Infanticídio: uma análise sobre os aspectos incriminadores

Por tirciane chuvas aragão albuquerque | 23/06/2016 | Direito

Infanticídio: uma análise sobre os aspectos incriminadores

O artigo traz discussões acerca da possibilidade de incriminação pelo crime de infanticídio, a partir do caso hipotético a seguir: Maria Joaquina, mãe de dois filhos, grávida e abandonada pelo pai do infante, tem seu bebê em casa às 09:30h da manhã. Por volta das 15:00h do mesmo dia, desesperada e indignada por não possuir condições de sustentar a criança, esfaqueou seu próprio filho com 20 facadas no tórax, enterrando-o no quintal de casa, tornando-se a maior suspeita nas investigações policiais do caso, que chega ao Ministério Público.

No que diz respeito às possibilidade de incriminação, tem-se que Maria Joaquina pode ter esfaqueado seu próprio filho sob a influência do estado puerperal – mediante comprovação de laudo pericial -, cometendo um crime de infanticídio (art. 123 CP). Por outro lado, não havendo comprovação por intermédio de perícia médica do estado puerperal, não haverá infanticídio, mas homicídio (art. 121 CP). Maria Joaquina dispôs da vida do próprio filho, violando o bem jurídico para cuja proteção a ordem jurídica vai ao extremo da repressão penal (BITTENCOURT, 2007). As circunstâncias através das quais Maria praticou o crime, por sua vez, podem agravar a situação, caracterizando um homicídio qualificado.  

O referido tipo penal, considerado um delictum exceptum, encontra-se no art. 123 do CP: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena: detenção de dois a seis anos”. As elementares são: matar (somente a mãe, caracterizando crime próprio); o próprio filho (a esse tipo não se aplicarão as agravantes genéricas de crime cometido contra descendente ou contra criança porque o fato de ser o crime cometido contra descendente já é elementar do tipo penal infanticídio, assim, caso fosse aplicada alguma das referidas agravantes a esse crime, haveria bis in idem); sob a influência do estado puerperal (perturbações físicas e psíquicas sofridas pela mulher após o parto); durante o parto ou logo após (elemento temporal: segundo Bittencourt, como a doutrina não fixou prazo, a expressão logo após será entendida de acordo com o fato concreto, variará de mulher para mulher e será atestada na perícia médica).

Os dois critérios mais conhecidos para fundamentar o crime de infanticídio como delictum exceptum são o psicológico e fisiológico. O primeiro refere-se à honra pessoal, e o segundo, ao estado puerperal. Este, por sua vez, “nem sempre produz as perturbações emocionais que podem levar a mãe a matar o próprio filho” (BITTENCOURT, 2007). Porém, caso seja comprovada a influência do puerpério e feita a relação de causalidade entre esse estado e a ação delituosa, temos um infanticídio.

No puerpério, Maria Joaquina podia estar mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, pode ter sofrido um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho. Sofrendo alterações hormonais e bioquímicas, pode ter desenvolvido alterações psicossomáticas. Segundo especialistas, os sintomas se instalam já nos primeiros dias até duas semanas do pós-parto, e para recorrer a tal artifício cruel, a agente pode ter apresentado sintomas como alucinações, comportamento desorganizado, desorientação e confusão mental:

[...] o quadro psicótico no pós-parto é uma situação de risco para a ocorrência de infanticídio. Um estudo feito na Índia com mulheres internadas com quadros psicóticos no pós-parto revelou que 43% delas tinham ideias infanticidas. O infanticídio geralmente ocorre quando ideias delirantes envolvem o bebê, como ideias de que o bebê é defeituoso ou está morrendo, de que o bebê tem poderes especiais ou de que o bebê é um deus ou um demônio. (Cantilino; Zambaldi; Sougey; Rennó Jr. Transtornos psiquiátricos no pós-parto. Revista de Psiquiatria Clínica.2010)

Aqui, não há nem alienação mental nem tampouco a ausência de emoção, a pura crueldade, e a culpabilidade de Maria Joaquina é menor, o que caracteriza ainda o referido crime como privilegiado. No que tange a essa característica, o fundamento ético-jurídico do privilégio concedido a esse crime, que não admite modalidade culposa, encontra-se na circunstância subjetiva especial: o desvalor de se matar o próprio filho, em tese, deveria ser maior do que matar um estranho, mas torna-se menor em função da influência do puerpério, apesar deste não constituir elemento estrutural do dolo (BITTENCOURT, 2007).

Destaca-se que o estado puerperal deverá ser comprovado por perícia médica. Acrescente-se que, pelo principio do in dúbio pro reo, se houver dúvida pelos peritos sobre a existência ou não do referido estado, deverão considerar a influência do puerpério, pois o infanticídio prevê pena menor que de homicídio.

Por fim, pontua-se o infanticídio em outros países. Na França, o tipo foi objeto de várias modificações no decorrer dos anos, tendo ocorrido a última em 1992, quando o Código Penal Francês revogou a figura deste tipo penal, que hoje se encontra definido nos seguintes termos: art. 221 § 4, inc. I: “Se reprime a conduta homicida agravada, que consiste em matar um menor de quinze anos, prevendo-se uma pena mínima de quinze anos até a pena perpétua”. Na Alemanha, como no Brasil, adota-se o sistema da influência do estado puerperal, seguido hoje por muitos dos países. No Código alemão, o infanticídio vem tipificado no Art. 217: “1) A mãe que durante o parto ou imediatamente depois mata dolosamente a seu filho ilegítimo, será punida com reclusão não inferior a três anos.2) Se existem circunstâncias atenuantes, a pena será de prisão não inferior a seis meses” (ESTEVES, 2005).

Com relação ao homicídio qualificado, se não se verificar que a mãe tirou a vida do filho nascente ou recém-nascido, sob a influência do estado puerperal, a morte praticada se enquadrará na figura típica do homicídio” (BITTENCOURT, 2007 apud MARQUES, 1961). Configurado o art. 121, verifica-se no caso em questão a existência de circunstâncias que o qualificam (parágrafo 2: pena - reclusão, de 12 a 30 anos). Definido como crime hediondo nos termos do art. 1º, I, da lei 8.072/90, o homicídio qualificado é caracterizado por circunstâncias complexas e variadas, dividindo-se em motivos, meios, modos e fins. De acordo com o Código Penal (art.121, parágrafo 2º), os motivos que fundamentam a prática de um crime, tidos como imorais e anti-sociais, podem ser: mediante paga ou promessa de recompensa; motivo torpe; e motivo fútil. Já os meios utilizados que podem qualificar o crime classificam-se nas espécies: meio insidioso; meio cruel; e meio de que possa resultar perigo comum. Não nos ateremos a todo o elenco de qualificadoras porque apenas o motivo e o meio utilizados para a prática do crime aqui analisado são suficientes qualificá-lo.

Por supor não ter condições de criar o filho, Maria Joaquina indignou-se e em um momento de desespero matou-o. O motivo para tal atitude, porém, é desproporcional à ação criminosa, caracterizando motivo fútil. A preocupação e até mesmo o desespero diante da impossibilidade de sustentar uma criança são banais se comparados ao valor da vida humana.

Como se não bastasse ceifar a vida do próprio filho Maria, desferiu 20 facadas no tórax do recém-nascido para chegar ao seu objetivo, quando apenas um golpe seria suficiente para consumar o crime. A forma brutal com a qual perpetrou o homicídio caracteriza meio cruel, outra circunstância qualificadora. Ao causar sofrimento desnecessário, a agente, gozando de sanidade mental, demonstrou absoluta ausência de qualquer sentimento humanitário.

É válido lembrar do Pacto São Jose da costa rica, do qual o Brasil é signatário, e cujos artigos 4º e 19 ratificam os mais valiosos bens protegido pelo ordenamento brasileiro: art. 4º - Direito à vida: “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”; e art. 19 - Direitos da criança: “Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado”.

Já no tange ao concurso de crimes, é importante destacar que além de ter matado o próprio filho, Maria Joaquina enterrou-o no quintal de casa, cometendo mais um crime: ocultação de cadáver. Tendo praticado duas condutas e obtido dois tipos penais diferentes, a agente incorreu em concurso material de crimes (art. 69 do CP), que trata da conduta do agente que, mediante mais de uma conduta (omissiva ou comissiva), pratica vários crimes, sendo eles homogêneos ou heterogêneos, ou seja, nesta situação concorrem delitos. “No concurso material, há uma pluralidade de condutas que são apreciadas numa mesma sentença judicial” (ZAFFARONI, PIARENGELI, 2010).                  

Maria Joaquina matou o filho e ocultou o cadáver ao enterrá-lo no quintal de casa. São duas condutas e dois tipos penais, caracterizando concurso material. E trata-se de dois tipos distintos, demonstrando a heterogeneidade do concurso material. Acrescente-se que, para efeitos de aplicação de pena, o concurso material prevê o princípio do cúmulo material, que é a soma das penas em concreto, simplesmente, de cada crime, totalizando uma pena única.

Também se faz relevante a abordagem, ainda que superficial, da possibilidade de inimputabilidade. Sendo vítima dos efeitos máximos do estado puerperal, Maria Joaquina pode ter adquirido doença mental, hipótese que a isentará de pena em razão de sua inimputabilidade (BITTENCOURT, 2007). O estado puerperal é normal após o parto, mas, como já foi dito, há hipóteses desse estado provocar alterações. No caso em que a mãe adquire uma doença mental e após o “surto” não retorna para o estado de normalidade, ela será protegida por esta previsão juridical, e receberá medida de segurança com internação.

Destacamos, por fim, as hipóteses no estado puerperal: nao há nenhuma alteração, o que configurará homicídio; ocorrem perturbações psicossomáticas que são a causa da violência, havendo um infanticídio; a mulher desenvolve uma doença mental, caso em que será isenta de pena em razão da sua inimputabilidade; e as perturbações mentais diminuem a capacidade de entendimento ou de determinação da mulher, beneficiando-a com a semi-inimputabilidade (BITTENCOURT, 2007).

 

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 2. 7 º ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

CANTILINO, Amaury; ZAMBALDI, Carla Fonseca; SOUGEY, Everton Botelho; RENNÓ JR.,Joel. Transtornos psiquiátricos no pós-parto. Revista de Psiquiatria Clínica, vol.37, n.6, São Paulo, 2010. Disponível em: ˂http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832010000600006&lang=pt˃. Acesso: 01 mar 2011.

 

CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Editora Malheiros, 2010.

ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Geral, Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

ESTEVES, Welton. INFANTICÍDIO: Comunicável ou Incomunicável ao Co-Autor ou Partícipe?. Conteúdo Jurídico. São Paulo, 2005. Disponível em: ˂http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/cj031055.pdf˃. Acesso: 01 mar 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Volume 1 – Parte Geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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