Jonh Locke: um intelectual barroco

Por Prof. Ubiratã Ferreira Freitas | 10/01/2009 | História

O Século VXII europeu: a cultura barroca

Quando se recorta o século XVII pela via política, a ele se associa diretamente o absolutismo e reduz-se horizonte a isso, sem lembrar que, naquele momento, via-se o apogeu da Holanda, França – tomada como modelo do absolutismo – produz a querela entre Antigos e Modernos, a Inglaterra vive uma revolução contra a tirania e a Europa torna-se a “Europa das capitais”.

O que se percebe é que há pouco estudo sobre outras questões do século XVII, como a parte científica, que desponta para um desenvolvimento onde o processo de industrialização da Inglaterra, vai usar as teorias científicas para sua nova forma de produção.
Como relata Falcon e Rodrigues:

O reducionismo da historiografia foi tamanho que continuou-se a ver o século XVII como reacionário, uma volta à Idade Média, e, por conseqüência, ao olhar barroco como estilo da Contra-Reforma. Criando obstáculos para o próprio entendimento da Galileu e das observações científicas. Essas constatações indicam a pobreza da pesquisa histórica no campo das idéias, reduzindo o século XVII a um século de crise (Falcon e Rodrigues, 2006, p. 184).

Os autores buscam entendimento de como o século VXII, se desenvolveu na área científica, e não somente o século da crise européia. Jonh Locke surge com sua teoria do liberalismo político nesse momento de crise, mas para entender melhor esse processo de transformação científica, os autores buscam em Giulio Argan um entendimento mais elaborado de Jonh Locke.

Em primeiro lugar, é nesse século que se estabelecem as grandes modificações introdutoras de modernidade, promovedora da liberdade renascentista, baseada na razão natural e ultrapassada pelas razões sociais. Segundo lugar, o homem pensando como sujeito de primeira ordem, mas reduzido a sujeito de segunda categoria e fazendo parte dele – o meio –, ao qual, o individualismo se apresenta dentro da representação renascentista, mas em um novo tempo de sobrevivência.

As revisões de teorias e novas concepções de pensamentos, dentro do aforismo de reflexão sobre o poder e a política, trazem consigo a revisão geral de todas as teorias e conceitos alinhados com a ordem da representação. É o momento do reconhecimento e da presença intensa da realidade, em todos os campos do conhecimento.

Essas questões tomam conta do debate e assumem formas diferenciadas em várias regiões, assim como respostas também distintas, configurando os vários modos de construção da centralização estatal.

Locke e um dos homens que vai estar imbuído dessa questão. Sua produção tentará atender ao conjunto de demandas do século e é por isso que trata da liberdade humana e religiosa nas cartas sobre a tolerância em 1689, que reflete sobre a liberdade política e a questão do governo em Dois tratados sobre o governo em 1690 e também discute a liberdade econômica em 1691.

Produziu uma das mais interessantes teorias sobra à linguagem, e atuou em múltiplas áreas como a medicina e a vida política, exercendo também cargos públicos.

Usando Locke dedicava-se a ver o mundo por meio da razão e da lógica da observação, traduzia por sua atividade de divulgação das novidades holandesas, e sua atuação como editor lembra-nos muito o pensador holandês Erasmo de Roterdã. Posicionava-se político e religiosamente contra as práticas aplicadas pelo governo e igreja, causando assim o seu exílio na França entre 1675 e 1679, e na Holanda, entre 1683 e 1689.

Esses tempos de exílio derivaram de posicionamentos políticos importantes e de desavenças religiosas. Cada um desses períodos teve desdobramentos positivos que ampliaram o horizonte do pensamento.

Na França, os intelectuais que começavam a radicalizar a questão da revisão das obras clássicas e inauguravam o debate sobre uma nova perspectiva – a moderna. Na Holanda, o aprendizado foi político, o exílio vinculava-se à questão da desaprovação das ações dos reis depois da restauração inglesa.

O contato com intelectuais da Europa abriu-lhe a inserção na República das Letras e colocou-o em presença das diferentes direções que se apresentavam o debate sobre o Estado, que confirmava as desconfianças de Locke sugeridas em textos então já publicados, principalmente entre 1679 e 1682, quando trabalhou junto ao conde de Shaftesbury e pôde apurar suas observações sobre o governo.

As evidências são sua atuação na discussão do processo de restauração em 1681 junto aos que defendiam a liberdade contra as exigências dos novos Stuarts, ficando ao lado dos republicanos, embora fosse monarquista.

A inquietação de Locke já aparece em Oxford quando, entre a carreira clerical e a medicina, escolhe a segunda e torna-se exímio observador da natureza, com larga experiência em ervas e flores. Já havia incômodo em suas relações com o mundo do Christi Church no tocante às questões religiosas e ao modo pelo qual se interpretavam as Escrituras.

Por outro lado, em termos políticos, sua referência eram Hobbes e a sua justificava a do poder absoluto. Por meio de sua relação com o conde de Shaftesbury, do qual sentia-se devedor por ele ter-lhe aberto o cenário real da política.

Aprendeu na Holanda o que era a República das Letras. Foi aí que experimentou a tolerância e redefiniu vários valores oriundos da rígida educação puritana, sem, entretanto, deixar da aperfeiçoar a ética e a moral protestante, pela retidão do caráter.

Esse aperfeiçoamento da religião na vida secular deu-lhe a clareza teórica necessária para produzir os Dois Tratados e a condição da ação política.

A objetividade e a intuição na observação, que lhe garantiram um lugar, equivocado, na história do empirismo, confirmam as novas preocupações e ensaiam as perguntas que passaram a girar em torno das origens do poder político, dos seus limites e dos direitos do povo, não sem a inclusão da pergunta-chave para a ruptura com a maneira como até então essas questões eram tratadas, que se referia ao modo como o poder devia ser analisado.

Locke passou a observar os sistemas políticos e os argumentos que os legitimavam. Sua atitude política colocou-o em choque com as ações que envolviam a tese de Robert Filmer, vinculada ao patriarcalismo. Iniciou sua reflexão discutindo patriarcalismo e consentimento popular a partir da idéia das fontes do poder, a por aí chegou a um dos grandes temas de sua reflexão: A propriedade.

Estava, afinal, caminhando na contra mão do seu tempo, de encontro a Descartes e a toda a teoria das idéias inatas; precisava amadurecer seus pensamentos. Ao longo de suas observações sobre o poder, começava a surgir questões relativas à moral e aos costumes que necessitavam de um tratamento mais filosófico, dando origem às teorias sobre a educação e a linguagem, entre outras, além das tentativas de esboçar uma filosofia da história progressista.

Os dois tratados sobre o governo

A opção pela Medicina tinha assustado os mais chegados. Seu caminho parecia ser a Filosofia, mas se esqueciam de suas relações com Robert Boyle e Thomas Sydenham, que lhe deram o gosto pela Física e pela Química, mostrando-lhe como a Medicina dependia da observação dos pacientes. Tudo isso levou-o a investir mais em sua reflexão sobre o entendimento humano.

Os dois tratados objetivavam justificar a Revolução de 1688. A atenção de Peter Laslett permitiu que se observasse que os livros trataram menos de uma justificativa de uma revolução e mais da necessidade de realizá-la, uma vez que desenvolvem uma discussão genérica sobre o argumento do Filmer e um protesto contra o patriarcalismo.

Não há nos tratados nada que demonstre que seu interlocutor era Hobbes. Locke escreve para refutar Filmer, que era, na visão de Skinner, o homem mais importante na consideração do governo absoluto. E, diferente de Hobbes, Filmer considerava como fonte de todo o poder e dom de Deus. Para Hobbes, como para Locke, o povo era a única fonte de poder, a diferença em Locke estava no modo de tratar a natureza humana e os receios diante de alguém tão poderoso.

Para Locke, Deus criou os homens iguais; nenhum homem é superior a outro, essa é à base da crítica a Robert Filmer: a revelação que produziria a superioridade de alguns homens em relação aos outros, aceitando a teoria da predestinação, assegurando a positividade das idéias inatas – idéias que Locke combatia.

A função lógica do primeiro tratado é demonstrar igualdade entre os homens para o que se baseia nas Escrituras, na razão e na observação, pois as Escrituras não se auto-interpretam, o que confirmaria que os homens nascem pura e simplesmente livres.

A razão é soberana sobre todas as ações humanas e é isso que diferencia o homem dos irracionais. No estado natural, cada um detém o poder executivo da lei da natureza, entretanto, se alguém a fere, os outros têm o direito de puni-lo.

Daí derivam os conceitos de confiança, de separação dos poderes e a teoria da virtude política natural. O governo como garantia da lei natural é associado a um magistrado. Não há estado de guerra no estado da natureza, a guerra é um incidente, inseparável da vida humana. A monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil e, portanto, não pode ser, de modo algum, uma forma de governo civil. O estado da natureza já é social e político. O estado e a sociedade nunca chegaram a transcender totalmente o estado de natureza: o contraste nunca se completa.

A introdução do conceito de propriedade é a grande inovação. A condição de possuir coisas deriva do homem enquanto espécie e não do homem individual. Os bens da natureza são originalmente comuns. O consentimento é que dá acesso ao direito de propriedade. Isso levou-o à inclusão da idéia de trabalho.

É o trabalho que estabelece a diferença no valor de cada coisa. A propriedade é limitada, não pode haver desperdício da terra e dos seus frutos. A propriedade não pode ser utilizada como instrumento de opressão. O dinheiro estabelece a igualdade e as relações mútuas. Os homens estabelecem uma fonte de poder para regular e conservar a propriedade.

No segundo tratado, Locke afirma as ausências do estado de natureza e as condições da sociedade civil de supri-las em nome da manutenção das leis da natureza. A propriedade parece conferir qualidade política à personalidade. É por meio da teoria da propriedade que os homens podem passar do mundo abstrato da igualdade, baseado na relação deles com Deus e a lei natural, para o mundo concreto da liberdade política garantida por acordos políticos.

O encargo fundamental de Locke é o de desfazer a proposição de Robert Filmer de que todo o governo é uma monarquia absoluta por que parte do princípio de que nada nasce livre.
Para Locke, todo o governo está limitado em seus poderes por sua fonte de origem, que é a mesma que lhe garante legitimidade ou que lhe dá o consentimento de existir. Para Locke todos os homens nascem livres.

O estado de natureza seria o estágio em que os homens expressariam a razão pela bondade, à amizade mais a liberdade e a igualdade naturais regidas todas pela lei da natureza. Esse estágio antecederia a sociedade civil constituída.

Há dois modos de interpretar o estado de natureza de Locke. O primeiro considera ou estão de natureza a primeira etapa de desenvolvimento da história humana sobe a forma da sociedade civil. O segundo, associa e estado de natureza ao registro conceitual, pensando-o como categoria explicativa e que pode existir paralelamente à sociedade civil, ou seja, o estado de natureza existe antes e junto com a sociedade civil.

O estado de natureza é uma relação humana e não está vinculado ao grau de experiência política dos homens que estão nele e, por isso, pode existir em qualquer época da História, inclusive hoje.

Essa constatação aproxima Locke de Rousseau na medida em que ambos coincidem na idéia de que a razão dirige o homem para o bem, que impede a racionalidade. Essa definição, afastando-se da proposição de Filmer de que os reis governavam por direito divino herdado de Adão, a quem Deus teria dado todo o poder e a capacidade de dividi-lo ou administrá-lo.
Locke o põe a paz ao estado de guerra, registrando como associada à razão e como o momento da ausência da força sem direito, reforçando o direito de uso da força quando se trata de manter as leis da natureza.

1 – Estado da natureza: caracteriza-se pela ausência de um juiz comum e pela ausência de toda a lei que não seja natural.
2 – Sociedade civil: não se opõe ao estado de natureza, caracteriza-se pela presença de um juiz comum com autoridade para fazer cumprir a lei civil.
3 – Estado de guerra: existe se a força se emprega sem direito.
4 – Estado de paz: oposto ao estado de guerra, existe se não há uso da força sem direito.

No estado de natureza e na sociedade civil, há épocas em que prevalece o estado de paz e épocas em que prevalece o estado de guerra. Mas, há momentos em que a autoridade é usada de forma ineficaz, o que pode provocar desequilíbrios. Do mesmo modo, o estado de guerra é um estado de natureza dentro da sociedade civil e pode ser legítimo quando se estabelece como luta contra a tirania, como no caso da Revolução Inglesa, pois se a fonte é o consentimento popular, os reis que andam contra ela podem ser retirados do governo.

O único modo de detê-lo é o contrato social que criaria a sociedade civil. Para Locke, os desejos exagerados e as vontades irracionais levariam o homem a cometer crime contra a natureza que é tirar a vida de outro homem e começar a aniquilar a natureza.

Para Locke, há duas leis naturais, ambas referidas à natureza humana. A primeira impede que o homem se autodestrua e reza que ele deve conservar a própria vida; a segunda, prega nessa mesma direção, que ele conserve a humanidade, que é exatamente o espaço onde ele reconhece a si próprio.

Formuladas dessa maneira elas nos levam, de um lado, à dependência de Deus, nosso único proprietário, do outro, elas autorizam o homem a se defender contra quem ferir as leis da nanutreza e nos obrigam a imaginar que exista, de forma latente, a presença da guerra e na bondade, seja como advertência ou como prática.

Parece ficar claro que a única solução é a passagem para a sociedade civil e que o estado de natureza é mera referência para o caráter fundacional da sociedade. Locke não poderia dizer que todos os homens nascem livres. Mas é a própria condição de liberdade, aliada à igualdade e dirigida pela razão, que faz com que homens percebam os exageros. Não há necessidade leis escritas quando os homens têm razão. Só o governo civil salva, ele é a solução para esses problemas na medida em que é uma alternativa, ou única, que incorpora as leis naturais.

Os argumentos de Locke para explicar a necessidade e, às vazes, a urgência do governo civil vinculam à introdução que ele faz, em suas reflexões, da noção de propriedade, como se verificou anteriormente.

A idéia de propriedade torna-se, aos poucos, o fundamento da teoria lockeana. A análise de Locke da propriedade parte de três elementos já apresentados na avaliação do estado de natureza. O primeiro apresenta a propriedade como derivada da criação divina; ela faz parte do mundo da liberdade e da igualdade. O elemento seguinte diz respeito à origem da propriedade privada, ou seja, como um dom dado a todas pode transformar-se em dom privado. O terceiro refere-se aos usos que os homens devem fazer da propriedade privada.

A propriedade original e natural, que é o fundamento de qualquer outro tipo de propriedade no estado de natureza, deriva do trabalho aplicado pelo homem, e o resultado que o satisfaz e o torna feliz é a produção, que deve ser aquilo que o homem realmente necessita. Pois, caso contrário, ele estaria prejudicando alguém.

A propriedade só é justa e legítima quando resulta do esforço do homem. Os limites que regulam o acesso à propriedade para que ela se mantenha como base da igualdade natural. O lema central é que, da mesma forma que todos nascem livres, também o acesso à propriedade é livre a produção que alguém realiza não deve eliminar a produção de outro.

Locke atribui ao trabalho à condição de definição do valor ou do preço. E isso é a condição da liberdade. O uso do dinheiro acelera o fim dessa condição original, pois diferencia homens pela sua eficácia, transformando-os em acumuladores e empreendedores que devem continuar a pensar no coletivo.

Os dois tratado vão responder a essas indagações, já que a instabilidade da condição natural só pode ser resolvida por um contrato ou pela destruição das leis naturais, pois a acumulação e os interesses, ao ampliarem a riqueza, transforma-na em poder.

Os poderes naturais transformam-se em poderes políticos e limitam-se pelo objetivo da sua criação, estabelecendo as fronteiras para o poder ilimitado ou absoluto. É nesse mundo, povoado de descobrimentos e de negações, que vai se abrindo o Self pontual de Locke e realiza-se a descoberta da individualidade burguesa. 

Bibliografia:
Falcon e Rodrigues. A Expressão da tensão entre o novo e o velho: A cultura barroca do século VXII. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.