João Torto

Por Henrique Araújo | 31/05/2009 | Literatura

JOÃO TORTO

 

        João Torto, como o nome já diz, nasceu torto. Nunca, em nenhuma época consertou-se. Não que ele não tentasse, é porque não conseguia mesmo.

          João Torto não tinha pai, como quase todos os Joãos, Antônios e Manuéis. Foi criado por sua mãe Maria. Como toda mãe pobre, esta também se chamava Maria. Maria Só. Maria Só vivia sempre só. Sozinha. Somente ela e o João. Por isto ele se criou tolo e lerdo. Não sabia de nada. Não conhecia nada. Só sabia que era gente porque sua mãe lhe dizia e ainda por cima ele duvidava muito.

          A mãe lhe contava história de gente humana, de rapaz e de moça, de homem e de mulher, mas João Torto não se importava. Para ele tanto fazia estar assim, como assado, tudo dava na mesma. Morava numa choupana bem no centro do sertão.

          Um dia, porém, João enjoou-se de viver naquele sertão tenebroso. Disse à sua mãe que iria tomar rumo, ganhar mundo, ver se mudava de sorte. A mãe se assustou. João era um João ninguém, andar pelo mundo assim não conviria. Ele nunca iria se dar bem em nada, iria ter cacetadas e mais cacetadas.

          João tinha decidido. Iria correr o mundo. Faria tudo o que fosse possível, o que lhe mandassem fazer faria, mesmo que não soubesse. Para evitar problemas, daria panca de entendido e se faria de sábio. Com tantos prolegômenos, sua mãe consentiu. Deu-lhe a bênção e João caiu no mundo.

          João caiu logo para o Mato Grosso, sem saber para onde iria, não sabia coisa alguma, nem onde estava a cabeça, nem onde metia os pés. Nascera no Pará, mas quem dera que soubesse o que era cidade ou sertão?

          Andou João muitos e muitos dias metido naquele sertão. Quando já estava muito cansado, chegou a uma grande fazenda. O sol estava apontando para mais uma jornada naquele dia.

          Metido a besta como era, mais bobo que louco de hospício, viu um boi e ficou sorrindo como quem tem grandes conhecimentos e foi logo dizendo: que bicho mais chifrudo aquele comedor de capim! E andando novamente viu também um cavalo: aquele ali é muito cabeludo. Viu também um jumento e não gostou: que bicho mais feio da breca! Nem terminou de falar quando viu um porco fuçando um monte de lama: essa não, que bicho mais porco! Não errara, era porco mesmo.

          E assim foi caminhando sem saber bem para onde iria, quando viu uma fazenda. Lá foi ele dizendo logo ao criado:

          - Quero falar com o dono este casão.

          O criado apavorado, olhou de soslaio, viu logo que era imbecil e retrucou com calma:

          - Isto aqui não é um casão. É a sede da fazenda.

          João nada queria saber. Queria falar com o chefão, o resto que se danasse. A casa só poderia ser um curral, pois vira muitos animais por aí e sempre ouvira falar em curral, lugar de animais.

          O criado correu logo a chamar o padrão. Encontrou-o no interior do casarão amarelo e foi logo dizendo:

                    - Patrão, tem aí um sujeito que tem cara de bobão.

          O patrão saiu logo e foi perguntando:

          - Quem é você?

          João, que nem sabia conversar, foi logo arrematando:

          - Sou o mesmo que os outros são, faço o mesmo que eles fazem e meu nome é João. O patrão segurou o queixo, olhou de alto a baixo aquele varão e indagou:

          - E onde você nasceu?

          - Lá em casa, ora, como todo mundo nasce - respondeu.         

          - Em qual canto da parede? - retrucou o patrão.

          João ficou meio cabrolho. Não sabia que alguém nascesse em paredes e respondeu de supetão:

          - Na cama e em estado de gravidez:

          O patrão consentiu e perguntou a João o que fazia.

          - Qualquer coisa, qualquer tipo de trabalho - disse João. Tudo o que vem eu traço e nunca me atrapalho em nada.

          O patrão consentiu. Deixou-o dormir e no outro dia bem cedo perguntou se João sabia montar em animal.

          - Ora, ora, que pergunta mais besta. É só o que sei fazer.

          Nunca havia montado em coisa alguma e o patrão foi indagando o que mais João sabia fazer e ele respondendo positivamente a todas as perguntas sem de nada ter noção. Se sabia matar onça e nadar muitos quilômetros, enfrentar um Valentão - touro bravo do sertão. Tudo isto era fichinha para o João metido a sabichão e que não sabia fazer nada.

          O patrão disse a João que se tudo o que ele soubesse fazer e fizesse, receberia um grande prêmio e lhe daria dinheiro, gado, moradia e metade da renda e ainda lhe daria a filha em casamento, além de herdar toda a fazenda.

          - Se for só isso, disse João, o senhor pode ficar descansado e cumprirei firmemente tudo o que for combinado e como prova de minha bravura o senhor já pode me entregar a moça.

          - Que conversa mais besta é esta? Perguntou o patrão bem danado. Só depois de tudo cumprido terá o prêmio combinado e só com papel e tinta, com documento passado levará a moça daqui. Caso não cumprir nada, a coisa se complicará, teremos acertos a fazer e você será arrasado.

          O patrão mandou João se arranchar, pois no outro dia teria muito o que provar. João seguiu seu caminho junto ao rancho, um pouco apreensivo. Ele não sabia nada de nada. Como é que se montava em um cavalo, que diabo era onça? Onde é que ele se foi meter? Antes de dormir, o velho chamou os cabras para jantar e isto incluiu também o João. Nunca vira tanta gente e todo desengonçado sentou-se à mesa. Ninguém tirava os olhos dele e tudo que João fazia era palhaçada e motivo de riso. A moça só ficava olhando João Torto.

          João se preocupava, mas não tanto. Comeu muito e deixou-se e caiu no ronco.

          No dia seguinte acordou com a zoada do búzio, levou um susto enorme e caiu da rede pondo sangue pelo nariz. Perguntaram a ele o que era aquilo e ele disse que era para o dia ser feliz que ele sempre fazia aquilo. João nunca entregava os pontos.                                                          

          Todos sorriam de João Torto na fazenda. O patrão chamou-o de lado e disse-lhe:

          - Você hoje vai pegar o Valentão. Tem aí cavalo e arreio, peneira, chapéu e gibão. Disse-lhe que ali tinham muitos cavalos, que ele escolhesse o que quisesse e chamasse um negrão para lhe ajudar.

          Ele chamou um negro e mandou-o pegar um cavalo que estava deitado. O negro foi, botou cabresto e já veio montado. João não aceitou o animal, pois o negro montara primeiro. Na verdade João não sabia nem o que era montar, mas vendo o negro montado, pode aprender. O negro trouxe o outro, mais bravo da turma chamado de pai do lote. João passou-lhe a perna e o bicho deu um pinote. João segurou forte na crina e deu-lhe algumas chicotadas. Batia sem saber que batendo o cavalo correria ainda mais. João gritava: pára,  por Nossa Senhora, senão estarei lascado e este será o meu fim. Quanto mais açoitava, mais o cavalo corria mata a dentro. Recebendo paulada da mata na cabeça e nas costas, João caiu estatelado no chão e a poeira o cobriu.

          O patrão veio correndo e perguntou:

          - Você caiu?

          - Não foi nada, respondeu João, pulei de uma  só vez. Não vê que estou no chão?

          O cavalo foi embora e João retrucou:

          - Este não me serve.

          Olhando de lado viu um cavalo magro e desconsolado e disse então ao negro:

          - Pegue-me aquele ali.

          O negro levou um susto.

          - Este não serve não, João - disse então o negro - já está aposentado, caduco, demente, mas já foi bom.

          - Este é que é bom - disse João - vou com ele pegar o Valentão daqui para a madrugada.

          Só pode ser piada uma encenação assim - pensavam os peões. E João montou no cavalo, açoitou-o, apertou as esporas e o cavalo nem se mexeu. Os peões sorriam.

          - É assim mesmo - disse João - depois melhora.

          Ele pôs o cavalo no meio dos outros, sempre pensando: agora é que estou atolado. Mesmo assim pediu que lhe mostrassem o tal Valentão para ele derrubá-lo.

          Os peões caíam na gargalhada, pois João pôs a sela com a frente para trás. Todos pensaram que ele era louco. A moça observou que ele amarrou as bridas na cauda e não na cabeça. Que coisa mais estranha! Perguntaram então a João:

          - Amigo, você é doido?

          - A minha base é esta, respondeu João, mas pensou logo: ih! O negócio hoje não presta.

          Vinte vaqueiros e o patrão acompanharam João Torto no seu cavalo velho, magro, desorganizado. Tão torto quanto João. Era a gozação dos peões. Todos iam pensando no que aquilo ia dar.

          - O bicho é aquele ali - disseram.

          João replicou então:

          - Quem quiser bota o cavalo atrás dele que eu vou devagarinho prestar conta com o bicho.     

          A peonada começou a gritar e o boi ouvindo os gritos se danou a correr para cima deles. João comentou:

          - Eu vou mostrar como é que homem faz.

          Ele, porém, não tinha a mínima idéia do que fazer. Não sabia coisa alguma. O cavalo

era chotão, caíram as esporas, chapéu, foi a maior confusão. A vaqueirada se enrolou toda, ficaram todos na frente do touro que veio na mesma direção. O touro vendo que o cavalo de João era lerdo, mole, deu em cima dele, foi a maior anarquia. João já contava como morte e se defender não sabia. O cavalo, porém, lembrando-se dos tempos de outrora, ficou todo eriçado, destrambelhou-se pelo mundo numa carreira assombrada que os peões admiraram. O cavalo foi parar bem em frente ao Valentão e João de cima gritava: “valei-me Santo Abraão, São Jorge, São Serafim, bota-me ao menos no chão que aqui em cima é o fim. Nenhum Santo ajudava João que estava pregado nas costas do cavalo, sem rédea, sem nada. João se agarrava em tudo, enlaçou as pernas no corpo do bicho e segurava em tudo, inclusive no rabo do animal que corria desembestado. Foi parar numa ribanceira do rio. Lá de cima caíram João, o cavalo e o boi que teve o pescoço quebrado porque era muito gordo e caiu descontroladamente de uma altura enorme.

          O patrão e a negrada chegaram logo a seguir, avistaram aquele estrago, estava embaixo de uma cachoeira. João levava a calça que estava aquela melequeira.

          - O homem é bom mesmo - disseram - só que na calça faz efeito.

          - João logo arrematou:

          - Pra mim tudo é fácil deste jeito, não faço de propósito, não é defeito e sim defesa.

          Retiraram o Valentão e João saiu puxando o cavalo, pois tinha medo de montá-lo. Dirigiram-se para a sede da fazenda e o patrão disse a João:

          - João, amanhã toma cuidado, passará por outra prova. Para ver mesmo se você é homem, vai ter que matar a onça que vive estrangulando o gado. O gato é grande, muita gente tem ido caçá-lo, mas sem efeito.

          Ouvindo isto João destravou:

          - O senhor está brincando. Se já peguei o Valentão, o bravo daquele mato, acha que tenho medo de gato?

          João pensava que era como gato de casa. Não sabia, coitado, com quem iria lidar. Se lhe falassem que o gato comia gente, talvez ele tivesse uma idéia.

          No outro dia bem cedo procurou o patrão o qual lhe perguntou que arma queria levar.

          - Apenas uma corda - disse ele.

          O patrão ficou encabulado:

          - Coitado, falou o velho, está doido este rapaz, é melhor despedir-se do mundo, pois aqui voltará jamais.

          Mostraram o caminho a João que seguiu o seu destino. Andando apenas alguns metros, viu uma grande pedra e encontrou deitada ao lado dela a grande onça. João levou um tremendo medo ao ver o tamanho da onça, ficou todo gelado, sentiu uma coisa quente escorrendo de cima abaixo. João naquela hora já estava todo cagado. Subiu rapidamente a uma árvore enorme, ficou a imaginar, pedindo graças a Deus para o bicho ir embora. Foi quando apareceram os gatinhos para  mamar. Quando  o  sol  esquentou   muito, apareceu o gatão bem perto do arvoredo, aumentando-lhe o terror. Estava todo agoniado, pensou até em gritar, mas isto não adiantaria muito. Apegou-se com um santo, qual o diabo do nome do santo? Nem ele sabia. A onça, calmamente, deitou-se dando de mamar aos gatinhos ficando bem distraída. João pensava: Ah! Meu Deus se saísse desta com vida. Foi descendo devagarinho, com medo de acordar a onça, tentando de alguma maneira fugir. Vendo a onça dormindo, João, ainda com medo, chegou-se bem pertinho, pegou então a corda, amarrou os pés da bicha numa árvore muito grande de modo que ela ficou bem atada e de nada percebeu. Enquanto a onça dormia, ele procurou um pau e desceu paulada na bicha que se pôs a esturrar e João naquele momento descia a lenha em qualquer lugar. Ouvindo os berros da fêmea, o macho saiu da toca e veio como o diabo. João pensou: estou arrasado. Saiu correndo danado pela mata afora e o matagal na hora ia descendo a eito. Foi direto para a fazenda nem para trás olhando. João corria na frente e o gato vinha correndo atrás. Gritava o nosso amigo: valha-me Deus, dessa eu não escapo.

          O patrão e os peões estavam conversando no salão da fazenda! Dizia o velho:

          - O pobre João não voltará mais, rezemos por ele que nem arma levou para matar aquela fera.

          Foi então que alguém gritou:

          - Patrão, olha quem vem ali, o João embolado com a onça, correndo que só um danado e vem rumo daqui.

          O patrão muito assombrado mandou logo fechar a porta, mas João e a onça como balas, saltaram dentro da sala ficando no meio de todos. Foi aquela confusão, ninguém entendeu mais nada, cada qual, por sua vez, tratava de salvar a pele, se não quisesse ser tragado. João Torto atrapalhado, vendo aquela confusão, gritou logo destrambelhadamente:

          - Meu patrão, fique com esta danada, enquanto vou buscar a outra que ficou no mato amarrada.

          - Buscar coisa nenhuma - gritou o velho assombrado.

          Sufocado, pensava o velho no azarado do João: ou este cabra é burro ou tem parte com o diabo. Onde é que já se viu pegar no mato este monstro sem arma e com a mão e soltá-lo no meio do salão em vez de matá-lo? Fecharam todas as portas e lá deixaram o bichão extremamente agitado.

          O João, morto de medo, disse logo ao patrão para matar o bicho ou queria que ele fosse pegar o gato a unha e levá-lo novamente para o mato?

          - De maneira alguma - disse o patrão - vamos matar o bicho lá de cima do telhado.

          - Mate-o logo - disse João - para irmos ver o outro que lá no mato ficou.

          Cansado e com muito medo, ele disse ao patrão:

          - O senhor manda a sua cambada ir buscar a outra que ficou lá no mato que eu quero descansar.

          Os peões assombrados perguntaram logo:

          - Ela está morta?

          - Morta nada, responde João, está amarrada. Eu não a trouxe porque a estrada é de subida e está muito ruim.                                                           

          O patrão, com três homens, foram lá e mataram a onça. Pensando muito no João, o patrão concluiu: este cabra faz coisas de admirar, só pode ter saído do inferno para aqui vir nos arruinar, vou dar cabo dele hoje, no rio vou mandá-lo afogar.

          Coitado do pobre João, de nada ele sabia e o patrão escolheu o negrão mais forte e nadador da fazenda para fazer a prova com o João que mandou preparar carne assada e farinha para levar. Perguntaram para que era aquilo e ele respondeu que na água só sabia a hora de entrar, mas não sabia quando voltaria. O negrão com isto assustou-se e foi pedir ao patrão para deixar passar aquela prova, pois o homem meio louco poderia matá-lo na água.

          O patrão chamou outro negro para no João dar um surra, pois ele passara em todas as provas, restava-lhe uma de brio. O negrão foi logo dizendo:

          - Deus me livre, patrão, prefiro ser fuzilado a brigar com este cão, pois é capaz desse monstro me mandar mais cedo pro inferno.

          O patrão, desanimado, vendo os estragos causados, foi ficando sem ação, sem saber o que fazer. Não teve outra saída: mandou chamar o padre, o João e a pobre filha e ali se fez o casamento com grande festa e pompa. E assim casou o João Torto e vive hoje naquele rincão, ganhou a moça, a fazenda e as trapalhadas tantas. E a partir desse dia, ninguém mais ouviu falar se viveu feliz para sempre.

 

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