LAGOA DOS BODES
Por Helio Leite | 03/04/2011 | ContosLAGOA DOS BODES
Escrito por Helio Leite
Naquele dia os meninos saíram para passear na Lagoa dos Bodes. Renato caminhava à frente dos outros. A manhã estava fresca e uma brisa soprava fazendo levantar as folhas secas.
- Chegamos pessoal!? exclamou Renato.
Mariana foi à última a chegar, queixava-se dos outros colegas que andaram muito rápido, deixando-a para trás.
- Eu falei que não dava certo menina vim nesta aventura. Isto é coisa de homem ? Falou Carlos Francisco.
- Coisa de homem, coisa de homem; como se achar seixos coloridos na beira do rio fosse coisa somente de menino ? disse Mariana.
- O problema não é achar seixos coloridos, é o cuidado em apanhá-los. O rio é perigoso, tem cobras venenosas, bichos estranhos ? disse Carlos Francisco.
Mariana, já quase chorando, disse: Aqui nem é um rio, seus bestas, é uma lagoa.
A Lagoa dos Bodes é um local conhecido pelos seus seixos coloridos, muito valorizados pelos turistas e artesões. Poucas pessoas se aventuravam a coleta do material. Diziam que existia uma bruxa que morava dentro da lagoa e que a mesma não gostava de ninguém furtar as pedras, por essas serem mágicas.
Vovó Caluga contava estórias sobre desaparecimentos de pessoas que tomavam banho na lagoa ou tiravam as pedras dos seus locais ou levavam consigo os seixos coloridos, principalmente o seixo de cor azul turquesa que era o mais raro. Esse seixo, segundo vovó Caluga, tinha o poder de controlar as tempestades. Diziam que em noites de tempestade quem tivesse o seixo azul, chamado de pedra das estrelas; podia colocá-lo dentro de uma bacia de porcelana, com chá verde e alecrim e invocar os espíritos das águas e os espíritos dos raios pedindo que eles acalmassem a tempestade e logo após ouviriam um grande grito ordenando que chuva passasse e tudo ficaria calmo.
- Vem logo Mariana ? disse Carlos Francisco. Vamos começar a recolher os seixos. Aquele que achar uma Pedra das Estrelas é o bambambã.
- Carlos, Renato, Arthur, Gláucio vamos embora. Estou com um mal pressentimento. Acho que hoje não é um bom dia para coleta de seixos- falou Mariana.
Arthur: Então vamos embora logo, mamãe nem sabe que eu estou aqui.
- Arthur, deixa disso ? disse Gláucio.
Gláucio disse: - Até eu compreendo porque Mariana está com medo; é uma menina, mas você, Arthur. Tu não és macho? Bicho! Vai amarelar...
Então Renato disse: - Mais uma menininha no grupo. Se vocês estão com medo então podem ficar sentados, nesta pedra grande.
- Não Renato, não vai, não vai meu irmão, gritou Mariana, agora com grossas lágrimas rolando pelo rosto.
- Que menina enjoada, antipática. Fica sentada, eu já te disse. Se te levantares levas um cascudo, disse Renato.
Mariana, mais calma, sentou-se próxima a beira da lagoa, enquanto os meninos começavam a colocar vários seixos num pequeno cesto plástico.
O vento sobrou mais forte e o calor se fez sentir com mais intensidade. A lagoa estava com as águas turvas, não espelhava o azul do céu de setembro. Havia um silêncio na mata. O bem-te-vi que normalmente cantava o dia todo estava, agora, mudo.
Mariana olhava atentamente os meninos que corriam ao longo das margens da lagoa. Quando um dos meninos achava alguma pedra logo gritava: achei, achei, esta é a mais bela de todas. E assim, as horas foram passando. O calor aumentou e o vento parou de sobrar.
Mariana disse: -Tá bom, pessoal, o cesto está cheio, vamos embora, já é tarde, mamãe deve está preocupada conosco. Temos que voltar para casa. Preciso ajudar mamãe a varrer a casa e lavar as loucas. Além disso, à noite terei que ir a missa de dez anos de falecimento do papai e ainda não engomei as roupas que deveremos usar.
- Espera menina, vamos tomar um banho na lagoa, está fazendo muito calor e estou suado, disse Gláucio.
- É rápido, não vamos demorar, disse Arthur.
- Não gente, Vovó Caluga sempre falou que está lagoa é perigosa, que existem monstros que devoram crianças e até adultos; foi Vovó Caluga quem disse ? falou Mariana.
- Já vai começar com tua chatice, Marina - disse Renato.
Quando os meninos estavam por acabar de arrumar os últimos seixos no cesto ouviram os gritos de Renato: - achei, é ela, é ela mesma, a Pedra das Estrelas, eu a achei, bem perto daquele pé de tamarineiro. Vejam como ela é bonita, não é muito grande, mais é muito bonita, é bem redondinha, redondinha.
Todos os meninos, inclusive Marina, correram ao encontro de Renato. Nos olhos de quase todos os meninos as expressões de fascínio, de alegria pela conquista. Abraços e vivas entoaram no espaço. Entretanto, o olhar de Marina continha mais medo do que nunca e a menina começou a correr em direção ao caminho de volta para casa.
Os meninos correram e ao alcançar a menina, seguraram-na pelo braço, impedindo-a de continuar em sua corrida. Os olhos da garota estavam cheios de temor, o pequeno rosto angelical, agora rubro, apresentava manchas escuras, talvez devido o calor que aumentava com o passar dos ponteiros do relógio.
A água fria da lagoa, agora, refletia o azul do céu. Ouviam-se cantos, distantes, de pássaros e o ruído de uma serra cortando madeira. O cheiro de flores silvestre perfumava o ambiente e os meninos resolveram entrar nas águas doces da grande lagoa.
Mariana continuava sentada em uma pedra, olhando os irmãos e os amigos que banhavam bem próximo as margens da lagoa.
Agora calma, aparentemente, a menina rezava em silêncio pedindo a Deus que nada acontecesse aos seus amigos e em especial aos irmãos. Cansada de esperar, a menina sentiu uma sonolência que pouco a pouco a dominou e assim ela adormeceu.
De repente, a menina despertou dando um grito ao ver Renato e Gláucio se afogando. Carlos Francisco assustado saiu da água e correu mata adentro. Arthur tinha desaparecido.
Os pequenos olhos de Mariana delatados ao máximo procuravam por socorro. Então a menina lembrou-se das estórias da vovó Caluga e da bruxa da lagoa. Os corpos dos meninos afundaram, sem deixar qualquer sinal. Mariana corria de um lado ao outro procurando os meninos. O cesto com os queixos estava embaixo do tamarineiro, coberto com folhas de salsa. A menina não conseguia mais gritar, um suor frio percorria sua coluna vertebral, as mãos frias, agora pareciam blocos de gelo. Então Mariana ouviu uma voz muito longe que a chamava: Mariana, Mariana, Mariana vem ...De repente, uma força descomunal apoderou-se da menina e então sua voz ressoou forte como um trovão.
- Dona bruxa, por amor de Deus, me ajude, salve os meninos, salve Renato e Gláucio. Ajuda-me, socorro, socorro - disse Marina
Nesta hora, um homem apareceu do nada e entrou nas águas, puxou os meninos pelo cabelo, trazendo-os para as margens da lagoa. Renato apresentava o rosto esverdeado, a barriga alta. Gláucio estava com a pele amarelada como cera velha, tinha a mão fechada e os dentes cerrados.
- Moço me ajude, salve Renato e Gláucio; disse a menina.
No desespero, Mariana não tinha registrado na memória a fisionomia do homem, a única coisa que ela via eram as roupas já bastante gastas e o chapéu que criava uma sombra sobre o rosto da criatura, mas naquele momento, nada disso interessava a Mariana, apenas queria salvar os meninos.
- Nada mais poder ser feito, menina Mariana, eles estão mortos, disse o homem.
- Não, não, isso não é verdade, disse a Menina.
- Mariana, minha filha, o que aconteceu ? disse uma voz que vinha de dentro da mata.
Na direção da menina vinha o seu pai, acompanhado por algumas pessoas que Mariana não conseguiu reconhecer. Todos perguntavam o que tinha acontecido.
Marina não conseguiu falar, as lágrimas do rosto secaram rapidamente e uma expressão de ódio e dor se misturou, tornando aquela criança numa mulher que tinha o peso de muitas gerações de sofrimento. A menina não mais ouvia as vozes das pessoas que aumentavam em quantidade, nem os gritos da sua mãe que chegou logo depois.
O olhar da menina se projetou para a bela e misteriosa superfície da Lagoa dos Bodes. Ao longe, mas de repente bem próximo das margens, a menina viu um barco com velas triangulares na cor azul turquesa que navegava criando pequenos movimentos nas águas. Uma bela mulher vestida com um rico traje africano, de dentro da embarcação, sorriu para Marina, acessou para a mesma com um leque azul e falou algo que a menina não conseguia compreender.
Marina voltou-se para trás e viu a família carregado o corpo de Renato e Gláucio, de longe Carlos Francisco chorava. Então a menina se aproximou do cesto que continha os seixos coloridos, bem em cima estava ela, a Pedra das Estrelas. A garota começou a jogar as pedras na lagoa, cada pedra ao tocar a água se transformava numa rosa de uma cor diferente. Algum tempo depois, que durou uma eternidade humana, a lagoa estava cheia de rosas que flutuam ao sabor do vento que sobrava sobre o espelho de água. A última pedra jogada na água foi a Pedra das Estrelas. Esta quando caiu na água exalou um perfume de flores silvestres e novamente o barco apareceu, agora, ancorado próximo ao pé de tamarineiro.
A bela dama do barco desceu lentamente da embarcação e se dirigiu até onde estava Mariana que permanecia sozinha no local, já que, as pessoas haviam ido embora levando os corpos dos mortos.
- Linda criança porque me chamastes? Estava eu tecendo o destino dos bons e dos maus, quando ouvi as tuas preces, disse a estranha dama.
- Você ainda pergunta? ? Disse a menina. Não vês que estou sofrendo pela morte dos meus irmãos ? prosseguiu.
A estranha dama disse: Não sofras assim, Mariana. És muito nova para se preocupar com o destino, com o futuro dos outros. Na vida existem coisas que podemos controlar, escolher, mudar; há, entretanto, outras que não temos o poder de influenciar, de alterar, elas simplesmente acontecem, independe da nossa vontade, do nosso querer, de nossas forças. Viva a vida como ela se apresenta, quando se ama, tudo é eterno, não existe tempo, nem espaço. Não tenhas medo de viver, de experimentar novas sensações, de compartilhar a alegria e os pequenos prazeres.
- Como poderei ser feliz se meus irmãos estão mortos e eu não consegui impedir esta desgraça? Disse Mariana.
Olhando para o céu, Mariana disse: Sou apenas uma criança, não tive como evitar essas mortes, por quê? Por quê? Deus não me ajudastes?
- Quando se ama, nunca somos pequenos. Somos verdadeiros gigantes, o bem atrai o bem. O amor é a semente que faz germinar a grandeza da bondade, disse a dama ao voltar para a embarcação.
- Querida, não sofras, há dia de sol e de chuva, há momento de dor e alegria, há primaveras, verões e outonos - disse a dama, quando acenava para Mariana; no momento em que a embarcação iniciava seus movimentos no espelho azul da lagoa.
-Mariana, Mariana, acorde, já é tarde, temos que voltar para casa. Eu disse que não deveríamos te trazer para colher seixos, disse Renato.
Então a menina despertou e viu o céu azul cheio de nuvens brancas e amareladas.
Fim