Infância

Por Paulo Ferreira de Araújo | 09/12/2011 | Crônicas

Infância

As primeiras memórias que tenho são de medo de escuro, medo de cachorro, de assistir novela na casa de uma vizinha (por não ter televisão em casa), de comer pequenos pedaços de carne assados na tampa do fogão (por minha irmã mais velha, na época a única e meu irmão, o mais velho de dois), de ter um pé de pinha no quintal, de o banheiro ser neste quintal e ter um longo tecido pendurado como porta, de haver uma pequena cobertura improvisada perto do pé de pinha e ali comermos em algumas ocasiões, em pratos de esmalte branco com borda azul marinho com partes pequenas arrancadas pelo tempo de uso.

Lembro também que, na primeira vez que fui ao sítio de minha avó paterna no Estado de Pernambuco (não mais que cinco anos era a minha idade), presenciei um meu tio partindo a barriga de um porco com uma faca peixeira enorme que sempre trazia à cintura. O porco jazia de borcos e o talho que ia do pescoço ao rabo revelava as entranhas do bicho – cena inesquecível. Neste mesmo local, lembro de em uma ocasião ter encontrado um pinto (desses recém-nascidos que piam o tempo todo e que andam num de grupo de irmãos junto à mãe) preso por uma das asas a um pequeno galho ao pé de uma árvore. A minha intenção de libertar o coitado foi malfadada. A galinha-mãe veio atrás de mim e em seguida bicou um dos meus joelhos e eu, em prantos, fui me queixar a minha avó – cidadã rude e incoerente, adjetivos que não combinam em um civilizado. A bronca que levei tornou o momento mais dolorido ainda. Junto a essa sensação de desconforto me vem também o ter que beber água de cacimba.

No leito seco do açude jaziam, fundas e com bem pouca água, cacimbas as quais eram a fonte de água para aquela região. Água salobra... Coisa triste de se experimentar – eu chorava um bocado ao sentir aquele gosto de incivilidade.

Aos três anos mudei de bairro. Meus pais desistiram de migrar para fora da Bahia. Planos feitos, casa vendida, desistiram na última hora. Compra-se outra casa! Feito o negócio fomos para uma casa que acabara de ser coberta com telhas grandes da época. Desses três anos de idade a memória é confusa, mas é possível lembrar da longa escadaria de dezoito degraus que levava ao pequeno quintal da casa. Desta mesma escada despenquei, já aos cinco anos de idade, ferindo partes do tronco e da cabeça. Tive que, durante alguns dias, ir para a minha primeira escola vestido num macacão vermelho e azul sem camiseta por baixo – as feridas nas costelas incomodavam muito.

Meu primeiro ano escolar foi 1975 e dividido em dois, ou melhor, em duas. Duas “escolinhas”, dessas que até hoje se vê em bairros.

No primeiro semestre – primeira “escolinha”. Era uma, cuja professora e dona, alfabetizava um grupo de alunos com carinho e vocação materna. Na hora do recreio eu sentava quieto com minha lancheira e me sentindo a criança menos importante de todas – uma impressão de que não era querido me incomodava. Lá tive que lidar com massa de modelar pela primeira e última vez na vida: um fracasso. Minha mãe, que não tinha muita paciência para lidar com minhas limitações, em casa, se cansava de me mostrar como se devia dar forma à massa e eu nunca acertava.

A tal professora era amiga pessoal dela (católica também) e bem mais tarde eu a reencontrei quando comecei a tocar o violão. Ela era musicista do piano e eu estive em sua casa uma ou duas vezes quando ela já havia passado a ser protestante (expressão hoje aparentemente ultrapassada, mas que na Jacobina dos anos 80 ainda fazia muito sentido). Definitivamente eu era muito desajeitado: as dicas àquele instrumento guardei para mim e não apareci mais. Já no ano anterior ao meu ingresso na universidade estive novamente com ela através de um novo amigo que eu fizera e que havia aprendido o piano com ela (um gênio, hoje domina cerca de 11 idiomas, fora o português). Já idosa e aposentada passava os seus dias cuidando de uma filha adotiva pequena e dando aulas particulares de música. Algum tempo depois soube do seu falecimento.

No segundo semestre – segunda “escolinha”. Esta era vizinha de parede com minha avó materna. A dona e professora morava ali mesmo com mãe e mais uma boa quantidade de familiares. A sala era a da frente da casa estreita e mal estruturada. Lotada de crianças barulhentas e com ela aos gritos a palmatória era uma ferramenta pedagógica muito aplicada nas lições diárias. Na hora do recreio eu ficava na casa da minha avó e por vezes desfrutava da sua atenção quando arrancava e descascava, com uma faca, varas de cana-de-açucar de um pé que ficava no seu quintal. Me sentia melhor neste ambiente (eu nunca soube se fora este fato o que motivou minha mãe a me mudar de escola no meio do ano).

Dos seis aos dez anos de idade estudei em um dos tais “grupos escolares” comuns por aquela época. Escola quadrada. Uma sala em cada canto. Um pátio unindo as quatro. Era neste pátio que eu costumava ficar colado à parede para não ser atropelado pelos maiores. Do lado de fora, dentro dos muros era possível brincar de gude. Ver brigas também. Também brincar de “pia” (que graça tem correr atrás de alguém para lhe tocar o braço?). Aos dez anos tive catapora. Dez dias sem ir à escola. Tive visita de três colegas ao mesmo tempo – me senti querido. O sentimento de culpa por não estar cumprindo o meu dever de estudante me adoecia mais ainda. Sempre me sinto culpado quando falto aula. Ser adulto é difícil às vezes.

Ser filho de professora me deixava embaraçado em ocasiões em que eu tinha que ser inquirido sobre minha mãe ou me sentir protegido por ali, numa escola estadual, haver colegas dela pois ela também trabalhava para a Secretaria de Educação do Estado da Bahia.

Minha mãe trabalhava de dia num local que ela chamava de Coordenadoria (que anos depois passou a ser chamado de DIREC). À noite ela dava aulas de Geografia no colégio municipal. A casa sempre tinha muitos livros e eu gostava de ler trechos avizinhados de fotografias e ilustrações. Brincar com os livros era algo bom. Meu pai falava muito em profissão e eu comecei a pesquisar sobre opções profissionais e a sonhar com a universidade.

Dos onze aos quatorze anos estudei naquele mesmo colégio municipal onde minha mãe ensinava. Neste período descobri o violão e já ensinava os meus amigos que aprendiam junto comigo, mas que não tinham tão bom desempenho quanto eu. A timidez começava a ser relegada ao canto escuro a que ela me remetia. A música me fez ver novos horizontes. Conheci mais pessoas de bairros afastados do meu e por motivação própria ia a ensaios de bandas locais, da filarmônica 2 de Janeiro, igrejas, concertos e afins. Nas micaretas eu descia para o centro da cidade para apenas andar próximo aos trios elétricos para ouvir e ver os músicos tocando.

Paulo Araújo, dezembro de 2011.