Influências Da Oralidade Na Escrita
Por Mateus Carvalho | 31/12/2007 | EducaçãoIntrodução
Esta pesquisa foi desenvolvida a partir de aulas ministradas como reforço em um projeto da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) com a escola municipal Maria Eulália Vieira, da cidade de Três Lagoas/MS, com alunos de 6º ano do ensino fundamental com faixa etária entre 10 e 14 anos 1. Foram trabalhados em sala alguns textos de literatura infanto-juvenil.
1 Fundamentos teóricos
O sistema lingüístico é um conjunto de signos verbais que se podem articular de acordo com uma série de regras (a gramática da língua), por meio das quais se podem agrupar ou seqüenciar esses signos, seja no código oral, seja no escrito, cujas diferenças não residem apenas na substância utilizada (sonora e gráfica, respectivamente).Esses dois códigos são de natureza distinta e envolvem operações também distintas (o escrito, por exemplo, não é mero registro gráfico do oral). O primeiro, em face de seu uso em situações predominantemente informais e de seu objetivo de uma interação (mais) imediata, é mais vulnerável a transformações e às conveniências e necessidades sociais e culturais. O escrito, registrado, por sua vez, embora provenha do oral, é mais conservador e tende a não retratar a heterogeneidade característica deste e, sobretudo, dele se afastar.
É no nível grafofônico que irão ocorrer as maiores diferenças, de vão derivar os "erros" de pronúncia e os de grafia, porque, entre as unidades gráficas e sonoras, nem sempre há correspondência biunívoca: no mesmo ponto da mensagem, um grafema simples pode representar dois fonemas, como é o caso de "x", em "nexo" e "fluxo", que corresponde a /ks/; por outro lado, um mesmo fonema pode ser representado por diferentes grafemas, como é o caso de /s/, que pode ser graficamente representado por "s" (inicial etimológico ou final de palavra, medial após "n", "l" ou "r"); "c" (antes de e ou i); ç (antes de a, o, u); ss (intervocálico); sc (em formas com sentido de processo ou advindas da assibilação da assimilação); sç (em formas verbais cujo radical termine em sc); x (em final de sílaba e antes de consoantes surdas ou entre vogais); z (em final de sílaba e antes de fonema surdo). (POERSCH, 1990)
Além disso, há questões relativas aos fonemas que podem, em pontos diferentes da mensagem, representar fonemas diversos, bem como as causas diacrônicas, as regras subjacentes e os condicionamentos contextuais, fatos de que o professor precisa ter domínio.
2 Metodologia e análise dos dados
Após a leitura e a releitura de um texto em uma das aulas, foram ditadas algumas palavras que as crianças deveriam escrever. A seguir, deveriam produzir um texto com base no texto trabalhado e nas palavras ditadas. Uma das palavras ditadas era a palavra "existia", grafada por um aluno (autor do texto "A") "ejistia". Foi perguntado a ele por que achava que aquela palavra era escrita dessa maneira, então respondeu que falava assim e por isso escrevia assim.
No mesmo texto, foram encontradas as palavras sontava, por "soltava", e vontar, por "voltar", o que deixa clara a forte influência da fala na escrita. A palavra "voltar" possui, foneticamente, um ditongo [vowtar], onde o glide /w/ (SILVA, 2007) é uma aproximante velar sonora e, ao produzi-la, esse aluno encosta o dorso da língua na posição velar e abaixa o véu palatino, causando assim a nasalização. Pelo fato de falar a palavra "voltar" com o glide /w/ nasalizado, ele, na escrita, coloca um grafema nasal "n", escrevendo e falando vontar.
Por que ele escreveu "voltar" com "n" (vontar) e não com "m" (vomtar)? Isso ocorre pelo fato de a consoante seguinte ser o "t", que é alveolar, o mesmo ponto de articulação de /n/ (são homorgânicas). Ele não escreveu com "m", pois terá percebido que o "m" não é produzido no mesmo ponto de articulação do /t/ e do /n/. Essa mesma explicação aplica-se à palavra sontava ("soltava") que também foi encontrada em seu texto.
Grafema e fonema
Nos textos apresentados pelos alunos, percebe-se que eles não distinguem que a língua falada (oralidade) é diferente da língua escrita (grafia). As palavras fumasa ("fumaça"), pasavam ("passavam"), cilencio ("silêncio"), aborresido ("aborrecido") e casuar ("caçoar"), extraídas respectivamente dos textos ''A'', ''B'', ''C'', ''D'' e ''E'', mostram que, pelo fato de realizarem o som de /s/, escrevem o grafema "s", como observou Poersch (1990).
Os alunos desse projeto ainda não apresentam a distinção entre grafema e fonema nas palavras da língua portuguesa. A escrita que apresentam é uma reprodução da fala, pois, se alguma palavra apresenta um determinado fonema (som) que na escrita é representado por outro grafema (como nos exemplos de /s/ acima citados), a tendência é escrevê-la de acordo com sua fala, não dominando a diferença que há entre a fala e a escrita.
No texto "E", todas as palavras que deveriam ser escritas com o grafema "m" eram grafadas pelo aluno com o grafema ''n'' e vice-versa. Em seu texto, encontramos as palavras una ("uma"), ma (por "na"), mão (por "não"), entre outros. No entanto, quando leu seu próprio texto, leu corretamente, de acordo com o contexto. Neste caso, o fato de ele ter lido corretamente pode indicar que ele não domina a diferença de representação gráfica entre os grafemas "m" e "n".
Trabalhando com o texto Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, foi encontrada a palavra chameuzinho, por "chapeuzinho", e isso esclarece ainda mais o que acima foi dito sobre a questão das homorgânicas. O aluno colocou o grafema "m" porque percebe que /p/ e /m/ são homorgânicos, mas não percebe a diferença que há entre /p/, que é uma oclusiva surda, e /m/, que é uma nasal sonora. Em todos os textos lidos, não foi encontrada nenhuma troca de fonemas que não fossem homorgânicos.
Outro fato que ocorre freqüentemente é a troca de um fonema sonoro por um surdo e vice-versa. Isso foi identificado na palavra costa, que, de acordo com o contexto, seria "gosta" e "fou", em vez de "vou"; porém isso não ocorre apenas com as palavras em que se troca apenas um grafema; foi constatado também que a palavra "jogar" foi escrita como chagar, trocando um grafema por dois ("j" por "ch"), decorrente da confusão gráfica entre "x" e "ch". Neste caso, também houve a troca de homorgânicas.
Uma explicação por meio dos metaplasmos 2
Como vimos, a palavra "voltar" (grafada vontar) é, foneticamente, composta por um ditongo, o qual o aluno nasaliza, realizando assim o metaplasmo da nasalização. Na palavra chameuzinho (por "chapeuzinho"), ocorre, se assim posso dizer, uma assimilação, não uma assimilação por influência de outra consoante idêntica na mesma palavra, mas uma assimilação por ponto de articulação, pois /p/ e /m/ são homorgânicas.
Na palavra chagar ("jogar"), ocorre o inverso do metaplasmo de sonorização: um fonema surdo torna-se sonoro. O mesmo ocorre com costa, por "gosta", e "fou", ao invés de "vou".
Nos textos também foram encontrados algumas coisas que podem ser explicadas pelo metaplasmo da sinalefa: o aluno escreveu, por influência da oralidade, comelo, em vez de "comê-lo" e encima, em vez de "em cima".
Conclusão
Como afirma Roulet (1978), "Como se pode ensinar [e aprender] uma língua sem conhecer sua estrutura e o seu funcionamento, bem como os mecanismos que permitem a sua aquisição?" Os professores deveriam ter uma disciplina específica para mostrar-lhes que a escrita não é uma reprodução exata da fala. Essa disciplina deve mostrar-lhes a diferença entre consoantes surdas e sonoras, identificar os pontos de articulação, enfim, ter percepção do que falam para poderem diferenciar a fala da escrita.
Há também as regras ortográficas que devem ser seguidas e, se não houver uma disciplina específica que mostre a diferença que há entre a fala e a escrita, eles continuarão escrevendo assim, pois a oralidade está mais presente que a escrita em suas vidas.
Referências Bibliográficas
COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1979.
POERSCH, José Marcelino. Pode-se alfabetizar sem conhecimentos de lingüística? In: TASCA, Maria e POERSCH, José Marcelino. Suportes lingüísticos para a alfabetização. 2. ed. Porto Alegre, 1990, p. 9-41.
ROULET, Eddy. Teorias lingüísticas, gramaticais e ensino de línguas. São Paulo: Pioneira, 1978.
SILVA, Thais Cristófaro. Fonética e fonologia do português. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2007
TASCA, Maria e POERSCH, José Marcelino. Suportes lingüísticos para a alfabetização. 2. ed. Porto Alegre, 1990, p. 9-41.
1 Foram separados cinco textos produzidos pelos alunos citados, os quais não são identificados pelos nomes. Os textos são identificados por: "A", "B", "C", "D", e "E".
2 CF. COUTINHO, 1979.