Lázaro e Ernesto "Che"
Por Luiz Francisco Ballalai Poli | 12/01/2008 | Contos"Morrer em vida é viver na morte."
O século é o XXI. O país, algum. A rua é a mesma de decênios atrás. A figura humana que vislumbro ao longe é tosca, fria, imóvel, mórbida. Meu espírito fleumático só permite mais um gole no scoth barato que alicia minha mente com suas mãos de fada, enquanto o frio de agosto me esquenta a alma. Olho fixo o animal moribundo. Está por certo morto. Infiro que talvez tenha sido feliz. A vida é imperfeita demais para aqueles que têm com o que se preocupar. Penso em acionar a milícia citadina. Recuo. Será que morreu de morte matada ou de morte morrida? – como dizem os caboclos. Passeio meus olhos pelo firmamento negro deixando por instantes a preocupação com o indigente. A vida é mesmo uma merda!
As economias que tenho feito não bastam às despesas com meus mundanos bens de consumo; sei que acordarei tristonho, fatigado e com enxaqueca medonha face ao álcool; a vida é mesmo uma merda! Tenho que trabalhar; odeio o meu emprego; será que osmilhões de desempregados que vagueiam pela pátria são mais tristes do que eu? E a violência!? Por certo, neste instante, algum ser humano está sendo espancado em algum ponto do planeta enquanto a Polícia negocia com o tráfico e os parlamentares participam de uma festa de vinhos e queijos paga com o dinheiro público. Nem sequer fiz a quadra na loteria. Basta! A vida é mesmo uma bosta! E a mulher!? A mulher não dá sossego! Quer meus beijos! Eu quero paz, saco!Bem que isso poderia dar um samba. Um samba triste, mas ainda sim um samba.
De volta ao mundo, já bem bêbado, ouço um cão ladrar de leve, longe; depois perto, perto, mais perto e... está ao meu lado. Deus, como fede! Mas até que é belo. Piedosamente belo!
Num desses impulsos ébrios de entendimento anímico, dou um nome ao cão fedelho: Ernesto! Não me pergunte por que, mas o danado me lembrava o "Che". Talvez pelo aspecto peludo, olhar penetrante e carismático ao extremo.
Entabulo, pois, um fervoroso diálogo político com Ernesto, daqueles que só os comunistas são capazes – e olha que nem comunista eu sou. De súbito, o animal verte seus olhos à diagonal longínqua. Eu acompanho seu misterioso olhar. O moribundo - aquele que estava morto -levanta-se. Sim! Lázaro está em pé! Tropegamente, inicia seu caminhar com passos de cavalo manco em minha direção. Estou atônito. A adrenalina é despejada aos litros em meu corpo gordo. Prostrou-se a minha frente. "Me dá um cigarro?". Deus! Ele quer fumar! Ele não quer comer, beber, violentar-me; ele apenas quer fumar! Tiro do meu bolso o manjar salvador do andante. Acendo-o e entrego-o já mais calmo. Ele diz "obrigado" e se vai. Ernesto "Che" o acompanha, virando por vezes sua cabeça canina em minha direção, enquanto Lázaro lhe lança chutinhos carinhosos no lombo nu; o cachorro balança o rabo sarnento; o cachorro está verdadeiramente feliz! Alguns instantes e desaparecem na noite. Com eles esvaecem-se todos os meus pensamentos acerca da política da fome, da corrupção e da insegurança. Todo o entendimento acerca da política do relógio, do trabalho depressivo e do salário exíguo, só existem, para mim, Lázaro, Ernesto "Che" eDeus. Deus! Sou a testemunha viva de que Deus existe. Deus está no cigarro de Lázaro e no penetrante olhar de "Che".
Recolhi-me ao meu quarto. Já me apresentava sóbrio. Fechei a janela pois a madrugada enregelava os ossos. Rezei um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Persignei-me e lancei-me aos braço de Morfeu.
Durante muito tempo deixei, e ainda deixo, um cigarro escondido no canto do portão da minha casa para que Lázaro o encontre nas noites frias, nas noites tristes, nas noites da realidade das ruas. Reconheço que quase sempre, pela manhã, o cigarro permanece na mesma posição em que o deixei. Somente às vezes noto que ele não está ali. Geralmente isso ocorre nas manhãs mais tristes, mais cinzas, mais desditosas. Nesses dias eu parto para algum lugar recluso e agradeço a Deus cada detalhe abençoado de minha existência. E Quando vem a noite, dirijo-me ao quarto, vou até a janela, e escuto um ladrar distante, algo que me parece querer dizer: "ouça, ainda estamos por perto".