao menos num futuro próximo. Em continuação, defende a ideia de que a sociedade precisa de um sistema para descobrir a “verdade” da melhor forma possível nos casos em que as pessoas negam suas responsabilidades. Não se pode perder de vista as qualidades que o melhor do sistema jurídico representa: o estado de direito, a imparcialidade procedimental, o respeito pelos direitos humanos e o desenvolvimento ordenado da lei. Talvez uma meta realista seja avançarmos tanto quanto possível na direção de um processo restaurativo. Em alguns casos as situações pode ser que não se consiga chegar muito longe. Em outros, chegaremos a processos e soluções verdadeiramente restaurativos. Entre um extremo e outro haverá muitas instâncias e situações e que os dois sistemas deverão ser utilizados, e a justiça será feita de modo apenas parcialmente restaurativo. Os princípios oferecem importantes orientações quanto à implementação da justiça restaurativa, auxiliando na superação das críticas a esse modelo e na prevenção de práticas restaurativas equivocadas ou deficientes. A doutrina, de maneira geral, orienta-se pelos princípios básicos da justiça restaurativa elaborada pela Organização das Nações Unidas, que podem ser encontrados na Resolução 2002/12 do Conselho Social e Econômico (PALLAMOLLA, 2009). Segundo Pallamolla (2009), tais princípios visam orientar a utilização da justiça restaurativa em casos criminais e pretendem delinear aspectos relativos à sua definição, uso, operação e desenvolvimento contínuo dos programas e dos facilitadores, com a finalidade de abordar as limitações e os fins dos processos restaurativos e seus resultados. Nos ensinamentos de Pinto, tomando-se por base a resolução da ONU, os conceitos enunciados são o seguinte: 1.Programa Restaurativo - se entende qualquer programa que utilize processos restaurativos voltados para resultados restaurativos. 2. Processo Restaurativo - significa que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, participam coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. O processo restaurativo abrange mediação, conciliação, audiências e círculos de sentença 3. Resultado Restaurativo - significa um acordo alcançado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do infrator (PINTO, 2005, p. 23). Importante observação feita por Pallamolla, quando atenta que não é ambição da Resolução da ONU indicar como as nações devem proceder a instituição da justiça restaurativa, tendo em vista que “apenas apresenta um guia para os Estados que queiram implementá-la”(2009, p 88). Não são regras estáticas, pelo contrário, são flexíveis na medida em que permitem a adaptação da justiça restaurativa aos contextos nacionais. Nessa perspectiva, no Brasil, após o I Simpósio Brasileiro de Justiça Restaurativa, realizada no interior de São Paulo, na cidade de Araçatuba, foi emitida a Carta de Brasília, elabora durante Conferência Internacional Acesso à Justiça por Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, que contém os princípios abaixo transcritos: 1. Plenas e precedentes informações sobre práticas restaurativas e os procedimentos em que se envolverão os participantes; 2. autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases; 3. Respeito mútuo entre os participantes do encontro; 4. Corresponsabilidade ativa dos participantes; 5. Atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades; 6. Envolvimento da comunidade, pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; 7. Interdisciplinaridade da intervenção 8. Atenção ás diferenças e peculiaridades socioeconômicas e culturais entre os participantes e a comunidade, com respeito á diversidade; 9. Garantia irrestrita dos direitos humanos e do direito á dignidade dos participantes; 10. Promoção de relações equânimes e não hierárquicas; 11. Expressão participativa sob a égide do Estado Democrático de Direito; 12. Facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos; 13. Direito ao sigilo e à confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo; 14. Integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação; 15. Desenvolvimento de políticas públicas integradas; 16. Integração com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária; 17. promoção de transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas; 18. monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários internos e esternos (SALIBA, 2009, p. 149-151). Pode-se dizer seguindo as diretrizes principiológicas tanto da ONU quanto da Carta de Brasília, que no processo restaurativo há um encontro da vítima com o desviante e a comunidade, num processo de inclusão ativa da justiça penal, para discutir o crime e suas consequências, por meio de reuniões monitoradas por intermediadores, inclusive com a possibilidade de presença de familiares e terceiros. O resultado esperado e desejado pelo encontro restaurador é a reparação e a reintegração social. Recuperação dos eventuais danos causados sejam eles patrimoniais ou morais, e reintegração da vítima e delinquente à comunidade, sem estigma ou marginalização, com despenalização. A reintegração possibilita a devolução da vítima e desviante mais conscientes de seus atos e repercussões sociais, diante das discussões realizadas e resolução alcançada. (SALIBA, 2009). Barata, leciona, com propriedade, que os princípios e as características apresentados diferenciam a justiça restaurativa da justiça penal retributiva, pois naquela há participação, discussão, conscientização, solução dos problemas passados, análise dos problemas presentes e preparação para os problemas futuros, enquanto na justiça penal tradicional há imposição e não, discussão, retribuição pelo fato passado, desproporcionalidade, esbulho da vontade e interesse das partes, afastamento da comunidade (BARATA, apud SALIBA, 2009, 153). No tradicional modelo, inexiste composição de conflitos, mas sim repressão, o que lhes dá, muitas vezes, um caráter mais grave que seu próprio contexto originário, criando novos conflitos dentro e fora do contexto fático original levado à juízo. No mesmo sentido, Rolim (2006) ensina que no modelo de Justiça Restaurativa, parte-se do princípio de que todo o dano rompe o equilíbrio da relações sociais em determinada comunidade, o que produz situações indesejáveis. Para o modelo restaurador, é imprescindível restabelecer as relações rompidas. Nesse caso, faz-se necessário descobrir o tamanho da lesão. Nesse momento, dá-se a palavra à vítima, pois, em tese é a principal interessada. No entanto, como bem analisa o estudioso, a Justiça Restaurativa, não obstante, os danos produzidos pela ação indesejável não se limitam à vítima. A comunidade local é também atingida porque uma das suas promessas (convivência pacífica) foi atacada diretamente. É necessário, então, que a comunidade tenha um papel a desempenhar no processo de Justiça Restaurativa. O que é menos óbvio é que o infrator também irá experimentar danos por conta de sua própria ação. Primeiramente, ele será estigmatizado pelos demais. A depender da gravidade do seu ato, ele poderá ser excluído do convívio social por uma sentença de prisão, seus familiares sofrerão por conta disso e, assim, sucessivamente (ROLIM, 2006, p, 12) Diferentemente da justiça retributiva, onde o infrator quase nunca é confrontado com a realidade produzida por ele, e onde o que se espera é que ele suporte a dor, na justiça restaurativa o que importa é que ele procure restaurar ativamente a relação social quebrada, oferecendo-lhe as condições adequadas para que ele possa superar seus mais sérios limites como, por exemplo, déficit educacional ou moral ou condições de pobreza ou abandono (ROLIM, 2012) Uma das características principais do processo restaurativo está assentada na intersubjetividade, como um processo de discussão e integração social, em busca da consensualidade (SALIBA, 2009). A diferença com o paradigma retributivo torna-se estrutural, já que por meio do diálogo e da participação com responsabilidade no processo decisório se constrói um novo modelo de justiça, sendo, portanto antagônico àquele processo. Ressaltando a suma importância dessa participação efetiva dos atores que compõem este programa, Azevedo diz que a justiça restaurativa: “enfatiza a importância de se elevar o papel das vítimas e membros da comunidade ao mesmo tempo em que os ofensores (réus, acusados, indiciados ou autores do fato) são efetivamente responsabilizados perante as pessoas que foram vitimizadas, restaurando as perdas materiais e morais das vítimas e providenciando uma gama de oportunidades para diálogo, negociação e resolução de questões. Isto, quando possível, proporciona uma maior percepção de segurança na comunidade, efetiva resolução de conflitos e sociedade moral por parte dos envolvidos”. (AZEVEDO, 2005, p.140 apud SALIBA, 2009, p.167). Reputa-se a participação da comunidade indispensável no processo restaurativo e as razões, segundo Saliba (2009), é justificado para o fortalecimento dos vínculos estabelecidos entre delinquente, vítima e comunidade; para a reinserção social mais efetiva; para a conscientização da importância social do fato pelo desviante, vítima e comunidade; para a conscientização da importância do processo para a comunidade/ e) para a efetiva soberania e cidadania participativa no Estado Democrático de Direito. Gomes Pinto, fazendo referência aos ensinamentos de Zehr, explica que cabe à justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem em um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da defesa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado (PINTO, 2005). Sobre possíveis críticas à participação da comunidade, no que tange à heterogeneidade desta, no processo restaurativo, pode-se dizer que a justiça restaurativa trabalha e reconhece as diferentes comunidades, dentro do desequilíbrio social existente, e suas propostas estão amparadas num empoderamento das partes, o que significa dizer, estabelecer um processo restaurativo adequado para situações, com participação de pessoas capacitadas para respeitar e superar a heterogeneidade. Após a análise dos princípios e características, faz-se necessário examinar se ambos podem coexistir num mesmo sistema. Se forem totalmente opostos ou excludentes, possuindo maneira absolutamente diversas de lidar com o delito, ou se há, de alguma forma, pontos de contato ou aproximação. Como já exposto anteriormente, o modelo retributivo, típico da modernidade, após a identificação de uma conduta dita criminosa, apresenta a seguinte ideia: a culpa deve ser atribuída; a justiça deve vencer e esta não deve estar desvinculada da dor. Ocorre que, apesar do modus operandi, não é proposto aqui a exclusão desse sistema, entendendo-se que ambos - justiça restaurativa e justiça retributiva- podem fazer parte do sistema criminal então existente. Apesar de se falar o tempo inteiro apenas sobre modelo retributivo e modelo restaurador, pode-se identificar na doutrina três modelos distintos de se “fazer justiça”, o que tem relevo a partir do momento em que não se deve confundir modelo restaurativo com modelo reabilitador. Palamola (2009), corroborando com a classificação de Eglash, aduz que “existe o modelo de justiça punitiva, que se centra no castigo, o de justiça distributiva, que enfoca o tratamento do infrator, e o de justiça recompensadora, que direciona a restituição”. O modelo restaurativo se encaixa nesse último. Walgrave distingue os três modelos da seguinte forma: Para o direito penal retribucionista, o ponto de referência é o delito, os meios utilizados focam a aflição de uma dor; os objetivos são o equilíbrio moral; às vítimas são colocadas numa condição ou situação secundária; os critérios de avaliação são uma pena adequada; dentro do contexto social, o Estado é o opressor. O direito reabilitador tem como ponto de referência o indivíduo delinquente; os meios são focados no tratamento deste; tem como objetivos a adaptação; as vítimas, assim como no modelo retributivo, são colocadas numa condição ou situação secundária; os critérios de avaliação é o indivíduo delinquente adaptado; dentro do contexto social é o Estado-providência; No modelo restaurativo ou direito restaurador, o ponto de referência são os prejuízos causados, a obrigação para restaurar são os meios; busca, como objetivos, anular os erros; a vítima é colocada num lugar central; os critérios de avaliação é a satisfação dos interessados (vítima, infrator e comunidade); dentro do contexto social, o Estado é responsável. (Walgrave, 1993, p. 12 apud Jaccoud, 2005, p.167). Como pode ser observado, o modelo restaurativo está situado numa posição de oposição aos modelos retributivo e reabilitador. Nos ensinamentos de Pallamolla (2009), aquele é o único que confere importância aos danos provocados pela infração cometida pelo delinquente, no momento em que pretende a restauração da situação anterior. Nas palavras de Jaccoud (2005, p. 168), “o direito restaurador adota os erros causados pela infração como posição de referência ou ponto de partida, enquanto direito penal se apoia na infração, e o reabilitador sobre o indivíduo delinquente”. Na mesma linha de pensamento, continua a estudiosa: O direito reparador tem como objetivo anular os erros obrigando as pessoas responsáveis pelos danos a reparar os prejuízos causados; o direito penal visa restabelecer um equilíbrio moral causado por um mal; a aproximação reabilitadora procurar adaptar o ofensor através de um tratamento (JACCOUD, 2005, p. 168). Voltando-se novamente para a análise dos modelos retribucionista e restaurador, pode-se afirmar que há um consenso no sentido de que existe ponto de conexão entre esses dois modelos de justiça. Dessa forma ambos entendem que o equilíbrio social é quebrado quando do cometimento do delito. Não há dúvida de que a partir do delito, é a vítima merecedora de algo, enquanto que é o infrator devedor de uma resposta. Esse dois modelos “também referem que deve haver proporcionalidade entre o ato cometido e a responsabilidade decorrente dele” (PALLAMOLLA, 2009, p. 76). Muito, além disso, Jaccoud identifica três modelos distintos do modelo de justiça restaurativo – o primeiro, que se apoia no reparo dos danos; o segundo, na resolução dos conflitos; e o terceiro, na conciliação e reconciliação. Os três podem ser, em suas palavras, identificados da seguinte forma: O primeiro adota as consequências como ponto de partida de sua ação, na qual a responsabilidade é mais única e que utiliza a comunicação entre as partes (mediação) ou um processo de arbitragem como meio de atingir os objetivos reparadores. Nos dois últimos, o ponto de partida é menor para o dano que para o conflito subjacente ao gesto causador do dano; por conseguinte a responsabilidade tem mais oportunidade de ser compartilhada pelas duas partes; o processo privilegiado é centrado na comunicação (2005, p. 169). Com essa pluralidade de objetivos, conclui-se, que não é mais possível inserir a justiça restaurativa como um modelo específico, o que pode ser resumido na definição que segue abaixo: A Justiça restaurativa é uma aproximação de justiça centrada na correção dos erros causados pelo crime, mantendo o infrator responsável pelos seus atos, dando diretamente às partes envolvidas por um crime – vítima infrator e coletividade – a oportunidade de determinar suas respectivas necessidades e então responder em seguida pelo cometimento de um crime e de juntos, encontrarem uma solução que permita a correção e a reintegração, que previna toda e qualquer posterior reincidência (JACCOUD, 2005, p. 169). Há, também, um caloroso debate que diz respeito à relação da justiça restaurativa com o sistema de justiça criminal, ou seja, uma discussão quanto ao local em que àquela deve atuar – se dentro ou fora do sistema. Nos ensinamentos de Pallamolla (2009), tal discussão pode ser dividida em duas etapas: a que diz respeito à análise dos modelos restaurativos que defendem a atuação da justiça afastada ou inserida no sistema de justiça criminal – modelo centrado nos processos e modelo orientado aos resultados, respectivamente, quando é discutida a voluntariedade da reparação; a segunda versa especificamente sobre o lugar da justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal, o que implica, necessariamente, analisar como ambas podem se articular. Apesar de não se mostrarem sempre de forma independente, o modelo centrado nos processos e o modelo centrado nos resultados têm suas significativas diferenças. O primeiro, conhecido como modelo puro, enfatiza o processo e estimula o empoderamento das partes envolvidas (vítima, ofensor e comunidade) pra resolverem seus problemas de forma cooperativa, através de encontro face a face. Depende da voluntariedade das partes em querer participar. Para os defensores do modelo de justiça restaurativa centrado no processo, o Poder Judiciário não deve impor o procedimento, tampouco aplicar sanção. Não deve haver a participação de nenhum operador do Direito. “A finalidade deste modelo é permear e transformar o sistema criminal de forma gradual” (PALLAMOLA, 2009, p. 79). Em síntese, os partidários desse modelo advogam por uma justiça restaurativa afastada do sistema criminal, como alternativa a este e, portanto, sem ingerência do Estado. (JACCOUD, 2005) Consideram que as finalidades no processo restaurativo são secundárias. Nesta concepção, todo o processo fundamentado sobre a participação se insere no modelo de justiça restaurativa (JACCOUD, 2005). Prossegue a estudiosa: Assim, embora as finalidades ligadas aos processos negociados sejam de cunho retributivo, somente o fato de que hajam as negociações, as consultas ou os envolvimentos é suficiente para que alguns considerem que as práticas façam parte de um modelo de justiça restaurativa. (2005, p.171) Ocorre que os possíveis abusos na aplicação desse modelo minimalista fez com que seus partidários compreendessem que não é possível haver um processo completamente deliberativo no estabelecimento da resposta ao delito, pois há a necessidade, seguindo o princípio da proporcionalidade, de fiscalização pelo sistema de justiça criminal, com a finalidade de estabelecer parâmetros para a justiça restaurativa (PALLAMOLLA, 2009). Já os defensores do modelo centrado nas finalidades, ou maximalistas, partem da ideia na qual a justiça restaurativa está direcionada para a correção das consequências; as finalidades restaurativas são prioritárias, independentemente dos processos aplicados. É dado ênfase à reparação da vítima, entendendo que a justiça restaurativa tem possibilidades mais amplas de aplicação e deve atuar de forma integrada à justiça criminal e, desta forma, transformar o modelo retributivo (PALLAMOLLA, 2009). A problemática em torno desse modelo é o fato de que os defensores dessa tendência, buscando ampliar seu uso para os delitos considerados de maior gravidade, defendem que a adoção dos processos restaurativos prescinda da voluntariedade das partes e que se possibilite, inclusive, a utilização de sanções restaurativas, impostas pelo Estado, na figura do magistrado. Sendo os processos secundários, é possível aceitar que a arbitragem faça parte do arsenal dos meios de que dispõe a justiça restaurativa para atingir suas finalidades. É neste modelo que se pode pôr em questão, por exemplo, as sanções restaurativas impostas por um juiz no caso em uma das partes recusa participar de uma negociação ou quando uma das partes é desconhecida, está ausente ou morta (JACCOUD, 2005, p. 171) Pallamolla (2009) considera pertinente reflexão feita por Jaccoud, quando esta alerta para os riscos da justiça restaurativa incorrer em bis in idem e punir o ofensor mais de uma vez. Para ela, a adição de dimensões restaurativas adotadas de maneira coercitiva endurece o sistema criminal, aumentando as exigências do sistema aos ofensores, pois além das penas impostas estes deverão aderir a iniciativas restaurativas. Apesar de reconhecerem que os resultados das práticas restaurativas podem ser melhor atendidas quanto há voluntariedade, acreditam os maximalistas que quando esta não existe, é legítimo a coerção estatal, pois esta seria apenas um meio para atingir um determinado fim jurídico. Esse ponto é criticado, conforme se vê abaixo: Por mais que se diga que a adesão coercitiva ao procedimento restaurativo ampliaria o uso da justiça restaurativa, pois do contrário esta permaneceria atuando somente nos casos encaminhados pelo sistema criminal que seriam, basicamente, de pouca relevância, enquanto os demais casos permaneceriam tendo uma resposta coercitiva punitiva, não parece acertado impor a restauração através de restituição, compensação, multa ou trabalho comunitário ou em benefício à vítima sem que os implicados no delito tenham deliberado a respeito (WALGRAVE, apud PALLAMOLA, 2009, p. 82) Pertinente a conclusão quando se entende que impor a restauração, significa possibilitar que a reparação se transforme facilmente em mais um instrumento de punição que estará à disposição do sistema de justiça criminal (2009). Dessa forma, não resta dúvida que a voluntariedade ocupa local de destaque na justiça restaurativa, sendo uma das características que a diferenciam tanto do modelo de justiça reabilitador, quanto do retributivo. A reinserção na sociedade não está condicionada pela compensação material dos prejuízos, como por ventura alguns maximalistas podem entender. Muitas vezes, a conscientização do desviante é alcançada com o ato desprovido de interesse material da parte. Para a família do infrator, na maioria dos casos, o despertar da consciência ocorre com o ato conscientizador de vislumbrar uma resposta desprendida de interesses materiais para a reconquista da paz. Na visão de Jaccoud (2005), o modelo centrado nos processos é o que mais corrompe os princípios da justiça restaurativa, no sentido de que quando a justiça é participativa e as ações expandidas objetivam a reparação das consequências de um crime, é que pode ser chamada de justiça restaurativa. Concluindo que apenas o modelo de justiça centrado nas finalidades respeitam os princípios da justiça restaurativa. Para Vitto (2005), a prática da justiça restaurativa é necessariamente marcada pela voluntariedade no tocante à participação da vítima e ofensor e deve haver consenso deste em relação aos fatos essenciais relativos à infração e assunção da responsabilidade por parte do infrator. Deve haver uma discussão livre entre as partes e, por esse motivo, na ausência de qualquer dos envolvidos, o processo restaurativo não se instaura. Para que não haja privilégios ou diferenças na discussão, Saliba (2009) defende a mantença do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública à disposição das partes. Para ele, a mantença em paralelo da justiça restaurativa com o Poder Judiciário é reconhecidamente indispensável. No entanto, a solução do conflito pelas partes nele envolvidas é a oportunidade de discussão sem a colocação da instância judicial como detentora e provedora da verdade. Em relação à participação dos operadores do direito através dos órgãos estatais acima mencionados, Edson Passetti, citado por Saliba, indica para a necessidade de se redesenhar a atuação dos juízes, promotores, advogados e defensores públicos, sem qualquer relação de poder com as partes envolvidas, para que se forme, na visão daquele, “uma mesa de conversações e de sensibilidades atentas para o fato de que a maioria das situações – problema decorrente da sociabilidade autoritária e dos efeitos da miséria.” (PASSET, apud SALIBA, 2009, p.166). O diálogo e a conscientização são processos de reinserção social, não se podendo restringi-la à imposição de uma pena corporal, restritiva de direitos ou pecuniária. Dessa forma, os infratores poderão restaurar suas próprias reputações através da reparação e estarão mais habilitados a uma reintegração plena à sociedade tendo resolvido sua culpa através desse caminho (ROLIM, 2006). Ainda sobre modelos impostos, não há um procedimento determinado ou um modelo ideal para todo um país, ainda mais para o Brasil, com dimensões continentais (SALIBA, 2009). No entanto, ante a informalidade do processo, o procedimento deve ser individualizado, com valores e princípios comuns que identificam a justiça restaurativa. Ponto onde não há dissenso é a ideia de que deve ser eliminada a arquitetura do cenário judiciário, quando do encontro restaurativo, pois ele reproduz, pela semelhança, às demais instituições totais e representa importante papel na exclusão e manutenção do poder (SALIBA, 2009). A preocupação com esse espaço se dá em virtude do interesse em se preservar as partes diante da exposição e pela confidencialidade das discussões. Os espaços comunitários neutros devem ser utilizados para encontros restaurativos. Durante o processo restaurativo, os representantes do Estado (juiz, promotor de justiça, delegados etc.) são necessariamente substituídos por conciliadores, ou mediadores treinados. Não se exige formação superior em Direito, apenas formação humanística, pois o que deve ser compreendido nesse momento são problemas sociais. A regra é a liberdade na mediação e ausência de influências de agentes externos. São os conciliadores que fazem a avaliação da necessidade/viabilidade de terceiros como familiares e amigos, além de advogados, acompanharem a discussão como facilitadores. Exige-se desses a maior discrição possível, no sentido de que o caso tenha uma solução adequada. Uma vez alcançado o acordo restaurativo, deve este ser encaminhado ao Judiciário, com intervenção necessária do Ministério Público e Defensoria Pública ou advogado para homologação. A justificativa de sujeição do caso resolvido às instâncias judiciais é medida legitimadora do processo de cidadania e que a eliminação do Poder Judiciário como órgão fiscalizador, ante a regra constitucional da inafastabilidade da apreciação de lesão ou ameaça de lesão de direito, nos termos da Constituição Federal, não é possível por estar a justiça restaurativa atuando dentro do poder punitivo estatal. Tudo como forma de limitar e preservar direitos e garantias. (SALIBA, 2009), Defende-se aqui, no final das contas, que o sistema criminal deve ser mantido, preservando-se suas virtudes historicamente reconhecidas quando limita o poder de punir do Estado e as garantias constitucionais.   3. A CONTRIBUIÇÃO DO MODELO RESTAURATIVO NO ROMPIMENTO DO CICLO DE CRIMINALIDADE E AS SUAS POSSÍVEIS FALHAS DE APLICABILIDADE É notória a elevação vertiginosa dos índices de criminalidade e reincidência no ordenamento jurídico brasileiro, fator que atesta a cada dia mais a falibilidade procedimental do sistema penal vigente. Com fulcro na retribuição repressiva e preventiva, o Estado tem deturpado o sentido de dignidade da pessoa humana apregoado na Carta Mãe de 1988, atropelando os direitos e garantias fundamentais do homem sob a justificativa de responder, através do uso da força e da violência, os anseios de uma sociedade que acredita na eficácia do atual sistema criminal em falência. […] Não é a ameaça real da criminalidade e da violência que constitui o fator decisivo para a política de segurança pública, e sim a percepção de tal ameaça pela coletividade. Estes sentimentos de ameaça dominam a população, são canalizados para reivindicações de imediato arrocho nos meios coercitivos e tornam o relaxamento dos direitos fundamentais bem como a sua corrosão pelo Estado não só toleráveis como objeto de exigência da população. [...] (HASSEMER, 1994, p.163) Diante desse cenário de resistência às mudanças, o ideal de Justiça Restaurativa desponta no quadro criminal brasileiro como uma alternativa complementar de resolução de conflitos. O projeto restaurativo se depara com os mais temidos obstáculos, quais sejam os opositores formadores de opinião, tais como operadores do direito e a mídia sangrenta, a qual vende o espetáculo do crime e apresenta a repressão punitivista como o cerne da resolução de todos os problemas aliados à criminalidade, educando desta forma uma sociedade descrente na eficácia de medidas alternativas. Em consequência de tais empecilhos o modelo de Justiça Restaurativa não pode ser descartado em nosso cenário jurídico, por tratar-se de um sistema flexível e reparador, que aliado ao sistema de justiça criminal vigente proporciona um salto de qualidade ao sistema criminal, pois rompe com um sistema monolítico em decadência para dar lugar a uma alternativa apta a oferecer resultados diferentes e mais adequada à criminalidade. Salienta Radbruch, que “é chegada a hora de” pensarmos não apenas em fazer do Direito Penal algo melhor, mas algo melhor do que o Direito penal, deixando claro em seu pensamento a notoriedade da falência da conjuntura punitivista calcada na imposição da paz social baseada na cultura do medo e da violência. E é com a Justiça Restaurativa que o ordenamento ganha uma nova porta, para responder adequadamente a inúmeros conflitos, de modo participativo e democrático e ainda possibilitando a redução da criminalidade e dos percentuais de reincidência. A proposta lançada neste novo panorama é afastar o atrelamento dos fundamentos da punibilidade à privação, seja esta de liberdade ou de valores e, em tempo impulsionar a instauração de uma cultura criminal que vise resgatar a convivência pacífica no cenário afetado pelo conflito, especialmente naquelas situações em que o ofensor e a vítima possuem uma convivência próxima. Assim, a vantagem primordial que este modelo traz para a seara criminal, centra-se no objetivo de responder às demandas da sociedade sem descurar dos direitos e garantias constitucionais, atestando a necessidade de ressocializar o ofensor, reparar às vítimas e a comunidade e, deste modo, tornar-se uma moderada arma de abolição da criminalidade. Romper com um modelo de Direito Penal engessado e ineficaz não significa desestruturar a tão preservada segurança jurídica. A instalação de um modelo complementar de Justiça se faz necessário frente à visão de que o cárcere não atinge seu objetivo final de restabelecimento do staus quo ante, além disso, as medidas alternativas à privação de liberdade tais como a suspensão condicional do processo e a transação penal, são relativamente falhas na sua abordagem democrática, vez que enfocam a perspectiva do infrator, acarretando um desprestígio do Poder Judiciário e uma sensação de impunibilidade, já que a vítima e a comunidade não interferem no procedimento apesar de serem apontadas como as maiores afetadas. Nos quadros da Justiça Restaurativa a vítima, o ofensor e a comunidade ocupam o patamar de protagonistas na resolução dos conflitos, debatendo e buscando uma forma imediata e direta na correção do dano e no restabelecimento da situação que fora corrompida pela transgressão. Assim, tal arquétipo além de trazer benefícios ao poder público, desafogando os fóruns criminais e seus juízes, beneficia seus atores conforme a necessidade de cada um no cenário devastador do crime. O crime afeta a relação vítima/desviante e a relação vítima/desviante/comunidade, e o papel da Justiça Restaurativa, que se propõe inclusiva e resolutiva, é diagnosticar o problema e em seguida apresentar soluções. Gomes Pinto, explica: “Cabe à justiça oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça, avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente terapêutico seja alcançado”. (GOMES, 2005, p.21-2 apud SALIBA, 2009, p.165). Ao infrator causador do delito, proporciona-se a oportunidade de amadurecimento enquanto ser humano dotado de consciência e dignidade. Reconhecer o erro e buscar o corretivo adequado, a partir da reflexão de que para cada transgressão origina-se uma responsabilidade, resulta na substancial resolução ao problema criado. Além disso, conforme SCURO NETO; PEREIRA, (2011, p. 45): “os infratores ganham do ponto de vista cognitivo: entendem as consequências de seus atos, reconhecem a sanção e têm a chance de desenvolver um sentimento de empatia em relação às vítimas”. Já sob o enfoque daquele que sofre o dano, os diversos benefícios gravitam em torno do imediatismo e da satisfação pessoal. Tais fatores não possuem destaque quando o Estado assume o protagonismo da punibilidade. Através da Justiça Restaurativa a vítima ganha à oportunidade de se expressar, receber desculpas e obter correções (Hudson e Galaway, 1996). Além disso, a reparação do dano sofrido materializa-se ao afetado, minimizando as consequências presentes e futuras na relação entre vítima e ofensor. E ainda, assumindo o lugar de terceiro componente nessa teia, a comunidade também terá seu proveito garantido, pois uma vez realizada a exata e segura aplicação do procedimento restaurativo, a consequente resolução do conflito garantirá a sensação de que a justiça foi cumprida, já que o infrator foi devidamente denunciado e penalizado pelo dano que causou naquela comunidade. Dissertando sobre o papel de cada partícula desse modelo inovador McCold e Watcher dissertam que: As vítimas são prejudicadas pela falta de controle que sentem em consequência da transgressão. Elas precisam readquirir seu sentimento de poder pessoal. Esse fortalecimento é o que transforma as vítimas em sobreviventes. Os transgressores prejudicam seu relacionamento com suas comunidades de assistência ao trair a confiança das mesmas. Para recriar essa confiança eles devem ser fortalecidos para poder assumir responsabilidade por suas más ações. Suas comunidades de assistência preenchem suas necessidades garantindo que algo será feito sobre o incidente, que tomarão conhecimento do ato errado, que serão tomadas medidas para coibir novas transgressões e que vítimas e transgressores serão reintegrados às suas comunidades. As partes interessadas secundárias, que não estão ligadas emocionalmente às vítimas e transgressores, não devem tomar para si o conflito daqueles a quem pertence, interferindo na oportunidade de reconciliação e reparação. A resposta restaurativa máxima para as partes interessadas secundárias deve ser a de apoiar e facilitar os processos em que as próprias partes interessadas principais determinam o que deve ser feito. Estes processos reintegrarão vítimas e transgressores, fortalecendo a comunidade, aumentando a coesão e fortalecendo e ampliando a capacidade dos cidadãos de solucionar seus próprios problemas. (MCCOLD; WECHTEL, 2010, p.211). Posto isso, não se pode deixar de mencionar a importância e vantagens na instalação de tal modelo de Justiça no ordenamento jurídico brasileiro, e em especial ao seu sistema penal. Além de afastar a ideia arraigada de que a justiça só é possível a partir da violência e da repressão estatal, o ideal restaurativo ainda possibilita a celeridade na resolução de um amplo número de conflitos banais que ocupam a justiça criminal e atravancam os serventuários e operadores do direito de atuar em casos mais relevantes e graves (tais como crimes dolosos contra a vida e crimes violentos contra o patrimônio). Com a instituição deste novo panorama o Brasil apresenta um modelo capaz de proporcionar uma queda vertiginosa da superlotação dos seus presídios e delegacias, que rompendo com as recomendações constitucionais de defesa das garantias dos direitos fundamentais, encabeçam uma vasta lista de problemas de segurança pública no país. A problemática central abordada é encontrar a solução para a redução dos índices de violência e reincidência criminal no país. A proposta da Justiça Restaurativa é tratar da patologia a partir dos seus próprios agentes causadores (o infrator) e o meio que o cerca (a comunidade) para que aquele que tenha sua paz violada (a vítima) seja restituído satisfatoriamente. No Brasil os índices de reincidência gravitam em cerca de 77% no sistema criminal vigente, sendo que deste número, cerca de 30% representam mulheres, conforme pesquisa divulgada pelo PNUD, no Informe Regional de Desenvolvimento Humano referente ao biênio 2013-2014. Tais números traduzem a formação de um ciclo vicioso, onde o delinquente passa por um processo de aperfeiçoamento durante a sua privação para voltar às ruas e cometer delitos cada vez mais graves. Assim, em função das condições sub-humanas que o sistema carcerário proporciona aos seus usuários, a tendência é que a população se depare com criminosos mais violentos e revoltados com o tratamento sofrido enquanto recluso. O medo de inovar no sistema penal e a insistência de não reconhecer que o modelo retributivo apenas traz uma falsa sensação de segurança, traz ao ordenamento jurídico brasileiro uma ferida irreparável, vez que gradativamente encarcera um enorme contingente populacional condenando o país a viver um eterno ciclo de violência e privações, que se impõe em desacordo às recomendações constitucionais. E ainda comungando dos ensinamentos de Juarez Cirino dos Santos: “A prisão garante a desigualdade social em uma sociedade desigual, até porque pune apenas os miseráveis. Por isso defendo o desenvolvimento de políticas que valorizem o emprego, a moradia, a saúde, a educação dos egressos. A criminologia mostra que não existe resposta para o crime sem políticas sociais capazes de construir uma democracia real, que oportunizem aos egressos melhores condições de vida [...].” (JUAREZ CIRINO, 2014). Saliente-se que as condições oferecidas nas ruas após a privação, também são fatores que contribuem para que o criminoso volte a andar pelas vielas da ilicitude, pois o estigma que ele carrega por ser um ex-detento lhe acompanha como uma tatuagem tingida sobre a pele. A dificuldade de encontrar uma nova oportunidade de emprego e reconstruir a sua vida social leva o agente a enveredar novamente nas sendas da criminalidade, mesmo após experimentar a terrível sensação de ser encarcerado. Neste raciocínio postula ainda Juarez Cirino dos Santos afirmando: [...] os objetivos do sistema prisional de ressocialização e correção estão fracassando há 200 anos, e muito pouco está sendo feito para mudar a situação. Prisão nenhuma cumpre estes objetivos, no mundo todo. O problema se soma ao fato de que não há políticas efetivas de tratamento dos presos e dos egressos. Fora da prisão, o preso perde o emprego e os laços afetivos. Dentro da prisão, há a prisionalização, quando o sujeito, tratado como criminoso, aprende a agir como um. Ele desaprende as normas do convívio social para aprender as regras da sobrevivência na prisão, ou seja, a violência e a malandragem. Sendo assim, quando retorna para a sociedade e encontra as mesmas condições anteriores, vem à reincidência. (JUAREZ CIRINO, 2014). É oportuno ressaltar neste momento que o modelo de Justiça Restaurativa importado do direito alienígena, obriga a execução de um processo de remodelagem em seu modus operandi. Essa compatibilidade deve ser além do formalismo legal e procedimental e além da adequação judicial, a partir do pressuposto de uma mudança no senso de justiça da sociedade e em especial dos seus usuários. Desta maneira a Justiça Restaurativa é capaz de propiciar uma redução dos índices de reincidência e facilitar o gerenciamento da segurança pública brasileira. Conforme dado extraído do site Consultor Jurídico, a Inglaterra ampliou os seus investimentos na implantação do modelo de Justiça Restaurativa por obter resultados significativos em pouco tempo. Neste período, somente 1% das vítimas se submeteu aos procedimentos propostos pelo modelo. Contudo, os números ainda são animadores, vez que 85% das vítimas ficaram satisfeitas depois de dialogar com seus algozes. No caso dos ofensores, uma estimativa diz que a Justiça Restaurativa reduz em 14% as chances de reincidência no crime. Dados do governo revelam que metade dos presos na Inglaterra comete outro crime em até um ano após deixar a cadeia. Esse número sobe para quase 60% se forem considerados só os crimes de baixo poder ofensivo, como furtos. (ALINE PINHEIRO, 2014). No Brasil a Justiça Restaurativa adentrou o território oficialmente, por volta do ano 2005, quando a secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, patrocinado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- PNUD apoiou a elaboração de três projetos-pilotos nas cidades de Porto Alegre, São Caetano do Sul e Distrito Federal (PNUD, 2014). Na cidade de Porto Alegre, primeira cidade brasileira em que a Justiça Restaurativa foi aplicada também nos casos de crimes de natureza grave. Neste caso, o procedimento adota a estratégia de aguardar cerca de um a dois para promover o primeiro encontro. O magistrado gaúcho Leoberto Brancher, coordenador do projeto, afirma que “experiências de outros países indicam que o risco de novas agressões, nessas situações, é grande”. Os resultados obtidos a partir dessas práticas são positivos, pois após três anos de instituição do projeto, cerca de 380 casos já foram analisados e o índice de satisfação das vítimas que participaram dos encontros de mediação atinge a margem de 95%. Além disso, os índices de reincidência criminal foram reduzidos em 23%. (AGUINSKI e BRANCHER, 2014). O projeto levantado na cidade de São Caetano do Sul, gravita em torno do ambiente escolar e do universo juvenil. A proposta foi materializada no ano de 2005, momento em foram capacitados professores, funcionários e alunos, com o objetivo de aprender a solucionar os conflitos escolares que surgiam nas escolas públicas do município. No ano seguinte, essa capacitação foi ampliada aos outros componentes da comunidade interiorana, passando a ser aplicado também nas ocorrências de menor potencial ofensivo, geralmente associado ao consumo de álcool e drogas, bem como os de violência doméstica. (MELO, 2008) Em 2011, o modelo restaurativo naquela comarca voltou-se também à resolução de conflitos oriundos de crimes de natureza grave. O procedimento que, até então se reduzia ao trabalho dos facilitadores, passou a englobar a participação do Ministério Público, que após oferecer representação contra o jovem infrator, aguarda a homologação do juiz, que uma vez concordando com a instalação do modelo restaurativo para aquele caso, oferece uma proposta de acordo a quem cometeu o ato infracional e a suas vítimas. (MELO 2008) No Distrito Federal o projeto piloto também teve início no ano de 2005 em âmbito de Juizados Especiais Criminais na Competência Geral do fórum do Núcleo Bandeirante, vigorando para os crimes de menor potencial ofensivo, ou seja, os passíveis de transação penal e composição civil. No ano de 2007, através da Portaria GPR 406, o TJDF criou o Centro de Resolução Não Adversarial de Conflitos – CNRC, posteriormente e por meio da Portaria GPR 680, o modelo foi desvinculado do CNRC no intuito de ganhar uma maior amplitude na resolução dos conflitos. Já no ano de 2012, foram instituídos a partir da Resolução Nº 13 do TJDFT, ao tratar da estrutura organizacional do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, que a Justiça Restaurativa passaria a compor o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do Programa Justiça Restaurativo vinculado diretamente ao Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPECON e à Segunda Vice-Presidência do TJDFT (TJDFT, 2014). O procedimento da resolução de conflitos no Distrito Federal também guarda as suas particularidades próprias da realidade social do seu público alvo. Neste caso, a equipe de facilitadores é formada por juízes, promotores, defensores públicos, psicólogos, assistente social, secretárias e os mediadores voluntários, que são treinados e capacitados para lidar diretamente com o estudo dos casos práticos. Na prática, inicialmente esta equipe efetua uma pré-seleção dos casos que podem ser atingidos pelo modelo, em seguida vítima e infrator são consultados em separado e é neste momento que estes irão conhecer o que é justiça restaurativa e poderão manifestar seu interesse em participar ou não dos seus procedimentos. Este encontro é de suma importância, pois objetiva preservar a vítima de situações constrangedoras que possam ser apreendido com revitimização, o que se daria, por exemplo, com a negativa dos fatos pelo infrator. Após colher os consentimentos e demonstrar às partes e aos seus apoiadores como se dá o procedimento restaurativo, realiza-se o primeiro na presença do autor do fato e seus apoiadores com a vítima e seus respectivos apoiadores. Depois disso, passa-se para a produção do acordo, que deverá ser assinado por todos os envolvidos e por fim homologado pelo juiz. A ação penal ficará suspensa em torno de quatro meses, com o fito de se realizar a intervenção restaurativa. Além de analisar rapidamente como surgiram os projetos pilotos no ordenamento nacional, é válido mencionar a gênese da Justiça Restaurativa baiana. O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia instituiu através de Resolução nº 8 de 2010, o Núcleo de Justiça Restaurativa em Largo do Tanque na cidade de Salvador, oferecendo amostras de que o projeto é eficaz e necessário na redução das insatisfações dos usuários do sistema criminal vigente e nas quedas das taxas de reincidência no estado (TJBA, 2014). A implantação do projeto no estado nasceu da continuidade dos trabalhos desenvolvidos no Balcão de Justiça e Cidadania, que posteriormente originou o Núcleo de Conciliação Prévia nas Varas de Família e o Núcleo da Psicologia e Assistência, respectivamente nos anos de 2006 e 2007. O modelo nasceu com o intuito de desafogar a imensidão diária de audiências preliminares da Extensão do 2º Juizado Criminal, que não conseguia efetivar o procedimento conciliatório em todos os processos em função da pequena disponibilidade de tempo e de serventuários. A partir do momento em que os facilitadores voluntários assumiram o papel de mediadores frente às mesas de conciliação os resultados positivos passaram a despontar e a equipe foi ganhando amplitude e notoriedade. Já no ano de 2005, após receber capacitação em mediação de conflitos a equipe interdisciplinar do Núcleo Restaurativo, passou a atender os usuários, ouvindo as vítimas e também participando das audiências preliminares e de instrução quando necessário. O Núcleo de Extensão do 2º JECRIM do Largo do Tanque tem promovido um aprimoramento no atendimento aos envolvidos em crimes de menor potencial ofensivo, após a instalação do Núcleo de Justiça Restaurativa, possibilitou-se uma maior efetividade na execução de acordos em condições mais adequadas e com uma maior disponibilidade de tempo e de gerenciadores (TJBA, 2014). O Núcleo Restaurativo baiano ainda recebe o apoio da Polícia Civil, por intermédio de delegados de polícia, escrivães e investigadores capacitados pelo núcleo, oriundos das áreas das delegacias da 2ª CP (Liberdade), 3ª CP (Baixa do Bonfim), 4ª CP (São Caetano), 5ª CP (Periperi) e também Especializada em Tóxicos e Entorpecentes (Deten). Estes são capacitados para atuarem de acordo com o procedimento restaurativo sempre que haja compatibilidade do interesse das partes com os objetivos do Núcleo. A Polícia Militar do Estado da Bahia também atua em apoio às ações do Núcleo através da 14ª Companhia Independente de Polícia Militar de Lobato, o qual seu comando, possibilitou a capacitação de seus Oficiais e Praças junto ao Núcleo Restaurativo baiano. E é por meio dessa rede de cooperação que o estado da Bahia se incorpora ao crescente movimento de justiça restaurativa brasileiro, preconizado pela ONU e fomentado pelo CNJ, a fim de aperfeiçoar o sistema judiciário e a segurança pública nacional, oferecendo uma melhor prestação jurisdicional à comunidade e reduzir os índices de criminalidade e reincidência. O TJBA divulgou dados que apontam os resultados obtidos na atuação do Núcleo de Justiça Restaurativa na região do Largo do Tanque, em Salvador. Dados Estatísticos do Núcleo de Justiça Restaurativa Muito embora os números e os argumentos apontem os bons e pontuais resultados do novo modelo de Justiça Restaurativa e a sua capacidade de otimização do ordenamento jurídico brasileiro, a sua disseminação e valorização ainda é muito discreta no cenário político nacional, gerando embaraço a uma possível e eficaz regulamentação legislativa deste modelo no âmbito do processo penal. Howard Zehr (2008) defende que para alcançar as mudanças que o sistema penal tanto anseia, é preciso usar novas lentes, uma vez que as lentes que usamos ao tratar o crime e a justiça afetam aquilo que usamos como variável relevante. É preciso retirar o crime do pedestal abstrato, onde o colocamos e passar a enxergá-lo com os olhos da Justiça Restaurativa, que enxerga o crime como uma violação de pessoas e relacionamentos, que cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que acarretem em reparação, reconciliação e segurança. (ZEHR, 2008). Um dos maiores problemas que acompanham a Justiça Restaurativa no Brasil gravita em torno da sua positivação em âmbito nacional, fator que precisa ser precedido por intensos debates para que, em função da delicadeza do tema, não seja elaborada uma legislação falha que tolha o potencial deste modelo em reduzir os danos causados pelo atual sistema de justiça criminal. Neste sentido pontua Josefina Castro: “Se, em grande medida, o poder de sedução e o sucesso destes novos dispositivos de justiça informal podem ser atribuídos à fluidez e indefinição conceitual que os caracteriza e que lhes proporciona uma natureza plástica capaz de servir diferentes e até contraditórios objetivos, a existência de um tão amplo consenso deve pelo menos fazer-nos pensar. Que pretendemos com a institucionalização destes dispositivos? Realizar um ideal de justiça comunicacional baseada no diálogo entre ofendido e o autor da ofensa e, portanto, uma justiça mais próxima, mais participativa e reconstrutiva, ou responder a objetivos mais pragmáticos de simplificação e aceleração da justiça penal?”. (CASTRO. 2006 p. 153 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 178). Partindo deste pressuposto, Sica acentua que a flexibilidade do modelo de justiça restaurativa “deve ser aproveitada, num primeiro momento, para viabilizar programas experimentais com o objetivo de testar a operatividade real da mediação no sentido nacional e aprender com as falhas para, num segundo momento, pensar-se em legislar a matéria”. (SICA, 2009, p. 225 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 178). Ratificando este entendimento, infere-se, pois, que a timidez de previsão legislativa no ordenamento pátrio, não se refere à ausência de diretrizes básicas para a sua regulamentação. A Constituição Federal, a Lei 9.099/95 e a Lei Maria da Penha recomendam o uso dos métodos de caráter restaurativo ainda que não haja previsão legal. A Carta Mãe clarifica em seu texto, no artigo 98, inciso I, a opção assumida pelo Estado em utilizar as técnicas de conciliação e transação para os casos que envolvam crimes de menor potencial ofensivo. Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante o procedimento oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; A Lei 9099/95, que regula a atuação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, também traz em seu bojo a recomendação de utilização de métodos restaurativos. Um conjunto de artigos que de modo coordenado representa aquilo que a legislação nacional tem de mais vivo em termos de Justiça Restaurativa. Esta lei regula os procedimentos cabíveis no julgamento de crimes de menor potencial ofensivo, quais sejam a composição civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo e ainda nos casos de conciliação. E por fim, compondo o conjunto normativo positivado que norteia os fundamentos e a aplicabilidade do modelo restaurativo, têm-se as disposições previstas na Lei 11.340/2006, a chamada Lei Maria da Penha, conforme preconizado em seus artigos 29 e 30. Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. Posto isso, resta demonstrada a fragilidade do sistema restaurativo no que tange ao quesito positivação em âmbito nacional. Não se encontra hoje uma regulação específica capaz de situar com obrigatoriedade seus procedimentos como etapa anterior ou complementar da ação penal. O debate que merece ser suscitado gravita em torno de responder o porquê de o poder legislativo não dedicar especial atenção para o debate do tema. Atualmente, o que se tem engavetado no Congresso Nacional é o projeto de Lei 7006/2006, que propõe modificações diretas no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Juizados Especiais Cíveis e Criminais, implementando a situação processual com sua aplicação nos casos de crimes e contravenções penais. No PL 7006/2006, ainda é proposta a modificação do vigente Decreto- Lei 3649/1941 (Código de Processo Penal), com a inclusão no Capítulo VIII, dos artigos 556 a 562. Resta demonstrado, que a reorganização sistemática do ordenamento jurídico deve anteceder a sua institucionalização enquanto modelo precedente e complementar ao processo penal ou até mesmo como alternativa autônoma ao modelo vigente. Cumpre reforçar que além do fortalecimento formal do modelo com a sua afirmação legislativa na atual conjuntura, faz-se indispensável uma política de valorização social do modelo restaurativo, empreendendo campanhas de promoção da sua efetividade frente aos seus possíveis usuários, pois este processo de modificação de perspectiva no Brasil enfrenta inúmeros obstáculos culturais. No entanto, além de emergencial, é salutar pensar num novo panorama, vez que não se pode conviver com um modelo de justiça criminal em que todos acabam perdendo. Pois, conforme postulado por Marcos Rolim, aprender a resolver conflitos de modo cooperativo e não violento baseado numa ética de diálogo, tendo como objetivo a responsabilização coletiva e participativa de todos os envolvidos, é, como visto, um grande desafio. O ato de se fazer justiça por meio do diálogo que esclarece e conscientiza e não por meio do julgamento, se apresenta “subversivo” em relação à ideologia historicamente enraizada que se baseia no “poder sobre o outro” e não no “poder com o outro”. Uma ideologia em que “(…) a idéia de Justiça Criminal como equivalente de punição parece já assentada no senso comum, o que é o mesmo que reconhecer que ela se tornou Cultura.” (ROLIM, 2004, p.10). CONCLUSÃO O atual sistema retributivo, muito embora haja sofrido inúmeras reformas, ainda continua falho e decadente, e com isso os índices de criminalidade manifestam um crescimento progressivo. Trata-se, como se fez entender no bojo desta monografia, de um sistema incapaz de atingir as metas político-sociais propostas, em função da inconsistência de seus próprios princípios (“reabilitação”, “prevenção” e “privação”), que, tradicionalmente, oscilam entre a impunidade e o rigor excessivo. A Justiça Restaurativa é uma modalidade de resposta ao crime distinta da resposta dada pela Justiça Criminal tradicional, porque entre as suas virtudes está o fato de buscar resolver o problema do ilícito penal considerando suas causas e todas as suas consequências. Por certo, essa proposta de resolução de conflito encontra limitações no ordenamento jurídico brasileiro, estas de cunho social, cultural e também legal. Países como o Brasil, marcados por uma intensa onda de desigualdade social e miséria, onde a sociedade acredita que a imposição de castigo e dor compõe o conceito de justiça, e que o diálogo e compreensão não podem fazer parte deste cenário satisfatoriamente, necessita ser reeducado e reapresentado a conceitos como cidadania, solidariedade, perdão e civilidade. Uma sociedade que clama por incentivo e investimento em educação, saúde e em assistência social, também deve basear seu clamor num sentido maior e mais amplo de respeito á dignidade e aos direitos básicos do homem. O ideal de Justiça Restaurativa desponta no quadro criminal brasileiro como uma alternativa complementar de resolução de conflitos na seara criminal. Defende-se aqui que o direito penal deve ser mantido e que sejam preservadas suas virtudes historicamente reconhecidas, enquanto limite do poder de punir do Estado e escudo das garantias constitucionais. Advoga-se, neste caso, por uma abertura, um espaço para que haja um modo de se “fazer justiça” apto a oferecer resultados diferentes e mais adequado à criminalidade. Como já foi argumentado, o sucesso da Justiça Restaurativa está principalmente, assentado na crise de legitimidade do sistema de justiça retributivo. Ela reúne, por não se tratar de um modelo monolítico, processos relativamente simples como a mediação. Privilegia, em regra, qualquer forma de a ação que tenha por escopo a reparação das consequências de um crime. A sua finalidade precípua é essa, a restauração do status quo ante que fora violado pelo surgimento do conflito. Como se fez entender aqui, um modelo determinado apenas nos processos não tem as qualidades de restaurativo. Centrar-se na finalidade é essencial para qualificar a Justiça Restaurativa como um modelo restaurador. Corrobora-se com os ideais maximalistas com algum tempero, pois para que aconteça um verdadeiro diálogo restaurativo, faz-se necessário a voluntariedade. Esta é, sem sombra de dúvidas, a mais importante característica da Justiça Restaurativa. O princípio da autonomia e voluntariedade na participação em práticas restaurativas talvez seja a razão pelo qual se concorda aqui que a Justiça Restaurativa deve ser trabalhada integrada com o atual sistema. Mantem-se, desse ponto de vista, as garantias do sistema criminal atual e privilegiam-se os objetivos da Justiça Restaurativa. Conclui-se diante de tudo o que foi exposto aqui, que o ideal pautado na restauração do dano, através da participação direta do ofensor, da vítima e da comunidade é possível no Brasil. Adotando-se oficialmente dentro do arcabouço legislativo e da organização dos órgãos do Poder Judiciário esse modelo alternativo de resolução de conflitos, será, a seara criminal respeitada o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e os Direitos Humanos.   REFERÊNCIAS AGUINSKI, Beatriz e BRANCHER, Leoberto. Relato da implementação do Projeto Piloto de Justiça Restaurativa junto à 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, RS. Disponível em www.justica21.org.br. Acessado em 02/05/2014. BÍBLIA SAGRADA. Nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2001. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2004. Camila Silvia Martinez Perbone. AS VANTAGENS DA APLICAÇÃO DE PENAS ALTERNATIVAS. Disponível em: http://baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes. Acessado em 21 de maio de 2014 CRUZ, Rafaela Alban. Justiça restaurativa: um novo modelo de justiça criminal. 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