Jorge Luis Borges: Um andarilho da lírica mnemônica

Por ivan santana | 02/09/2010 | Literatura

Abordar sobre Jorge Luis Borges na perspectiva da lírica mnemônica e do seu deslocamento enquanto intelectual citadino implica pensá-lo como poeta da modernidade. A fim de atingir estes dois objetivos é que serão analisados os três poemas da obra Elogio da Sombra: Buenos Aires, Maio 20, 1928 e Elogio da sombra.
Fazer as correlações contextuais de sua obra exige, nos limites deste artigo, uma breve recapitulação histórica do sentido da palavra lírica. A Grécia ? berço da cultura ocidental ? construiu um legado de conhecimento importantíssimo para a história das civilizações. Uma de suas realizações culturais mais engenhosas foi a lírica, gênero poético originário da Lira, instrumento de cordas utilizado na exaltação às suas divindades. Os gregos ? precursores do pensamento filosófico do ocidente ? buscavam a essência das coisas e achou na lírica uma ferramenta retórica capaz de sintetizar a natureza de seu Ethos.
Outros desdobramentos políticos, econômicos, culturais e sociais ocorreram da Grécia Antiga até nossos dias. Focar-se-á em linhas gerais algumas transformações da era moderna.
Na realidade do século XIX a lírica moderna sujeitou-se às transformações e deslocamentos de sentido, decorrente da instabilidade do mundo social. Os discursos multiplicaram-se (cubismo, dadaísmo, futurismo, surrealismo...) exaltando novos elementos poéticos: a cidade, a multidão, a máquina, o progresso, o time dos acontecimentos, fatores decisivos para a nova cara da poesia moderna.
Sabe-se que o pensamento é filho do tempo, de um contexto histórico específico. O pensamento ou ideias modernas não fogem a esta regra por mais que a contrariem, desconstruindo as concepções artísticas que se consolidam no decorrer da história (tradição). A tradição moderna é a negação da tradição, é a crítica à própria modernidade, que somente é moderna pelas constantes mudanças. Na obra Os filho do barro, Octávio Paz denomina este processo de "tradição das rupturas", marca distintiva da identidade moderna e negação da mesma. (PAZ apud PEREYR, 2000, p. 39).
Para Paz (1993), a modernidade toca os extremos do possível, pois sustentou como plataforma subversiva e revolucionária a crítica à própria crítica. Todos os sistemas filosóficos, científicos, religiosos, morais e artísticos foram postos em xeque. Este anseio pela emancipação subsumia-se à singularidade da poesia moderna que tinha como aspiração retratar as realidades e, como projeto ousado que foi, ser a expressão das "aspirações mais profundas e antigas que as geometrias intelectuais dos revolucionários e as prisões de conceitos dos utopistas". (PAZ, 1993, p. 139).
Sobre este antagonismo, Paz ainda diz:

Em um de seus extremos, a poesia toca a fronteira elétrica das visões e das inspirações religiosas. Por isso tem sido, alternadamente e com parecido extremismo, revolucionária e reacionária. (PAZ, 1993, p. 139).


Por isso, não é equívoco afirmar que o pensamento dos poetas modernos e as mudanças nas estruturas materiais e simbólicas da sociedade influenciaram de modo marcante a poesia de Borges, fato que se destaca em toda a sua lírica, desde a figura do flâneur, a memória, o nada e a morte, temas que também são recorrentes nas obras de Mário de Sá Carneiro, Fernando Pessoa e Baudelaire, o último concebido por Rimbaud como "o primeiro vidente, rei dos poetas, um verdadeiro Deus" (RIMBAUD, 1996, p. 42).
Nesta época de rupturas ficam para trás os velhos temas e estruturas poéticas com suas construções esquemáticas e cartesianas. Novos paradigmas são a tônica deste período que se destaca pela desconstrução dos velhos e novos modelos artísticos.
Nos três poemas escolhidos é nítida a presença de versos livres. A fim de ilustrar, ver-se que Buenos Aires não segue a nenhuma forma clássica específica:

O que será Buenos Aires?
É a Plaza de Mayo a que tornaram, depois de ter guerreado no continente, homens cansados e felizes.
É o dédalo crescente de luzes que divisamos do avião e sob o qual estão a sotéia, a calçado, o último pátio, as coisas quietas.
É o paredão de La Recoleta contra o qual morreu, executado, um de meus antepassados (BORGES, 2001, p. 68).


Além dos versos livres, o novo contexto se encarregou de suprimir as temáticas saudosistas inocentes dos poetas românticos, a poesia moderna apresenta-se como estética literária, filosófica e moral que visa encontrar não somente o sentido da existência, mas a constituição mesma da dinâmica da vida e do ser, aspectos que podem ser percebidos no poema Buenos Aires:

O que será Buenos Aires?
[...]
"É, na desabitada noite, certa esquina do Once na qual Macedonio Fernández, que morreu, continua me explicando que a morte é uma falácia". (BORGES 2001, p. 70).


A vida concebida a partir do prisma da memória trás ao lume questões teológicas como a finitude do homem, e do que ele se compõe. Para Borges, de sombra e de memória, que, para ele, metaforicamente, é uma coisa só. Por pensar Buenos Aires como matéria arquitetônica e cultural que se torna um conjunto de sensações, este autor se deixa absorver por esta cidade e funde-se em sua memória. O ceticismo Borgiano advém de vivências cotidianas e da história de Buenos Aires, por isso, recorre às seguintes imagens:

O que será Buenos Aires?
[...]
É uma porta numerada atrás da qual, na escuridão, passei dez dias e dez noites, imóvel, dias e noites que são na memória um instante.
[...]
É o ginete de pesado metal que projeta do alto sua série cíclica de sombras.
[...]
É uma espada que serviu na guerra e que é menos uma arma que uma memória.
[...]
É o rosto de Cristo que vi no pó, desfeito a marteladas, em uma das naves da Piedad (BORGES, 2001, p. 68-69).


Borges realmente foge do saudosismo bucólico dos românticos, construindo seu fazer poético de dúvidas e contradições subjetivas. Há nos versos em destaque a coerência e incoerência de um eu fragmentado, que busca na cidade Buenos Aires a totalidade da existência: "Buenos Aires é a outra rua, a que não pisei nunca, é o secreto centro dos quarteirões, os pátios últimos, é o que as fachadas escondem" (BORGES, 2001, p. 68).
Na poesia Buenos Aires fica evidente esse retorno às origens, apologia de uma lírica da memória. A cidade e a memória identificam-se enquanto consubstanciação labiríntica da existência. Já se manifesta de maneira incipiente a figura do flâneur, do andarilho da cidade, do homem no anonimato, muito bem caracterizado nos últimos versos do poema: "Buenos Aires é [...] o bairro que não é teu nem meu, o que ignoramos e amamos" (BORGES, 2001, p. 70).
Em Maio 20, 1928, além de mostrar, realmente, a consolidação da força poética de Borges na lírica mnemônica, desde que o próprio título é uma reminiscência, traz a imagem do flâneur de modo marcante: "Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas e as portas, não para lembrá-las" (BORGES, 2001, p. 33). Percebe-se que neste fragmento o caminhante está perdido em suas lembranças, anônimo no mundo das cidades, em meio ao mundo dos outros, drama da poesia urbana semelhante ao soneto A Uma Passante, de Baudelaire, como se pode constatar no fragmento abaixo:

A rua em derredor era um ruído incomum.
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum (BAUDELAIRE, 1985).


Os dois poemas têm em comum o tema da morte, pois se em Baudelaire a passante é ausência, passível de encontro só na eternidade, o eu lírico de Borges "é invulnerável como os deuses", "invulnerável como os mortos", (BORGES, 2001, p. 33-34) elementos forjados no contexto da lírica moderna que evidencia a influência deste período e da poesia crítica em autores contemporâneos como Jorge Luis Borges. Assim:

Um relâmpago e após a noite! ? Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes meu destino, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado ? e o sabias demais! (BAUDELAIRE, 1985).


O fatalismo da vida e da morte se impõe constantemente na poesia moderna. Em Baudelaire o destino é impreciso e amargo, enquanto Borges maquina o destino a partir de suas relações temporais.

Sua vontade lhe impôs uma disciplina precisa. Executará determinados atos, atravessará previstas esquinas, tocará em uma árvore ou em uma grade, para que o futuro seja tão irrevogável como o passado.
Age dessa maneira para que o fato que deseja e que teme outra coisa não seja que o termo final de uma série.
[...]
A mão não lhe tremerá quando ocorrer o último gesto. Docilmente, magicamente, já terá encostado a arma contra a têmpora. (BORGES, 2001, p. 33-34).


Outra passagem que traz a preocupação com a morte e a inserção do poeta no mundo urbano, como andarilho citadino e como andarilho mnemônico é a seguinte:

Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará este ou
aquele pátio lateral.
Sem que suspeitassem, já se despedira de muitos amigos.
Pensa no que nunca saberá, se o dia seguinte será um dia
de chuva.
Passa por um conhecido e lhe faz uma brincadeira. Sabe que
esse episódio será durante certo tempo, mera lembrança (BORGES, 2001, p. 33-34 ).


A memória nos poemas borgianos é marcante, pois não se restringe às suas inquietações pessoais, contém uma dimensão muito mais ampla. As sensações, registro de fatos públicos, fazem parte de uma memória coletiva. O mundo e suas relações cotidianas se integram pela memória, inferência lógica que pode ser percebida a partir da leitura do seguinte fragmento: "Na hora fixada, subirá por alguns degraus de mármore (Isto perdurará na memória de outros)". (BORGES, 2001, p. 34).
No bojo destes elementos ? o eu fragmentado, característica da modernidade ? mais uma vez salta aos olhos nos poemas de Borges. A leitura atenta dos versos Elogio da Sombra, não deixa dúvida quanto a este fato: "O animal morreu ou quase morreu/Restam o homem e sua alma" (BORGES, 2001, p. 81).
Em Elogio da sombra, último poema a ser analisado deter-se-á mais detalhadamente nas duas características que se propôs no inicio do artigo: o andarilho e a memória.
Nos versos "Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar/o tempo foi meu Demócrito" (BORGES, 2001, p.81), o autor aponta a ineficiência dos sentidos para compreender a realidade, contudo, há a presença do tempo como fator primordial de lucidez, o tempo como memória cumulativa e qualitativa capaz de descobrir quem realmente o sujeito é. Deste modo, Borges faz uma interpretação otimista do tempo, corroborada nos primeiros versos do poema: "A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade" (BORGES, 2001, p. 81).

Borges ainda diz que:

Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando (BORGES, 2001, p.82).


Posicionamento equivalente, o autor proferiu em palestra na Universidade de Belgrano, Buenos Aires, onde defendeu o livro como o meio de comunicação e instrumento de aprendizagem mais eficiente que há. Nesta ocasião Borges afirmou que o livro é lido para eternizar a memória, colocação que reforça a tese de poeta mnemônico. (CORREIO DO LIVRO, 2002, p.36).
Na sombra em que vive Borges, seus "amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno" (BORGES, 2001, p. 81-82). Mensagem poética que traça o estado de espírito e o perfil de um poeta moderno. Borges pensa sua existência como anulação dos sentidos (mas especificamente da visão) e das funções vitais, para se recompor enquanto memória, enquanto história viva:

Do sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo (BORGES, 2001, p. 82).


Nos versos acima, há uma reflexão em que o autor poetiza o entrelaçamento da memória com o flâneur. Percebe-se claramente um olhar determinista no que tange ao desgaste da vida e o acúmulo de coisas na memória, decorrente da fricção do andar pelo mundo deslocando-se pelos quatro cantos da cidade e de si mesmo, com o tempo passado. Deste cruzamento nasce não uma visão pessimista com a iminência da morte, mas uma perspectiva otimista em que a morte não é abismo, abismo é o desconhecimento de quem o poeta é. A sombra para Borges é caminho para chegar ao seu espelho, à sua álgebra e à sua chave.


REFERÊNCIAS

BAUDELAIRE, C. As flores do mal. 6.ed. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BORGES, Jorge Luís. O Livro. Correio do Livro, Brasília, v . x, n. 4, p. 31-36, mar./abr. 2002.

BORGES, Jorge Luis. Elogio da sombra. 2 ed. Tradução Carlos Nejar, Alfredo Jacques. São Paulo: Editora Globo S. A., 2001.

PAZ, Octávio. A outra voz. Trad. Wladir Dupont, São Paulo: Siciliano, 1993.

PEREYR, Roberval. A unidade primordial: da lírica moderna, Feira de Santana: UEFS, 2000.

RIMBAUD, Arthur. Cartas de um vidente. 3.ed. São Paulo: Siciliano, 1996.