Infanticídio Indígena
Por Rayssa Antonya de Andrade Ribeiro | 02/08/2017 | DireitoInfanticídio Indígena: O relativismo cultural como justificativa para a omissão governamental frente ao infanticídio indígena. 1
Rayssa Antonya de Andrade Ribeiro2
Tayse Cristina Gomes Guará3
José Cláudio Cabral Marques4
RESUMO
O relativismo cultural como justificativa para a omissão governamental frente ao infanticídio indígena. Para tratarmos do tema no presente trabalho, de início, abordaremos o multiculturalismo e as comunidades indígenas, apontando as duas vertentes sociológicas: relativismo cultural e universalidade ética. Em seguida, trataremos acerca do crime de infanticídio e suas práticas na comunidade indígena, abordando a peculiaridade do citado crime. Por último, abordaremos o posicionamento do Estado Brasileiro frente à prática do infanticídio.
Palavras-chave: Infanticídio; Relativismo Cultural; Comunidade Indígena.
1 INTRODUÇÃO
Sabe-se que a prática do infanticídio nas aldeias indígenas é fruto de tradição milenar da cultura desse povo, tal fato decorre da justificativa de que permanecer com crianças deficientes, filhos de mulheres solteiras, ou até mesmo gêmeos prejudicaria o regular andamento das atividades cotidianas da tribo, tendo em vista que estas crianças não seriam aptas para uma vida "normal", pois segundo os indígenas as mesmas são amaldiçoadas por acreditarem que possuem um espírito do mal. Em contrapartida, a nossa Constituição Federal Brasileira reconhece e garante aos índios a proteção em relação aos seus costumes, crenças e tradições (art. 231, CF), não interferindo assim no status quo do relativismo cultural desses indígenas, o qual justifica o infanticídio.
O presente trabalho tem como objetivo geral apresentar de que forma o relativismo cultural serve como justificativa para a omissão governamental frente ao infanticídio indígena. Para tanto, tem-se como objetivos específicos, comentar acerca do multiculturalismo e comunidades indígenas. Tratar sobre o crime de infanticídio e sua prática nas comunidades indígenas e abordar sobre o posicionamento do Estado Brasileiro frente a prática do infanticídio.
Para tal estudo, dividiu-se o trabalho em três capítulos: iremos abordar o multiculturalismo e as comunidades indígenas; o segundo tratará sobre o crime de infanticídio e sua prática nas comunidades indígenas e o terceiro comentará sobre o posicionamento do Estado Brasileiro frente a prática do infanticídio.
A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 MULTICULTURALISMO E COMUNIDADES INDÍGENAS.
Sabemos que a nossa sociedade é formada por diversas culturas, sendo assim considerada uma sociedade multicultural. A proteção ao multiculturalismo está prevista no próprio texto da Constituição Federal Brasileira, em seus artigos 215 e 216, inclusive em relação às manifestações culturais indígenas, conforme art. 231, da mesma lei supra. A prática do infanticídio tem sido registrada em diversas etnias, entre elas estão os uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uauuau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi.
No Brasil as comunidades indígenas são formadas por grupos sociais autônomos, dotados de práticas, costumes e leis próprias, o que significa dizer que tais indivíduos possuem valores e visões de mundo diferentes, por isso para eles, a prática do infanticídio não é considerada um crime, como para nós. Eles possuem concepções diferenciadas no que dizem respeito ao nascimento, a vida e a morte.
De acordo com o Censo Demográfico de 2000 através de uma pesquisa realizada pelo IBGE se foi constatado que para cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 51,4 morreram antes de completar um ano de vida, enquanto no mesmo período, a população não-indígena apresentou taxa de mortalidade de 22,9 crianças por cada mil. A taxa de mortalidade infantil entre índios e não-índios registrou diferença de 124%. O Ministério da Saúde informou, também em 2000, que a mortalidade infantil indígena chegou a 74,6 mortes nos primeiros 12 meses de vida. E não se há causa mortis para esses casos, tanto no IBGE quanto no Ministério da Saúde.
O que ocorre de fato é que essas causas mortis acabam sendo mascaradas por outros motivos sem ser o verdadeiro –infanticídio- foi-se encontrado justificativas desde desnutrição até causas misteriosas. Segundo Marcelo Santos:
Não existem dados precisos... O pouco que se sabe sobre esse assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que repassa as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da Saúde e lá se transformem em “mortes por causas mal definidas” ou “externas”. Marcelo Santos, em “Bebês Indígenas Marcados para Morrer” (Revista Problemas Brasileiros, SESC-SP, maio-junho/2007).
De acordo com Ronaldo Lidório (2008), a antropologia possui diversas formas de abordar práticas e costumes em um povo específico. Consequentemente, isso permite diferentes formas de interpretar uma cultura. A respeito do infanticídio há principalmente duas correntes teóricas que avaliam o fato, por ângulos distintos: relativismo cultural e a universalidade ética.
De acordo com Natália Santos, o infanticídio indígena no Brasil é um dos mais elucidativos casos onde se pode visualizar o confronto ideológico entre a defesa do universalismo dos direitos humanos e o relativismo das práticas culturais, ganhando cada vez mais destaque como tema de interesse público e atraindo, inclusive, atenção da mídia internacional.
O relativismo cultural desenvolvido por Franz Boas defende que o bem e mal são elementos definidos em cada cultura, portanto não há verdades universais para serem comparadas, não havendo como se comparar uma sociedade com outra. De acordo com Wanessa Wieser (p. 03), este relativismo impossibilita o indivíduo de propor mudanças dentro de sua própria cultura por entender a cultura como um sistema imutável, sendo assim, não importa como a sociedade olha a prática do infanticídio, não deve ela interferir nesse costume da comunidade indígena.
Para Bruno Ribeiro (p.13), dentre as críticas apontadas pelos relativistas à proposta universalista dos direitos humanos está no fato de que essa visão universal dos direitos humanos é fundamentada em uma ideia antropocêntrica do mundo, que não é compartilhada por todas as culturas.
Uma outra crítica que a teoria relativista faz ao universalismo, segundo Érica Peixoto (2007) é:
A visão dos direitos humanos está intimamente ligada aos valores ocidentais. Portanto, defender o universalismo é apoiar a ideia de que a crença estabelecida numa determinada cultura, diga-se, a ocidental, deve se tornar geral. Afirmar direitos locais como universais traduz uma forma de imperialismo do ocidente, que tenta universalizar suas próprias crenças. Isso também se prova na elaboração dos documentos internacionais, tendo em vista que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi elaborada por países do Ocidente e sem representatividade global (uma vez que contou com apenas 51 países e, ainda, com oito abstenções).
Em defesa do relativismo a autora acima aborda um ponto bastante interessante, que o universalismo ele analisa um homem descontextualizado, mas que o homem só se define através de suas particularidades, ou seja, deve-se levar em consideração a cultura, os costumes, o local em que se vive. Sendo assim, para os relativistas o direito humano constrói-se baseado nessas particularidades, desta forma, em defesa do infanticídio indígena por essa teoria, aborda-se que a prática desse infanticídio nas comunidades indígenas faz parte da cultura desse homem, não podendo ser considerado um crime.
Ao contrário do relativismo cultural a universalidade ética defende a proteção de direitos os quais os indivíduos, independentemente de raça, sexo, etnia ou religião, possuem simplesmente por serem humanos. Segundo Bruno Ribeiro, os universalistas questionam o conformismo defendido pelo discurso relativista, para o qual toda e qualquer prática cultural deve ser simplesmente respeitada, como se as diferenças culturais legitimassem valores inquestionáveis, em uma espécie de defesa de éticas imutáveis. Sendo assim, pelo simples fato de nas comunidades indígenas ser comum a prática do infanticídio, para a teoria relativista, quem não concorda com tais práticas só deve respeitar.
A universalidade tem sua base nos direitos humanos através da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e é reafirmada através da Declaração de Viena, de 1993. Samuel Correa (2010) em sua tese de monografia defende que:
A importância da busca de um valor ou crença comum que possa ser fonte de um eventual conceito de direitos humanos repousa em uma verdade simples: a própria ideia de direitos humanos significa nada se não significar direitos humanos universais. O objetivo das normas internacionais de direitos humanos é estabelecer padrões que desconsiderem a soberania nacional para proteger indivíduos de abuso. Ter direitos humanos significa dizer que existem certos padrões sob os quais o Estado ou sociedade alguma pode ir, independente de seus próprios valores culturais.
No que concerne a questão não cabe escolher uma teoria para defender ou acusar tal prática, por se tratar de direitos humanos, uma teoria se torna radical e outra extremista. Temos que compreender conjuntamente a teoria relativista, assim como a universalista, porque ao contrário do que parece ambas acabam se complementando para um entendimento que defenda os direitos humanos da maneira correta.
2.2 O CRIME DE INFANTICÍDIO E SUA PRÁTICA NAS COMUNIDADES INDÍGENAS.
2.2.1 O CRIME DE INFANTICÍDIO
Conforme Cleber Masson (p.63, 2014), o Código Penal Brasileiro trata o crime de infanticídio como uma forma privilegiada do crime de homicídio, pois também consiste na conduta de matar alguém, porém, por ter que ser obrigatoriamente praticado pela mãe contra seu próprio filho, e esta sob influência do estado puerperal, o legislador achou por bem criar uma nova figura típica com pena sensivelmente menor. O que muito se discute acerca desse crime é a questão do que seria o estado puerperal, que segundo o autor acima citado “é o conjunto de alterações físicas e psíquicas que acometem a mulher em decorrência das circunstâncias relacionadas ao parto” (p.66).
É importante diferenciar o puerpério do estado puerperal, tendo em vista que o puerpério é o estado que atinge todas as mulheres após o parto, sendo aquele intervalo de tempo pós-parto onde o corpo da mulher vai voltando ao estado antes da gravidez; já o estado puerperal é uma perturbação psíquica que pode resultar do puerpério, no entanto, não é regra e não ocorre em todas as mulheres.
O estado puerperal seria uma perturbação mental da parturiente, perturbação esta que acarreta alterações de tal monta, que permitem a abolição da capacidade de se conduzir ou se controlar diante do fato adverso. Este estado pode basear-se em dois motivos, são eles: psicológico que visa ocultar a desonra proveniente de uma gravidez ilegítima (impetus honoris) e o físico-psíquico (impetusdoloris), que são alterações emocionais, cognitivas, comportamentais gerados pelos desgastes físicos causados pelo parto (De Jesus, p.02)
Para que ocorra o crime de infanticídio é necessário que a criança nasça com vida e que a mãe, sob influência do estado puerperal, cometa o crime, sendo que sua consumação só se dá com a morte do nascente.
Para o doutrinador Cleber Masson (p.66, 2014), o fato do estado puerperal alterar a saúde mental da mulher não faz com que ela se torne inimputável ou semi-imputável, tendo em vista que é um estado temporário, logo, não pode ser comparado à doença mental ou desenvolvimento mental incompleto. Desta forma, o sujeito ativo do crime, no caso, a mulher, responderá pelo crime normalmente, sendo submetida à pena privativa de liberdade e não terá a pena diminuída.
É um delito especial, e o legislador, inclusive, estipulou uma pena menor do que a estipulada para o homicídio simples, não ultrapassando a pena máxima do período de 06 anos, sendo que no homicídio simples pode chegar até 20 anos.
2.2.2 PRÁTICA DO INFANTICÍDIO NAS COMUNIDADES INDÍGENAS
Iremos tratar de forma específica sobre o infanticídio indígena, onde as mães matam seus filhos por acreditarem que as mesmas irão trazer má sorte a comunidade, normalmente essas crianças são portadoras de deficiência física ou mental, gêmeos, crianças nascidas de relações extra-conjugais, etc. É importante ressaltar que não são apenas os recém-nascidos as vítimas de infanticídios nas comunidades indígenas. Há registros de crianças de 3,4,11 anos mortas pelas próprias mães, mas a causa da morte acaba vindo mascarada por diversos motivos como já analisado no presente trabalho.
Deve-se ressaltar que nem todas as tribos indígenas possuem esse costume de cometer o infanticídio. Apesar da prática do infanticídio ser muito antiga, a prática ainda é recorrente em algumas tribos, tais como as vistas no primeiro capítulo deste trabalho.
De acordo com Wanessa Wieser (p. 06), não se tem uma base de dados confiáveis para saber uma média de quantos infanticídios ocorrem nas tribos. A Funai diz que cabe à Funasa a contabilidade de tais dados e vice-versa. Os dados que se tem sobre o assunto se originam de missões religiosas e estudos antropológicos. Segundo levantamento realizado pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) entre 2004 e 2006, apenas a tribo Ianomâmi, da Amazônia, matou 201 crianças, desta forma, pode-se perceber que o número é bastante elevado.
Para Natália Santos, a prática do infanticídio indígena em algumas comunidades brasileiras surge, portanto, como questão de grande relevância e simbolismo no que se refere à necessidade de se compreender até onde o respeito à cultura justifica a não-interferência quando direitos considerados mais fundamentais, como o direito à vida, encontram-se ameaçados, e como tal interferência pode ser concebida na busca de soluções para conflitos de valores e visões de mundo.
O infanticídio indígena como pode ser analisado é uma prática reiterada e por isso constitui-se como sendo um costume de povos nativos, previsto na Constituição, tutelados em seu art. 231, que é reconhecido aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Porém, o direito à vida é um dos direitos fundamentais também protegido pela Constituição Federal, sendo assim a partir disso, temos um confronto de dois direitos que deve ser analisado com cautela e no capítulo seguinte abordaremos o posicionamento do Estado Brasileiro diante dessas situações.
2.3 O POSICIONAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE AO INFANTICÍDIO INDÍGENA.
3 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
CORREA, Samuel. Direitos humanos e o diálogo intercultural: análise do infanticídio por motivos culturais em tribos indígenas do Brasil (monografia). Cesa, Gabriela (orientadora). UNISUL. Tubarão, 2010.
DE JESUS, Muriel. O Estado puerperal. Disponível em: < http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1809/1717 >. Acesso em: 02 abril. 2016.
FUNAI. Presidente da Funai diz que Projeto de lei que prevê combate ao infanticídio carece de reparos. Disponível em: . Acesso em 07 março 2016.
HOLANDA, Marianna Assunção Figueiredo. Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena. 2008. 157 f. Dissertação. (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Brasília, Brasília, 2008. Disponível em: < http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado >/tde_busca/arquivo.php? codArquivo=4766>. Acesso em: 07 março 2016.
LIDÓRIO, Ronaldo. Introdução à Antropologia Missionária. São Paulo: Vida Nova, 2011.
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: parte especial. Vol.2. 6. Ed. Rev e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.
PEIXOTO, Érica de Sousa Pessanha. Universalismo e relativismo cultural. Revista da Faculdade de Direito, 2007.
RIBEIRO, Bruno. Defendendo o indefensável: infanticídio indígena.
SANTOS, Marcelo. Bebês Indígenas Marcados para Morrer. Revista Problemas Brasileiros, SESC-SP. maio-junho/2007.
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WIESER, Wanessa. Infanticídio nas comunidades indígenas no Brasil.