Invisibilidade Social: Meninos de Rua

Por Marcos Miliano | 26/10/2009 | Filosofia

Nos propomos ao estudo da presença da ação invisibilizadora sofrida pelos meninos de rua. Conceituamos Invisibilidade Social nos referindo a atores sociais, invisíveis pela sociedade, ou pela indiferença, ou pelo preconceito; esse fenômeno, atualmente, atinge aqueles que estão à margem da sociedade. Faz-se necessário que observemos a relação entre o autor social e sua respectiva identidade na sociedade, onde torna-se impossível determinar seu perfil sem observar seu relacionamento com os outros. Faremos isso de uma perspectiva fundamentalmente, contudo não exclusivamente, sociológica.

Não nos limitemos à idéia do menino de rua como indivíduo, mas trabalhemos o conceito de sujeito, entendendo-o como dotado da necessidade de ser visualizado, formando relações de interação num sentido de igualdade, mas que se depara com a dificuldade de ver isso tornar-se efetivo, pois a sociedade pré-existente, foi construída através de relações de hierarquia, havendo, nisso, a violência como mantenedora destas relações, daí a invisibilidade vindo de uma percepção pessoal prejudicada e condicionada àdivisão social e às transformações decorrentes da violência urbana, onde o menor de rua é enxergado somente por sua condição econômica e não por sua pessoa.

O termo Invisibilidade Social é contemporâneamente utilizado, entretanto o fenômeno étão antigo quanto a sociedade, podemos lembrar das mulheres romanas, relagadas ao status de mobília, e dos negros, num passado rescente e escravista, ambos acometidos dos sintomas da crise de identidade nas relações com os homens e com a "sociedade branca" respectivamente.

A identidade é um conceito pessoal, atribuido a nós pelos outros, de modo que é antes de tudo um referencial de circunscrição da realidade, que pode, sem dúvida, ser imaginada. Nossa realidade, pode ser montada por aspectos do reconhecimento que fazemos, de nossos medos, ansiedades, desejos, traumas e sentimentos em determinados contextos, ou seja a realidade é idiossincrática do ego. Cada imagem pode ser interpretada pelo sujeito de acordo com seu repertório individual de vivências.

De acordo com o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares, a invisibilidade causada pela indiferença, atinge a maioria da população. Exemplificando, ele afirma: "Como a maioria de nós é indiferente aos miseráveis que se arrastam pelas esquinas feito mortos-vivos, eles se tornam invisíveis, seres socialmente invisíveis". É no cotidiano que as atitudes discriminatórias, preconceituosas e conflitantes, geram a marginalização do outro, enquanto membro de um grupo diferente, é um reflexo dos processos de estigmatização, gerando atitudes: "há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é'bom' e que o outro é'ruim'" (Norbert Elias, 2000:23).

É na construção da identidade do sujeito em relação a sua invisibilidade social que reside o conceito de que a identidade é formada pelo autoreconhecimento, sendo este construido pelo olhar do outro, o reconhecimento do outro: "o eu se conhece, sem dúvida, como refletido por toda a realidade objetiva que constituiu ou para a qual contribuiu; portanto, ele se reconhece a partir de uma realidade conceitual." (LÉVINAS, 2005).

Assim, podemos considerar que a identidade só existe no olhar do outro. Sendo na generosidade do olhar do outro que temos evolvida nossa própria imagem de valor, recebendo significação como humano, da qual a única prova é o reconhecimento alheio. A Invisibilidade que nos anula, figura-se em isolamento, solidão e incomunicabilidade, falta de valor. Por não ser reconhecido, o menino de rua, frustra-se, gerando uma reação de si, que segue uma resposta interior, dividindo-se em algumas possibilidades, como: 1. Absorção do estigma e aceitação da inferioridade imputada; 2. Conscientemente não levar em conta as agressões sofridas; 3. Revolta transformada em agressividade violenta.

Sobre a Violência

A violência cotidiana tem aumentado principalmente no que tange os direitos fundamentais do cidadão, mudando os hábitos, a arquitetura, a cidade e tudo ao nosso redor. São aflorados, medos ancestrais, motivados também pelo tratamento que a mídia oferece atualmente, que de modo deliberado adota posicionamentos maniqueístas no trato com as classes menos favorecidas, que é a grande fatia da população, onde se estimulam posturas agressivas ao criar mitos.

Diferente dos animais, que têm uma violência instintiva, nos humanos ela ocorre também de forma premeditada, onde acontecem também lesões menores, mas têm como intuito original o assassinat. Essa violência remonta às condições humanas mais primitivas, e hoje, com as instituições reguladoras como a Igreja e o Estado, e os avanços sociais e tecnológicos, modificaram-se. "A violência é o alicerce supremo de qualquer ordem política." (Peter Berger, 1974)

A violência se manifesta por vários prismas, e pode ser usada para atacar e se proteger, pelo indivíduo ou pelo Estado, para conseguirem seus objetivos. Entretanto, comete-se também um ato de violência ao desconsiderar o próximo, seus interesses, sentimentos, medos e sua liberdade, ou seja, quando tornamos o outro um invisível social, excluindo sua condição de ser pensante, de um humano.

O Estigma

Estigmatizar alguém é uma violência simbolica1, é uma criação social que se origina de atitudes carregadas de pré-conceitos de elementos de um grupo sobre o outro, é uma violência tão grande, que segundo Luiz E. Soares, é como estar acusando alguém de existir, apenas por não se enquadrar na "normalidade", isto é, por não fazer parte do grupo tido como como elite. Esse cenário contribui para as diferenças, reafirmando estereótipos padronizadores de conceitos sobre um grupo, intensificando o comportamento discriminatório.

Ainda segundo Soares, tornamos alguém invisível só de projetar sobre o ele uma pessoa anulada, enquanto reflexo do etnocentrismo ou de nossa indiferença, destituindo-o de suas características humanas e pessoais, que o tornam único, fazendo dele, sem identidade e classificado-o de acordo com nossa realidade. Essa ação de retaliação faz parte da formação de fronteiras entre os grupos da sociedade, estabelecendo pra si um estilo de vida comum e um conjunto de normas.

Abordando um contexto histórico, podemos citar entre outras contribuções para a estigmatizações, as tranformações urbanas, especialmente na virada para o séc. XX, em prol do estabelecimento da modernidade, na realidade expanções burguesas, vindas com a chegada da República. Destacamos a exclusão social sofrida pelos negros escravos rescem libertos e um pouco mais tarde, pela classe operária, empurrados para fora das cabeças de porco2, em direção as periferias e morros. Demolições e remoções foram as práticas daqueles reformadores, sem qualquer preocupação com a preservação dos espaços de construção da identidade, provocando a perda das referências identitárias, pelo processo de remoção e de segregação social, evidentemente, efeitos de distanciamento social.

Conclusão

Podemos concluir que o tema não pode permanecer em sua superfície visível, porém subjetiva, somos todos invisíveis, até que nos revelemos por nossas singularidades. O menino de rua, deve receber essa "singularização", pelas oportunidades que são dadas a ele, de se fazer ser percebido, como por exemplo através de seu desenvolvimento afetivo e intelectual. Antes, o "Olhar que vê, mesmo sendo um gesto simples, banal, mas não mecânico, emfim, constituido na mais importante manifestação gratuita de solidariedade e generosidade que um ser humano pode prestar a outro" (SOARES), devemos modificar o olhar ao menino de rua, percebendo que em algum momento de nossas vidas podemos nos passar por invisíveis. E sem os olhares que enxergam, que estabelecem as ligações interpessoais, não existiria o que chamamos de sociedade.

[1]Formas invisíveis de coação que se apóiam, muitas vezes, em crenças e preconceitos coletivos.

[2]Pedro A. Pinto (Vocábulos e Frases)

...encravada na rua Barão de São Félix, dando fundos para a pedreira dos Cajueiros, existia uma imensa estalagem de última espécie, valhacouto de capoeiras, ladrões e assassinos. Como a feijoada que leva cabeça de porco, composta de mil elementos tornando-a - na designação do povo - completa, achou a gente daquele tempo que a referida estalagem, tendo habitantes de todo o gênero, devia ser comparada à feijoada daquela espécie e denominou-a de 'Cabeça de Porco', nome que perdurou até a sua morte.