Lamentação

Por Romano Dazzi | 04/06/2009 | Crônicas

LAMENTAÇÃO

De Romano Dazzi

 

Acabo de descobrir que tem alguma coisa de muito errado no meu relacionamento com os meus semelhantes.

 

Não consigo dizer, fazer e nem ao menos pensar, o que quero.

 

Desde que nasci, me deparei o tempo todo com gente que quer me ensinar como viver, como comer, como beber, como respirar, o que estudar, aprender e fazer na vida.

 

Empurraram-me para onde eu não queria ir, obrigaram-me a assumir posições e opiniões, enfiaram-me na cabeça mil coisas difíceis e inúteis (só depois descobri que quanto mais difíceis, mais inúteis eram),  encheram-me de conselhos, de ditados, de instruções, de portarias, de decretos, de regulamentos, de ordens, enfim.

 

Só tenho encontrado, por anos e anos, gente que se aproveita de mim, me faz de bobo, me passa para trás, sobe nas minhas costas e ainda dá risada.

 

Não tenho direito a nada, tudo já é dos outros; eles se apropriaram de tudo, marcaram a propriedade e alugam, revendem, emprestam, fazendo-me pagar tudo com o meu sangue.

 

Meu trabalho, minha cultura, meus esforços, minha inteligência, não valem nada. Sem inteligência, provavelmente, valeria mais.

 

Nada é meu, nada pode ser meu; se eu  quiser obter qualquer coisa, devo pedir, pagar, implorar, esmolar.  Parece quase que todos tem direitos, menos eu.

 

Pode ser um serviço, a aposentadoria, uma passagem de avião, até um simples corte de cabelo.

 

Sou obrigado a me inscrever previamente, aguardar chamadas, tirar senhas, fazer filas enormes diante de guichês, onde funcionários mal humorados me atendem com desdém, como se eu fosse um pária – e mesmo que eu não o seja, me fazem sentir como tal.

 

A aposentadoria me é paga quando eles querem, não quando eu preciso dela.. E não sei porque, mas estou sempre no último dia da escala.

 

Até com o ônibus, está tudo difícil; dá de não parar no ponto, porque está cheio, ou porque o motorista tem pressa, ou porque viu que sou velho e ele não suporta que eu viaje de graça; deve estar pensando que o estou roubando...

 

Ou dá de nem aparecer por horas, porque é tarde da noite, ou porque é domingo e tem poucos passageiros; não paga a pena.

 

Mudam o percurso e eu acabo caminhando um quilometro a pé.

Os médicos gostam disso; mas querem me obrigar a fazer mil exames; um a cada três meses, outro a cada mês, a cada 15 dias, ou toda semana.

 

Se aparece algum sinal, se sinto alguma coisa diferente, lá vai uma bateria de vinte exames; se não tem, pior ainda; com certeza – dizem entre eles, - este organismo obsoleto está preparando alguma, que vai estourar já,  já. 

 

Quanto à comida, já fomos e voltamos dez vezes: O açúcar faz bem! É fonte de energia, tome açúcar! ; blasfema, o açúcar faz um mal dos diabos! Use adoçantes, daqueles que te deixam um gosto amargo na boca até a próxima refeição.

E depois, você descobre que se sabe, há décadas, que os adoçantes são cancerígenos.

 

E o óleo, então? Depois de usar o azeite por trinta anos, descubro que é péssimo; entope as artérias, provoca enfarte;  use óleo de amendoim, de milho, de soja, de algodão, de máquina, de qualquer coisa, menos de oliva.

E agora, de repente, outros trinta anos depois, meia volta, volver: não era nada disso: o óleo de oliva é o mais saudável....

Os outros, têm acidez altíssima, gorduras malvadas, vêm com placas de colesterol embutidas, e sei lá o que mais.

Pergunto, com a humildade dos ignorantes: Quem mudou, neste tempo?  Fui eu, foi o óleo, ou foram as necessidades do mercado ?

 

Quando comprei o apartamento, pensei ter virado dono de alguma coisa. Que nada: sou possuidor de um aviãozinho de papel, que é uma fração ideal de qualquer coisa intangível, um direito duvidoso e um monte de obrigações, de taxas, de limitações e de cuidados. Deus me livre!

 

Entre os deveres, tratar bem o síndico, os porteiros, o pessoal da limpeza; reverenciar os vizinhos, respeitar a lei do silêncio, não bater pregos, não brigar pela vaga no estacionamento, não cantar, não assobiar, não arrastar os pés, não levantar a voz dentro de casa, mesmo em brigas de casal, não deixar subir o volume da TV, perdoar  os gatos, as crianças e os cachorros (dos outros), não necessariamente nesta ordem.

 

Pagar regularmente o condomínio e a prestação, necessariamente nesta ordem. Não gastar muita água e não arranhar o piso. Não ocupar o elevador mais do que o tempo estritamente necessário.

Mesmo que os outros não dêem a mínima para estas normas.

 

Primeiro o sol era bom; fortalecia os ossos, melhorava a assimilação do cálcio, fazia dentes mais fortes;  agora é um veneno, ficar no sol é uma atitude, no mínimo, suicida. Melhor mesmo, é bronzear-se no instituto na esquina, a preços módicos. Mais barato até, diga-se de passagem, que alugar um guarda sol na praia. Mas a osteoporose vive quebrando fêmures de velhinhos...

 

Vivemos de substituições. Água no álcool, álcool na gasolina, margarina na manteiga, farinha de mandioca, de milho e de arroz no pão e nos bolos. E agora, também água oxigenada no leite fresco e melanina no leite em pó.

 

E o sal?   Sempre comi alimentos salgados; é um dos prazeres mais simples o inócuo da vida, sentir o gosto arcaico do sal – sim, porque viemos do mar, mesmo que ninguém entre nós se lembre disso.

Agora, o sal é o penúltimo inimigo.

Abaixo o sal, abaixo a pressão alta ! 

Meus velhos viveram até quase os cem anos, com a pressão tão alta  que horrorizaria qualquer cardiologista atual.

 

Enquanto isso, o diabetes, a obesidade, as doenças cardíacas continuam levando antes do tempo uma boa parte da humanidade.

E ainda bem; porque aumentando como está a vida média, chegaremos num instante a oito bilhões de pessoas. Não há planeta Terra que agüente...

 

Estamos aflitos por uma montanha de problemas, bem  maiores que nós; e os “grandes” ficam se esquivando da responsabilidade e  fazem parecer  que somos nós  - eu  e você - os grandes culpados pelos desastres que vem vindo.

 

Está vendo, seu imbecíl, o aquecimento global, o buraco na camada de ozônio, as calotas polares que se esfrangalham, os vulcões que explodem, os tsunamis no oriente e as chuvas torrenciais em todo lugar? Está vendo o que você fez ?

 

Fica passeando de carro pra lá e pra cá, deixa a torneira aberta enquanto escova os dentes, gasta papel higiênico à-toa, usa geladeira e ventiladores, para se refrescar, enquanto a humanidade está ameaçada de extinção, por causa de você!!!!!

 

Está vendo, agora, que desgraça você é para todos nós? Você não tem vergonha, não tem sentimentos, não tem um mínimo de bom senso? Cretino !!!

  

Esta é a tônica que, por baixo do pano, sutilmente infiltrada, ouço e descubro todos os dias.

 

Ninguém se lembra dos três mil e tantos poços de petróleo que arderam durante meses, no Kuwait, lançando ao céu algumas gramas de poluentes.

Ou das nuvens radioativas, que encobriram áreas enormes, e que espalharam doenças mortais, em seus movimentos descontrolados, depois de cada acidente nuclear – e não foram poucos.

 

Ninguém se lembra de quantos fogos de artifício se queimam em uma única guerra, seja no Líbano, na Chechênia, no Iraque, no Afeganistão, ou em qualquer outro maldito Putistão deste planeta maluco e doente.

 

Vê, então,  como somos todos reféns dos médicos, dos funcionários públicos, dos advogados, do “complexo militar-industrial”, e dos políticos; estes então merecem um capítulo a parte; quando entram na carreira, fazem uma lobotomia; assim nunca lembrarão amanhã o que disseram hoje e embaralham inimigos de ontem com amigos de hoje e vice versa.

 

Tenho tanta vontade de acordar um  dia sem tiroteios na zona norte, sem conluios de políticos que aumentam reciprocamente suas remunerações, sem aviões que saem e chegam atrasados, sem levantes de presos e prepotência de policiais.

 

Me dê logo meu passaporte, meu Deus, porque neste mundo não estou agüentando mais. Mas até para passaporte é preciso implorar, porque a Casa da Moeda está fazendo corpo mole. 

 

Quer saber de uma coisa? Vou me embora do mesmo jeito, agora mesmo... e já vou tarde!.....,