José de Alencar: Um criador de mulheres cândidas
Por Ana Paula das graças borba costa | 03/03/2011 | LiteraturaJosé de Alencar: criador de mulheres cândidas e magníficas
Ana Paula G. Borba Costa (FAVALE)
Renata Chambella O. Barboza (FAVALE)
Abstract:
The paper discusses the concept of originality of genders: female and male. For this we used the test of Lidia Maria Nazaré Alves and several considerations of Simone de Beauvoir e Clarice Lispector. Verify the extent to which these ideas are complementary.
We also made considerations about the woman?s place marked on the discourse of tradition, based on studies of Nádia Batella Gotlib.
Another point was the chapter worked of Simone de Beauvoir-"A Amorosa"-what is female?s an example of complete submission and demonstration of traditional roots. Women: "Iracema and Lucíola", creations of "José de Alencar" are the key point of this work.¹
KEY WORDS: woman, female, genders, Amorosa, Lucíola, Iracema.²
1- "Mulher não se nasce mulher, faz-se mulher"
Lídia Maria Nazaré Alves (2003) afirma na esteira de Simone de Beauvoir "que não se nasce mulher, faz-se mulher". Cita que essa idéia está inserida em obras que nos levam a crer que os sistemas culturais criam os gêneros: feminino e masculino; contradizendo dessa forma a cultura tradicional que tende para o ocultamento dessa construção; fazendo-nos acreditar na originalidade dos gêneros. E ainda Alves quem afirma ser Clarice Lispector uma das escritoras que mais atentam para o desocultamento da originalidade do gênero. Ela o faz tanto pelo traço temático quanto pelo viés de expressividade e simbolismo. No primeiro caso, suas personagens são levadas a busca de seu eu "sem mascaras"³. No segundo, ela tece sua narrativa focada na desconfiança de que a linguagem, não é capaz de representar o ser realmente.
Lídia observa que até aqui as idéias de Beauvoir e Lispector, complementam-se. E afirma que o tom interrogativo do titulo de seu ensaio advém da leitura da novela de Clarice que se intitula "A hora da estrela", (1977). Na qual o personagem central representada pela figura feminina Macabea não segue as mesmas concepções das construções das personagens femininas, revelando-se uma mulher diferente, construída em oposição aos estereótipos das outras, alienada e vazia. Vive a travessia da vida primária interior para a vida exterior. Lídia cita outras personagens a título de exemplificação como GH, protagonista de Paixão segundo GH e Ana do conto "Laços de família", já que ambas buscam a travessia do mundo exterior para o mundo interior.
O trabalho diferenciado na construção da personagem Macabea é o avesso das histórias de GH e Ana O que reforça nosso interesse são as palavras escritas nas páginas finais da novela. Ei-las "Seu esforço de viver parecia uma coisa que, se nunca experimentara, virgem que era ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido" (Lispector 1992:103), questionamento esse que segundo Lídia gerou o título polêmico de seu ensaio. São destacados vários motivos para a criação dessa obra diferenciada. Tais como: o desejo de atingir um público maior, de citar a mulher nordestina, o desejo de safar-se de uma hipotética acusação e a vontade de desabafar. A escritora revela a necessidade de expor aos leitores o sistema cultural abandonado por GH e Ana.
Tomando por base a escritora Clarice Lispector, velada sob o pseudônimo de Helen Palmer. Lídia cita o "Correio feminino", do jornal O Correio da Manhã, final década 50 e inicio da década de 60. Trata-se de uma coluna, no segundo caderno do jornal, o que contraria sua produção literária. Seu discurso promovia o estabelecimento de uma fronteira muito rígida entre homem e mulher. A exemplo do título da coluna que nos fala por si mesmo e o tom de alguns artigos que nos levam a crer que essa fronteira já apresentava suas fissuras.
Segundo a colunista "a feminilidade" é a capacidade se ser diferente do sexo masculino tanto em palavras, pensamentos e atitudes. Com isso a mulher emancipada, o que é próprio do feminino, resgata os mitos do tradicionalismo: saúde, beleza, o instinto de dona de casa e a incomparável capacidade de gerar filhos.
O papel de Helen Palmer era o de contribuir para a produção de sinais que distinguiam o feminino do masculino. Atitude essa que concerne com o estilo de vida que Lispector tinha antes de retornar ao Brasil. A autora deu sua importante contribuição na construção de um princípio que promovia a diferença de gênero e das relações sociais deste, pois desconsidera a diferença, com isso pode-se afirmar que todo o mundo de Helen Palmer foi transladado para a obra "A Hora da Estrela". A autora aborda a questão da mulher nordestina, fora dos padrões de beleza e feminilidade de Helen, sem requinte e tampouco classe. Trata-se de Macabea, uma mulher que se tornou uma metáfora, na qual a autora se serviu para denunciar quaisquer práticas pedagógicas hegemônicas designadas a formação e/ou reprodução do gênero, cerceando a mulher (mas também ao homem) seus direitos como ser humano.
Macabea é descrita segundo o Ensaio como um ser feminino, porém nesse estágio primário de vida evoca uma necessidade de se reorganizar os conceitos referentes a gênero e sexo, já que o primeiro está associado ao biológico, o segundo está mais ligado ao social.
A coluna de Helen Palmer, de acordo com as concepções de Lídia é um ponto interessante para a crítica feminista que almeja a descoberta dos processos textuais de construção de gênero, desnaturalizando-os. Porém tais estudos devem ocupar-se de outras formas de exclusão, optando estudar as praticas sociais que se ocupam da formação de sujeitos, excluídos devido à impossibilidade de inclusão nesse processo seletivo e hierárquico de genderização.
A autora que serviu de base para os estudos de Lídia foi Simone de Beauvoir.
De posse de tais estudos observamos que de fato Simone de Beauvoir desenvolve um minucioso estudo sobre a mulher. Para ela a mulher é construída desde o nascimento. Afim de confirmar sua idéia cita outros autores tais como: Nietzsche. Ele diz que o homem e mulher exprimem a palavra amor de maneiras distintas.Para ela, um dom supremo de corpo e alma e sem restrição, já para ele esse sentimento é totalmente ao contrário.
No mesmo estudo Cécile Sauvage acentua que é preciso que a mulher esqueça sua própria personalidade quando ama. É uma lei da natureza. Uma mulher não existe sem um senhor, sem alguém para dominá-la. A mulher é habituada, desde a infância, a ver no homem um ser soberano. Não há para ela outra saída se não se perde rende corpo e alma em quem lhe designam com o absoluto, o essencial.
Continuando, De Beauvoir cita escreve Irene Reweliotty: "E vós, homens que amarei como vos espero! "Como me regozijo com vos conhecer muito breve: Tu, Principalmente o primeiro" (De Beauvoir, cap. II, pág. 411). Conclui-se que o amor fica em segundo plano com relação ao marido, filhos, sexualidade, carreira são muitos mais importantes e significativos.
As grandes amorosas, muitas vezes, não usaram o coração nos amores juvenis, aceitaram primeiramente o destino feminino tradicional: marido, casa, filhos.
Os psicanalistas afirmam que a mulher busca no amante a imagem do pai. Ela sente-se feliz, alegra-se porque o amante a chama de "filhinha, criança querida". Com isso, tornar-se criança nos braços de um homem gera uma grande satisfação para a mulher, devolvendo-lhe um vinculo profundo com a infância.
Irene Reweliotty escreve: "Quando chegará quem saberá dominar-me?" Gosto de ti sentir superior a mim. Muitas mulheres só se entregam ao amor sendo por sua vez amadas e o amor que lhe manifestam basta algumas vezes para se tornar apaixonadas. "Os menores movimentos de minhas mãos em meu regalo, de meus braços, de meu rosto, as inflexões de minha voz enchiam-me de felicidade." (Cécile Sawage). (Beauvoir, Cap. II, pág. 412)
A mulher apaixonada, por vezes, se consagra a heróis mortos ou inacessíveis, a fim de nunca os confrontar com seres de carne e osso, estes fatalmente contradizem os sonhos. Daí os slogans desabusados.
"Não se deve acreditar em príncipes encantados. Os homens não passam de pobres diabos. Ela dedica-lhe todos os seus instantes, ela quer viver unicamente por ele, mas quer viver, ele deve consagrar-se a fazê-la viver." (Beauvoir, Cap. II, pág. 413)
Escreve Mme d? Agoult a Lizzt: "Amo-o por vezes bobamente e nesse momento não compreendo por que não poderia, não fosse e não devesse ser para você um pensamento absorvente como você o é para mim." (Beauvoir, Cap.II, pág. 413)
A princípio, a amorosa encantava-se em satisfazer o desejo do amante. Não conseguindo, sente-se humilhada, inútil a ponto de o amante fingir ardores que não experimenta. Toda amorosa verdadeira é mais ou menos paranóica, e por vezes força o homem a mentir com perguntas como: Tu me amas? Como ontem?Tu me amaras sempre?Habitualmente faz perguntas no momento em que não há tempo para as respostas matizadas e sinceras ou então em que as circunstâncias as impedem. A situação da amorosa é análoga: ela só quer ser essa mulher, amada, nada mais tem valor a seus olhos. Basta que o amante esteja ao seu lado. Verificamos nesse ponto chave a total situação de dependência da mulher em relação ao homem.
A mulher amorosa está sempre alerta, quer saber o que ele faz, para quem olha, com quem fala. O ciúme é para a mulher uma tortura enlouquecedora. Uma das desgraças da amorosa está em que seu próprio amor a desfigura, aniquila, fica na posição de serva, assemelhando-se a uma escrava, uma fidelidade total.
Juliette Drowet conheceu as angústias da suspeita em relação a todas as mulheres de quem Hugo se aproximava, esquecendo somente de temer Léonie Biard, que durante oito anos fora amante dele.
"Só sei amar" diz Julie de Lespinasse. Eu que sou tão somente amor: este título de romance é a divisa da amorosa; ela é somente amor e quando o amor se acha privado de seu objeto, ela não é mais nada. Uma amorosa encontra segurança no casamento, demonstração de raízes tradicionais. Ela tenta segurar o amado por laços sólidos como à procriação.
Diz Nietzsche: "Uma mulher que ama como mulher, ainda se torna mais profundamente mulher". (Beauvoir, Cap. II, pág. 437)
No dia em que for possível a mulher em sua força, não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para se encontrar, não para se demitir, mas para se afirmar, nesse dia o amor torna-se a para ela, como para o homem, fonte de vida e não perigo morto (Balsac). (De Beauvoir, Cap.II, pág. 437)
Passemos à análise de "O lugar marcado da mulher no discurso da tradição": De acordo com as considerações Nádia Batella Gotlib, o trabalho desenvolvido por Rita Lemaire acrescentou dados de suma importância para uma história marcada pela opressão do discurso feminino na civilização ocidental moderna. Se num primeiro momento: a tradição oral, a mulher manifestava livremente desejos e necessidades, numa posição igualitária ao homem. Numa segunda instância: o da tradição escrita e culta: a mulher ocupa lugar de estrita passividade. A imagem feminina é desenhada e divulgada de acordo com o gosto e valores do sexo masculino.
À mulher foi destinado um lugar marcado pelo silenciamento. Nessa perspectiva encontra-se a mulher representada, ao longo da tradição literária, como aquela que deve levar uma vida de espera, submissão, sofrimento, saudade; tudo isso regado como muitas lágrimas ou até mesmo a doença, podendo culminar com a morte. Iracema, obra de José de Alencar é um exemplo clássico desse fato.
A obra inicia-se narrando a beleza da personagem, associando-a a natureza. Ei-las "Virgem dos lábios de mel." "Tinha os cabelos mais negros e que a graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira." Iracema é descrita como a perfeição maravilhosa da natureza brasileira. É o próprio espírito harmonioso da floresta virgem. Porém toda essa harmonia se vê interrompida com a chegada do homem branco e cristão, Martim. A indígena o fere com a flecha, porém para, em seguida rápida e compassiva.
Nádia Batella Gotlib, nesse instante observa algo bastante significativo no relato da reação do homem branco e estrangeiro que não teve coragem de reagir contra uma mulher, pois tinha princípios religiosos herdados de sua mãe, nos quais a figura feminina é representada como símbolo de ternura e amor. Conforme relata a frase "Sofreu mais da alma que da ferida"... De acordo com a autora, há um grande simbolismo contido no gesto de Iracema que ao quebrar a flecha e guardar consigo a ponta dolosa, nos faz pensar no estereotipo feminino vocacionado a culpa e ao sofrimento silencioso. Contudo, também pode ser compreendida como metáfora do recalcamento, a que a mulher deverá submeter seu lado ativo, compreendido como grosseiro e pouco feminista.
A entrega da virgem destinada a Tupã ao guerreiro branco é um marco da desobediência as leis da tribo. Pois ela entrega ao estrangeiro o segredo de seu povo e seu corpo prometido. No capítulo XV, esse episódio é relatado com ambigüidade, entre uma atitude ativa e passiva por parte da mulher. Em conseqüência da transgressão, Iracema abandona seu povo e suas terras acompanhando Martim. Longe de suas origens, sozinha e com Martim ausente para dedicar-se as colonizações.
Iracema, a virgem da espera constante, começa a definhar de saudades e solidão, sujeitando-se uma vida amorosa marcada pela expectativa do retorno de seu amado. Fato esse que demonstra a fragilidade feminina e a necessidade de viver em companhia de um homem. Exemplo clássico da "Amorosa". De acordo com a teoria, uma das desgraças da "Amorosa" está no fato de que seu amor é tão intenso que acaba por aniquilá-la, colocando-a na posição de escrava.
Depois do nascimento do filho, Iracema se vê exaurida pelo aleitamento. "Iracema curte dor, como nunca sentiu: parece que lhe exaurem a vida..." (Cap. XXXI). (Alencar, pág.93)
Retornando Martim toma nos braços o filho recém nascido e assiste a morte de sua amada. Cumpre-se dessa forma a profecia de Tupã: a mulher paga com a vida por transgredir o voto de virgindade que a fora imposto.
De acordo com as considerações da autora, essa é uma obra rica em interpretações. Iracema representa a passagem de um estado instintivamente ativo, enquanto mulher vinculada à natureza para um estado de melancolia. À medida que é comprimida pela cultura do homem branco cristão. Simbolicamente se pode reconhecer o processo pelo qual personagem feminina, ao ser cooptada pela cultura, vê-se aprisionada a uma fantasia romântica da ternura e amor de herança cristã.
Freud interessou-se em analisar o silenciamento que a mulher ficou aprisionada durante muito tempo, este se esforçou para entender a voz silenciada. Principalmente através da analise dos casos de histeria. Chegara à conclusão que como a mulher não tinha direito de expressão, ela podia apenas ter segredos, referentes ao amor, que a tornava doente. Interpretando a sexualidade como uma ciência. Foi constatado que a mulher ficou privada de se interessar intelectualmente pelos problemas sexuais que lhes foram manifestos como pecado, impedindo-as de pensar e consequentemente de agir. Consagrando-as um lugar de extrema passividade em relação ao homem. De acordo com Freud a inferioridade intelectual feminina deve ser atribuída à inibição do pensamento, conseqüência da repressão sexual. A ciência despertou interesse em ouvir a mulher, porém ainda assim a mulher não escapou de torna-se objeto, agora objeto teórico da Psicanálise.
De acordo com Sarah Kofman, que desenvolveu a tarefa de reinterpretar a teoria freudiana com os olhos da mulher. Constata que há uma demora na questão da bissexualidade, quando descreve a evolução do feminino. Ele se serviu desse termo para sustentar a tese que só há uma libido masculina.
A realidade feminina representada na literatura, assim como as contradições do saber psicanalítico sobre a mulher, tende por alimentar as dificuldades que enfrenta o discurso feminino em desalojar-se no lugar marcado por equívocos que lhes foi determinado "a incrível tarefa de tornar-se mulher" entrevista por Freud e referendada por Lacan, amplia-se necessariamente para a tarefa de "tornar-se sujeito", sujeito de sua auto-expressão e do seu pensamento reflexivo, arrancando esta ponta farpada do recalcamento a que se obrigou viver a polaridade ativa na mulher.
Na obra Alencariana "Iracema" observamos que o papel feminino está sempre condenado à dependência, a obedecer aos homens. Primeiramente Iracema é propriedade de Tupã, porém ao conhecer Martim apaixona-se por ele e torna-se submissa às vontades de seu amado "Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos para que ela não ouça". Iracema abandona as terras Tabajaras devidos as suas transgressões para acompanhar Martin "Tua escrava te acompanhara guerreiro branco, porque teu sangue dorme em seu seio". (p.46).
A mulher apaixonada se martiriza em nome do amante, é preciso que todos os instantes de sua vida sejam dedicados ao amado e nele encontre a razão de ser (Beauvoir, 9ed. p420); "A alegria para a esposa só vem de ti, quando teus olhos a deixam, as lágrimas enche os seus" (Cap. XX, p. 52). Com base nessa citação, percebe-se, claramente a preocupação de Alencar em difundir na sociedade o lugar marcado da mulher no discurso da tradição.
A linda virgem dos lábios de mel, depois de se entregar ao guerreiro Martim encontra-se obrigada a acompanhá-lo, mas percebe que ele não a deseja como antes "... tua esposa não quer que seu amor azede teu coração; mas que te encha das doçuras do mel". Sente-se atormentada arriscando-se a tornar-se um fardo para aquele de quem se sonhava escrava (Beauvoir, 9 Ed, p, 429). Nesse relato temos mais um exemplo da "Amorosa" que possui um ímpeto de satisfazer a todo instante seu amado, chegando a ser paranóica, ao ponto de forçar o seu amante a mentir sobre seus sentimentos para com ela. Seu principal anseio é tê-lo sempre ao seu lado.
Em Iracema, temos a oportunidade de observar a afirmação do papel feminino como "o outro" do homem. A personagem indígena abandona sua tribo e tradição, com isso renuncia a si mesma, pois ao eleger o amor como o objeto supremo de sua existência, muda seu destino. Nesse ponto, levamos em consideração as argumentações de Nádia Batella Gotlib. Relatando que à mulher, ao longo da produção literária foi destinado um lugar marcado pelo silenciamento; como aquela que devia levar uma vida desenhada pela espera, dependência, angústia e saudade; tudo isso regado com muitas lágrimas, podendo culminar com a morte. (GOTLIB, 1990, pág. 36)
Analisamos outra obra, na qual o personagem feminino é marcado pela opressão, submissão e angústia, trata-se de Lucíola de José de Alencar.
A narrativa se passa na cidade do Rio de Janeiro em 1855. Conta a história de Lúcia e Paulo. Ela uma cortesã de luxo e ele um rapaz recém chegado do interior que vai para o Rio para conhecer a corte.
Paulo a vê pela primeira vez e se encanta, julgando-a meiga e angelical, apesar de saber por seu amigo que se tratava de uma prostituta de luxo. Ele não conseguia enxergá-la como uma pessoa fria e vulgar, só conseguia lembrar-se dela com ternura em seu coração. Lúcia por sua vez o despreza, ignorando sua presença ao ponto de deixá-lo vê-la com outros homens. No entanto, Paulo já nutria um sentimento de amor para com ela e acreditava que por dentro ela era outra mulher, por isso não desistiu de seu amor, tentando conquistar aquela misteriosa e faceira mulher que para ele era perfeita em candura.
Lúcia também era acometida do mesmo sentimento por Paulo e por isso pediu-lhe perdão e se entregou de forma pura e sincera a este amor, ao ponto de vender sua luxuosa casa e ir morar em outra mais modesta. Desabafou sua triste história de vida e sobre o triste e perverso caminho que teve que passar para sobreviver.
Conta Lúcia que em 1850 houve um surto de febre amarela e toda sua família adoeceu. Então para poder sobreviver se entregou a Couto, porém seu pai ao descobrir o caminho que havia tomado a expulsa de casa. Então com apenas 14 anos de idade, Maria da Glória se viu obrigada a forjar sua própria morte, ocupando então o papel de Lúcia que era sua amiga. Com isso passou a ser cobiçada por todos e como cortesã pagava os estudos de Ana, sua irmã mais nova.
Agora Paulo e Lúcia ou Maria da Glória, seu nome de batismo, formavam um só, dois corações apaixonados e dispostos a lutar contra tudo e todos, mas infelizmente a realidade com a qual convivia era bem diferente. Lúcia se martirizava por sua vida passada, não se julgando digna de desfrutar de seu amor. Em seguida pede a Paulo que se case com sua irmã, porém este, se nega a realizar.
Lúcia aborta o filho que esperava de Paulo. Ela se recusa a tomar remédio para expelir o feto morto, dizendo "Sua mãe lhe servirá de tumulo". Morre docemente nos braços de seu amado, indo amá-lo por toda eternidade.
Paulo depois da morte de Lúcia ampara Ana, cumprindo a promessa que fizera a Lúcia que serviria de pai a sua irmã até que ela se casasse. Esta veio a casar se após seis anos e ele amparou-se em sua tristeza, vivendo solitário por ter perdido o grande amor de sua vida.
Segundo Antônio Cândido e José Aderaldo Castello, Alencar demonstrou a capacidade de desmascarar e denunciar certos aspectos da realidade social e individual, fazendo ele, apesar da idealização romântica, um modesto precursor de Machado de Assis.
Na melhor tradição romântica, Lucíola é um livro que fala de paixões tórridas e contraditórias. É o quinto romance de Alencar e o primeiro na trilogia que ele denominou de ?perfis de mulheres?. Situa-se entre seus romances urbanos que representam um levantamento da nossa vida burguesa do século passado. Embora seja um romance, revela uma ou outra manifestação do Estilo Realista. Em todos seus romances urbanos, o tema central é o amor, aborda a situação social e familiar da mulher, em fase de casamento e paixão. Mas o amor na compreensão da mentalidade romântica da época "Um amor sublimado, idealizado, capaz de renúncias e sacrifícios, de heroísmos e até de crimes, mas redimindo-se pela própria força, acrisolada de sua intensidade e paixão". (Oscar Mendes, in José de Alencar- Romances Urbanos, Rio de Janeiro, Agir, 1965, Col. Nossos clássicos, pág. 10)
As mulheres já foram vistas na Literatura como intocáveis anjos de beleza inatingível, puras como os querubins no céu. Tocá-las seria um erro que colocaria abaixo o mundo de ilusões do apaixonado cavalheiro. As mulheres românticas eram assim. José de Alencar não se limitou aos valores da sociedade e com isso criou Lúcia, que antes era Maria da Glória, mas mudou o nome para fingir-se de morta e viver no mundo da prostituição. Porém foi uma prostituta diferente; foi uma mulher cândida que também teve o direito de amar, apesar de não se sentir digna de ser amada e respeitada. Seu trágico fim faz ver que ela jamais se perdoou.
Lúcia foi um personagem feminino que se diferenciava pela incrível capacidade, evidenciada por Palmer de ser diferente dos homens em atitudes, palavras e mentalidade.
Há uma dualidade no caráter de Lúcia; de um lado a mulher meretriz, depravada e desprezada pela sociedade, ou seja, a própria encarnação do MAL."Como se trata de nomes, eu também proponho uma mudança, bocejou a Rochinha. Em lugar de Lúcia, diga-se Lúcifer" (ALENCAR, pág.36). Ambos estão associados pela capacidade de perverter, atentar e seduzir. Por outro ponto verificamos a presença de uma mulher inocente, cândida, a extrema permanência do BEM com o coração virgem e a alma pura, Maria da Glória. Lembrando Nossa Senhora de Glória venerada pela Igreja Católica.
A exímia prosa de Alencar aplica o seu refinado cromatismo, o seu gosto pela metáfora caracterizadora, à representação das metamorfoses de Lúcia, a mulher a um só tempo virginal e lasciva, na moldura dos interiores burgueses da corte. (MERQUIOR, 1996, p. 117)
Paulo admirou a candura de Lúcia desde o primeiro instante:
§ "A lua vinha assomando pelo cimo das montanhas fronteiras; descobri nessa ocasião, a alguns passos de mim, uma linda moça, que parara um instante para contemplar no horizonte as nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrelado. Admirei-lhe do primeiro olhar um talhe esbelto e de suprema elegância." (Alencar, 1995, p. 14§). No entanto podemos perceber também a instabilidade das opiniões masculinas. Já que Paulo foi incapaz de sustentar sua opinião a respeito de Lúcia, sentiu-se envergonhado diante do comentário de seu amigo sobre a vida que ela levava. Lúcia tinha sempre consciência de sua realidade. A candura da infância; o sacrifício da honra à saúde do pai; a brutalidade fria com que é violada condiciona toda sua vida. A lembrança de uma inocência perdida é não apenas possibilidade permanente duma pureza futura, mas a própria razão do seu asco à prostituição.
O sentimento de Paulo despertado por Lúcia foi outra evocação à figura feminina. Uma prostituta despertava cobiça e encanto aos homens, instintos, os quais não se misturavam aos sentimentos. Porém, fugindo a esse estereótipo, Alencar colocou Paulo "fragilizado" diante dessa mulher, ficou dividido em meio a convenções ou ao que realmente pensava como observamos no trecho a seguir:
"Quando me lembrava das palavras que lhe tinha ouvido na Glória, do modo por que Sá a tratara e de outras circunstâncias, como do seu isolamento a par do luxo que ostentava tudo me parecia claro; mas se me voltava para aquela fisionomia doce e calma, perfumada com uns longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpido e sereno; se via o gesto quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta, o meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra (Alencar, 1995, p. 19).
Vê-se que o amor de Paulo por Lúcia foi igual ao amor de Lúcia por ele. A vitória do amor é realçada com grandes glórias na trama, alicerçada de sublimação, renuncias, sacrifícios e heroísmo que triunfam apesar das convenções sociais. Um exemplo da mulher "Amorosa"
O romance na sua intriga e temática visualiza a busca do mais puro sentimento ao ponto de querer aproximar Ana para dar perpetuação na terra do amor puro de Lúcia por Paulo.
O perfil das mulheres, assim como o perfil da Literatura em geral, se transforma conforme os interesses e as mutações sofridas pela sociedade. As românticas e angelicais moças do Romantismo eram o estereótipo do que a burguesia pretendia ser, mas, nem sempre conseguia.
Durante o Realismo os tempos eram outros. A sociedade burguesa já estava estabelecida e surgiam críticos dela. Os realistas retratavam em suas personagens uma coletividade e não situações e características individuais. Por isso, Gustave Flaubert, ao ser questionado em seu julgamento por imoralidade, sobre quem era Madame Bovary, deu a seguinte resposta: "Madame Bovary sou eu".
A história de Emma Bovary, protagonista da Obra de Gustave Flaubert - Madame Bovary é um romance do Séc. XIX. registrado em uma pequena localidade do interior da França.
Emma é uma mulher que se casou apaixonada por Charles Bovary, mas que não sabia o que queria, passando a viver em um mundo que ela mesma desejava, colocando em uma espécie de prática tudo o que lia nos romances ao longo de sua vida. Esta problemática decorre nessa linguagem descritiva da vida pacata de Charles e a vida tumultuada de sonhos e adultérios de Emma. O que nos remete a realidade de hoje, pois se pudéssemos comparar Emma Bovary com algumas jovens do séc. XXI, certamente a consideraríamos uma mulher quase normal, com sublimes variações de humor que seriam controladas com terapia e remédios.
Ela queria ser quem não era, fenômeno hoje designado pela psiquiatria como Bovarismo, a noção da realidade desapareceu por completo em sua vida, deixando-a paranóica, e com isso se sentia engolida tragicamente por suas fantasias que mais tarde acarretariam o fim de sua vida e de sua família.
"Antes do casamento, havia pensado que sentia amor, contudo, como a felicidade resultante desse amor não surgia, com certeza tinha se enganado, pensava ela. E buscava saber qual era, afinal, o significado correto, nesta vida, das palavras felicidade, paixão e arrebatamento, que nos livros pareciam tão bonitas." (FLATUBERT, Cap. V, pág. 30)
Enfim concluímos que a Obra Madame Bovary é dotada de cândidas imaginações românticas, instabilidade emocional, rebeldia (marca registrada), consumismo. Seria então, o protótipo ideal da heroína, ou seja, do perfil feminino que conseguiu encarnar as contradições de seu tempo em que se apresenta como uma percussora dos tempos modernos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos então a chave final deste trabalho, que definitivamente teve seu êxtase em analisar o perfil feminino de duas mulheres que marcaram época em duas obras alencarianas. Dialogamos também com análises da Professora Dr. Lídia Maria Nazaré Alves, discussões com base na distinção de gêneros, enfatizando com textos como a "A Amorosa" e "O lugar marcado no discurso da tradição."
Este trabalho proporcionou a análise critica na observação de que o mundo do Romantismo gira em torno de seu "eu", do que se sente, do que se pensa, do que se quer por isso a desarmonia dos personagens com os valores e imposições da sociedade e/ou da família.
Visualizamos a mulher como guerreira, independente de sua classe social, cor, raça. Ela por si só é possuidora da beleza, da candura e da dor.
Assim nos deleitamos nestas duas criações magníficas de José de Alencar. Iracema, mulher, índia, "a virgem dos lábios de mel" e Lucíola, mulher, urbana "a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição conserva a pureza da alma". Observamos o renascimento do sentimento igualitário, que ambas possuíam de protagonizar a mulher heroína que deixou marcas na Literatura Brasileira.
Traçando o perfil psicológico de Iracema e Lucíola, consideramos a existência de um paradoxo. São mulheres de mundos e crenças diferentes, mas com a alma disposta a viver intensamente o amor, mesmo que para isso tenham que abandonar o sólido convívio da "casa" para se dedicarem unicamente ao amado e ao sofrimento, perdendo dessa forma a própria vida e a identidade. O que caracteriza o exemplo clássico da Amorosa.
Os fundamentos e análises por nós confeccionados foram tomados por base em pesquisas de textos, ensaios, artigos e a leitura de obras de grandes pensadores de nossa Literatura Brasileira, entretanto conferir a ficção com a realidade feminina é algo muito complexo, por isso optamos em evidenciar o perfil feminino e avassalador de Iracema e Lucíola. Duas mulheres idealizadas para o bel prazer masculino e ao mesmo tempo donas de seus próprios desejos e frustrações que as consagraram "deusas" do Romantismo.
Para concluirmos nosso estudo sobre o perfil feminino na Literatura. Levamos em consideração o papel de Emma Bovary na sociedade de sua época. Uma mulher em busca de aventuras e tórridas paixões. O que a torna uma mulher diferente daquele perfil para o qual a mulher era preparada; o de esposa, mãe. Emma não aceitava ser dominada, não era uma mulher submissa, prendada, nem tampouco fiel, um verdadeiro paradoxo da Amorosa.
Notas de fim:
1-
O presente trabalho versa sobre a concepção da originalidade dos gêneros: feminino e masculino. Para isso utilizamos o ensaio de Lídia Maria Nazaré Alves e diversas considerações de Simone de Beauvoir e Clarice Lispector. Verificamos até que ponto essas idéias se complementam.
Também fizemos considerações sobre o lugar marcado da mulher no discurso da tradição, baseando-se nos estudos de Nádia Batella Gotlib.
Outro ponto trabalhado foi o capítulo de Simone de Beauvoir- A Amorosa- que é um exemplo feminino de completa submissão e demonstração de raízes tradicionais. As mulheres: Iracema e Lucíola, criações de José de Alencar são o ponto chave desse trabalho.
2-PALAVRAS CHAVE: mulher, feminino, gêneros, Amorosa, Lucíola, Iracema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALENCAR, José Martiniano de. Iracema. Barueri-SP: Ed Gold, 2004.
ALENCAR, José Martiniano de. Lucíola. Rio de Janeiro: Ed. Dicopel, 1977.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo. A Literatura no Brasil, 3 ed. Rio de Janeiro, 1985.
ALVES, Lídia Maria Nazaré. Mulher nasce mulher? . v.6,p I-253, ago.2003.
GOTLIB, Nádia Batella. O lugar marcado da mulher no discurso da tradição. Rio de Janeiro: Milliet.
MENDES, Oscar, in José de Alencar- Romances Urbanos, Rio de Janeiro, Ed. Agir, 1965.
BEAUVOIR, Simone de, A Amorosa. Cap.II, Rio de Janeiro.