INELEGIBILIDADE E A LEI DE INICIATIVA POPULAR

Por Milena Duarte de Araújo | 05/11/2013 | Direito

INELEGIBILIDADE E A LEI DE INICIATIVA POPULAR 135/2010

 

  Milena Duarte de Araújo

 

 

 

 

RESUMO

            O presente trabalho visa a um estudo da Lei nº 135/2010, a chamada lei da Ficha Limpa. Esta foi aprovada por meio de um projeto de lei de iniciativa popular, um instrumento da democracia participativa previsto na Constituição Cidadã. Analisa-se ainda as causas de inelegibilidade previstas na Constituição Federal e na LC 64/90 (Lei das Inelegibilidades).

Palavras-chave: inelegibilidade, iniciativa popular, Ficha Limpa, eleições.

 

ABSTRACT
            This work aims to study the Law nº 135/2010, known as “Ficha Limpa” law. It was approved by a bill of popular initiative, an instrument of participatory democracy enshrined in the Constitution. It also examines the causes of ineligibility provided for in the Constitution and the LC 64 / 90 (Law of ineligibility).

Keywords: ineligibility popular initiative, “Ficha Limpa”, elections.

 

1 CAUSAS DE INELEGIBILIDADE

            Inelegibilidade consiste na impossibilidade de uma pessoa ser eleita a cargo eletivo pelos cidadãos. José Celso de Melo Filho ensina que as hipóteses de inelegibilidade só podem ser as definidas na Constituição Federal, ou, em caráter excepcional, as decorrentes de lei complementar federal, em virtude, neste caso, de expressa autorização constitucional (Constituição Federal Anotada. Editora Saraiva. São Paulo. 1986. 2ª edição. Pág. 415).

            O atual Código Eleitoral Brasileiro (Lei nº 4.737 de 15 de julho de 1965) expressa em ser art. 3º que “Qualquer cidadão pode pretender investidura em cargo eletivo, respeitadas as condições constitucionais e legais de elegibilidade e incompatibilidade”. A Constituição Federal de 1988 ao tratar dos Direitos Políticos (capítulo IV) especifica as condições de elegibilidade em seu art 14, §3º:

“São condições de elegibilidade, na forma da lei:

I - a nacionalidade brasileira;

II - o pleno exercício dos direitos políticos;

III - o alistamento eleitoral;

IV - o domicílio eleitoral na circunscrição;

V - a filiação partidária;

VI - a idade mínima de:

a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;

b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;

c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;

d) dezoito anos para Vereador”.

            Estas condições de elegibilidade não configuram, entretanto, um rol taxativo (numerus clausus) de requisitos necessários para se eleger. Existem causas que impedem que o cidadão se candidate, mesmo que todas as condições acima mencionadas estejam presentes. São as causas de inelegibilidade.  De acordo com a resolução do TSE nº 15.727, de 10 de outubro de 1989, não se deve confundir condições de elegibilidade com causas de inelegibilidade. Algumas destas vêm expressas diretamente na Constituição, como:

“art. 14:

...

§ 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos

...

§ 7º - São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.

            Ainda em relação a este mesmo artigo (art. 14, CF), o §9º deixa a cargo de lei complementar o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade.

            A redação original deste parágrafo não mencionava a proteção à probidade administrativa e à moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato; foi a Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 07 de junho de 1994, que fez esses acréscimos ao texto constitucional.

            A Lei Complementar nº 64/90, a lei das inelegibilidades, sancionada pelo presidente Fernando Collor em maio de 1990, surgiu para atender aos anseios expressos na antiga redação do §9º, art. 14 da CF, estabelecendo casos de inelegibilidade, prazos de cessação, entre outras providências.

1.1 Causas de Inelegibilidade na Constituição Federal

1.1.1 Condições de elegibilidade (art. 14, § 3º, CF)

            De acordo com as condições de elegibilidade previstas no § 3º do art. 14 da Constituição, é possível extrair algumas causas de inelegibilidade.

            Apenas aqueles que detenham nacionalidade brasileira (nato ou naturalizado, de acordo com os incisos I e II do art. 12 da Constituição, respectivamente) poderão se eleger. Se uma pessoa tiver cancelada sua naturalização, por sentença judicial, em virtude de atividade nociva ao interesse nacional ou adquirir nova nacionalidade (art. 12, § 4º, I e II), será declarada a perda de sua nacionalidade brasileira. Esta pessoa, portanto, não poderá se eleger.

            O artigo 15 da CF expõe os casos de perda ou suspensão dos direitos políticos:

 “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II - incapacidade civil absoluta;

III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º”.

            A perda é absoluta e irrecuperável (incisos I e II do artigo acima mencionados); a suspensão é relativa e temporária (incisos III, IV e V do artigo acima mencionado). A perda ou suspensão dos direitos políticos configura, simultaneamente, a perda ou suspensão dos direitos de se alistar, de votar e de ser votado.          

            De acordo com o caput do art. 42 do Código Eleitoral vigente, o alistamento é feito através da qualificação e inscrição do eleitor. Se, de alguma forma, a pessoa tiver seu alistamento eleitoral cancelado (de acordo com o art. 71, CE), ela não poderá se eleger.

            O parágrafo único do art. 42 do Código Eleitoral indica como domicílio eleitoral, para efeito da inscrição, o lugar de residência ou moradia do requerente; se o alistando tiver mais de uma residência, considerar-se-á domicílio qualquer delas. Lei ordinária deve determinar o tempo de domicílio eleitoral que o candidato deve ter na circunscrição eleitoral do cargo a que pretende concorrer. Na ausência dessa lei ordinária, considera-se o período mínimo de moradia de cem dias, em observância ao art. 67, CE.

            O candidato que não tiver domicílio eleitoral na circunscrição do cargo eletivo almejado não poderá se eleger.

            Outra condição de elegibilidade prevista no art 14, § 3º da CF é a filiação partidária. De acordo com o caput do art 9º da Lei nº 9.540/1997 (Lei das Eleições), “Para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de, pelo menos, um ano antes do pleito e estar com a filiação deferida pelo partido no mesmo prazo”. O partido político pode, entretanto, fixar em seu estatuto um prazo superior a um ano para a filiação partidária de seus candidatos.

            Por fim, o inciso VI, do parágrafo 3º do art 14 da Constituição determina as idades mínimas que o candidato deve ter para se candidatar a: Presidente da República, Vice-Presidente da República e Senador (35 anos); Governador, Vice-Governador (30 anos); Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz (21 anos); e Vereador (18 anos). Pessoas que apresentem idade inferior às mencionadas, não poderão se candidatar.

           

1.1.2 Parágrafos 4º, 5º, 6º, 7º e 8º, do art. 14, CF

           

            O parágrafo 4º do artigo 14 da Constituição determina que os inalistáveis e os analfabetos são inelegíveis.

            O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos não poderão ser reeleitos para mais de um período subseqüente (art 14 , §5º, CF, conforme a redação dada pela Emenda Constitucional nº 16 de 1997).

            De acordo com o parágrafo 6º do art 14 da Constituição, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos que não renunciarem aos seus respectivos mandatos até seis meses antes do pleito, não poderão concorrer a outros cargos.

            O parágrafo 7º do art 17 da Constituição prevê que

“o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”

 não podem se eleger no território de jurisdição do titular.

            No que concerne à elegibilidade de militares, o parágrafo 8º do artigo 14, CF declara:

“O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições:

I - se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade;

II - se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade”.

A inobservância dessas condições previstas nos incisos acima transcritos configura causa de inelegibilidade do militar.

1.2 Lei das Inelegibilidades

 

            O parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição deixa a cargo de lei complementar o estabelecimento de

outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

            A redação deste parágrafo do art 14 foi dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4 de 07 de junho de 1994. O texto anterior não mencionava a finalidade de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada vida pregressa do candidato.

            Em resposta ao antigo texto, o presidente Fernando Collor sancionou, em 18 de maio de1990, aLei Complementar nº 64, conhecida como Lei das Inelegibilidades, que veio estabelecer, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determinar outras providências. A LC 64/90 revogou a Lei Complementar nº 5, de 29 de abril de 1970, e as demais disposições em contrário.

            A Lei das inelegibilidades enumera algumas formas, diretas e indiretas, de comprometer e prejudicar a normalidade e a validade do processo eleitoral através da influência do poder econômico, através do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

            Esta Lei foi ainda responsável pela criação de novas hipóteses de inelegibilidade e pela alteração de alguns casos de inelegibilidade pré-existentes.

            Joel José Cândido, em sua obra Direito Eleitoral Brasileiro (Editora Edipro. São Paulo. 4ª Edição. 2010. Página 123), divide as causas de inelegibilidade da LC 64/90 em:

I) Gerais (para todos os cargos): art 1º, incisos a, b, c, d, e, f, g, h, i; art 1º,     § 3º

II) Específicas:

a)   para Presidente e Vice-Presidente da República: art 1º, a, 1 a 16; art 1º,                          II, b, c, d, e, f, g, h, i, j, l; art 1º, §1º.

b)   Para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal: art                               1º, III, a, b, 1, 2, 3 e 4; art 1º, §1º.

c)    Para Prefeito e Vice-Prefeito: art 1º, IV, a, b, c; art 1º, §1º.

d)   Para o Senado Federal: art 1º, V, a, b.

e)   Para Câmara dos Deputados, Assembléia Legislativa e Câmara                                      Legislativa: art 1º, VI, c/c o art 1º, V, a, b.

f)     Para Câmara Municipal: art 1º, VII, a, b.

Observação: o art 1º, §§ 1º e 2º, tem incidência restrita de inelegibilidade, atingindo somente algumas candidaturas.

 

2 CAMPANHA FICHA LIMPA E A LEI 135/10

            A Campanha Ficha Limpa, iniciativa do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE, originado a partir de uma mobilização popular, em 1999, que resultou na aprovação da 1ª lei de iniciativa popular do País, a lei 9840/99), foi lançada em abril de 2008 com o objetivo de melhorar o perfil dos candidatos a cargos eletivos do País. Para alcançar esse objetivo, o MCCE criou um projeto de lei de iniciativa popular e deu início à coleta de assinatura em maio de 2008.

            Diante do elevado número de denúncias contra políticos divulgadas pelos meios de comunicação, o povo brasileiro resolveu abandonar a inércia e a sensação de impotência e iniciar uma grande manifestação a favor da ética, através da Campanha Ficha Limpa.

            A Constituição Federal, após a Emenda Constitucional de Revisão nº 4 de 1994, passou a admitir que a vida pregressa do candidato deve ser analisada a fim de proteger a moralidade para exercício de mandato (art 14, §9º). O projeto de lei Ficha Limpa, portanto, altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o art 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

           

2.1 Os objetivos do projeto de lei

            O projeto de lei pretende: a) aumentar as situações que impeçam o registro de uma candidatura; b) estender o período que impede a candidatura, para oito anos; e c) agilizar os processos judiciais sobre abuso de poder nas eleições, fazendo com que as decisões sejam executadas imediatamente, mesmo que ainda caibam recursos.

a)        De acordo com a antiga legislação, apenas os que já foram condenados em definitivo ficam impedidos de participar das eleições. Isto se revela insuficiente, pois os processos podem demorar muitos anos para chegar ao fim.

            Pessoas condenadas em primeira ou única instância ou com denúncia recebida por um tribunal (no caso de políticos com foro privilegiado) em virtude de crimes graves como: racismo, homicídio, estupro, tráfico de drogas e desvio de verbas públicas não poderão se candidatar. Essas pessoas devem ser preventivamente afastadas das eleições até que resolvam seus problemas com a Justiça.

            O Projeto de Lei defende que haja uma condenação criminal por improbidade administrativa para que ocorra a inelegibilidade. No caso dos políticos que detém foro privilegiado, a proposta é que a inelegibilidade decorra tão somente do recebimento da denúncia, uma vez que, segundo a Constituição, muitos desses processos podem até ser suspensos por decisão do Parlamento. Além disso, as denúncias criminais, nesses casos, terão que ser recebidas por um tribunal formado por diversas pessoas, o que dá maior garantia de que o processo será iniciado com base em alegações fundamentadas e embasadas por provas.

            Parlamentares que renunciaram ao cargo para evitar abertura de processo por quebra de decoro ou por desrespeito à Constituição e fugir de possíveis punições também serão impedidos de se candidatarem. Além desses, pessoas condenadas em representações por compra de votos ou uso eleitoral da máquina administrativa não poderão se candidatar.

b)        O antigo prazo de impedimento de candidatura era de no máximo 3 anos. O projeto Ficha Limpa amplia esse prazo para 8 anos. Isso nos remete ao ostracismo, que representava uma forma de punição política aplicada em Atenas, na Antiguidade, na qual o político que atentasse contra a democracia seria expulso da política e exilado por um período de 10 anos.

c)         O projeto de lei simplifica os processos de ação de investigação judicial, utilizada para reprimir o abuso de poder nas eleições. Deixa de ser necessária, então, a sentença transitada em julgado (coisa julgada) para que a decisão possa ser executada.

            As decisões da Justiça Eleitoral serão executadas imediatamente, como já ocorre com a Lei 9840/99. Ao contrário do que ocorria até então, o trânsito em julgado passa a ser dispensado, bastando decisão proferida por tribunal para a cassação do candidato e imposição da sanção de inelegibilidade. A lei resguarda ao candidato, todavia, a possibilidade de obter medida cautelar no tribunal superior, a fim de suspender os efeitos da condenação.

 

2.2 A aprovação da Lei 135/2010

            No dia 29 de setembro deste ano, o MCCE entregou ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, o Projeto de Lei de iniciativa popular, junto com um total de mais de um milhão e trezentas mil assinaturas, o que corresponde à participação de mais de 1% do eleitorado brasileiro. De acordo com estatísticas divulgadas pelo site do MCCE, o estado de Minas Gerais foi o responsável pelo maior número de assinaturas.

            O projeto de lei foi protocolado com o número 518/09.
            O projeto de lei 518/09 aguardou seis meses para ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Ficou evidente a falta de interesse político na aprovação do projeto. Durante esse período, o projeto decorrente de iniciativa popular disputava espaço nas reuniões da Câmara com outras pautas, como o pré-sal.

            A pressão da sociedade foi fundamental para a tramitação do PLP 518/09 na Câmara. Atos Públicos pedindo sua aprovação imediata foram realizadosem São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Simultaneamente, o MCCE exigia medidas que acelerassem a votação deste projeto no Congresso.

            Um grupo de trabalho de parlamentares foi selecionado para elaborar um substitutivo, texto consensual do PLP 518/09. Este foi entregue a Michel Temer em 17 de março de 2010. Logo em seguida, o substitutivo foi encaminhado para análise da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ).

            Apenas no dia 12 de maio, o projeto seguiu para o Senado Federal. Em seguida, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou o projeto de lei da Ficha limpa.

            No projeto encaminhado pelos deputados ao Senado, o texto se apresentava obnubilado, pois ora indicava que estariam inelegíveis os políticos que "tenham sido condenados" pela Justiça, ora indicava que estariam inelegíveis os políticos que "foram condenados" pela Justiça. Para uniformizar o texto, o senador Francisco Dornelles (PP-RJ) apresentou a emenda de redação padronizando o texto com "os que forem condenados". O tempo verbal foi alterado em cinco dispositivos: nas alíneas h, j, m, o e q do art. 1º da Lei Complementar nº 64/1990.

            Em 19 de maio, finalmente, encerrou-se a tramitação da proposta de iniciativa popular no Congresso Nacional. Os senadores aprovaram, por unanimidade, o projeto de lei da Ficha Limpa no plenário.

            No final de maio, a Advocacia-Geral da União (AGU) analisou o projeto de lei da Ficha Limpa e concluiu que não havia empecilhos à sanção presidencial. A AGU entregou à Presidência da República o parecer aprovado pelo Advogado-Geral da União, ministro Luiz Inácio Lucena Adams, recomendando a sanção do PLP 518/09 pelo Presidente da República.

            Em 04 de junho de 2010, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a lei da Ficha Limpa; esta foi publicada no Diário Oficial da União como Lei Complementar nº 135/2010, no dia 07 de junho.

 

2.3 Entendimentos do STF e do TSE

 

            O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que regras sobre inelegibilidade não se submetem ao princípio da anterioridade estabelecido pelo art. 16 da Constituição Federal “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”.

            Os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concluíram que a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) deve ser aplicada já nas eleições de outubro deste ano. O TSE entendeu que a lei não altera o processo eleitoral e pode ser aplicada nas eleições de 2010.

3 A INICIATIVA POPULAR

 

            A soberania popular é um princípio fundamental da República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, de acordo com o exposto no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

            O art 14 da CF88 dispõe que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto por meio de plebiscito, referendo e iniciativa popular.

            A Lei nº 9709, de 18 de novembro de 1998, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, regula a execução do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. O artigo 13 desta lei revela:

A iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

§ 1º O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto.

§ 2º O projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação.”

            De acordo com o artigo 14 da lei 9709/98, a Câmara dos Deputados dará seguimento à iniciativa popular, conforme as normas do Regimento Interno, se as exigências estabelecidas no art 13 e respectivos parágrafos forem cumpridas.

            Novidade da Constituição Cidadã (CF88), a iniciativa popular representa um instrumento da democracia participativa. Por meio dela, qualquer cidadão pode intervir no processo legislativo brasileiro, propondo novas leis para o País. Consiste, portanto, numa vitória do cidadão brasileiro depois de um longo período de silêncio e inércia perante as atrocidades ditatoriais.

3.1 A Lei 9840/99, a primeira iniciativa popular do País

            A Lei nº 9840, de 28 de setembro de 1999 (publicada no Diário Oficial da União em 29 de setembro de 1999), foi a primeira lei decorrente de um projeto de lei de iniciativa popular aprovado pelo Congresso Nacional, desde que esse mecanismo de soberania popular foi criado na Constituição Federal de 1988.

            Esta lei visa ao combate da compra de votos e do uso da máquina administrativa durante o período eleitoral. O candidato que oferecer dinheiro ou qualquer coisa em troca de voto e o político que utilizar a estrutura da administração pública (prédios públicos, publicidade, espaços em eventos oficiais e verba pública, por exemplo), também para conseguir voto, serão afastados das suas campanhas ou impedidos de ocupar os cargos, se forem eleitos.

            Em1996, aConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou a Campanha da Fraternidade "Fraternidade e Política". A Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) identifica uma mudança que deve acontecer na realidade tratada pelo tema de cada Campanha e traça as diretrizes necessárias à efetuação desta mudança. Na Campanha de1996, acompra de votos foi considerada um dos mais graves problemas enfrentados pela democracia brasileira.

            Esse tipo de crime eleitoral é freqüente no cenário político brasileiro por conta de sua impunidade. Candidatos corruptos compram votos especialmente da população carente, que possui um baixo grau de educação, de informação e de consciência política e que representa um grande percentual de eleitores do Brasil. Destarte, esses candidatos chegam ao poder público e fazem o que estiver ao seu alcance para manter na miséria e na ignorância política o seu eleitorado.

            Em1997, aCBJP iniciou o Projeto "Combatendo a corrupção eleitoral”, com o objetivo de, através de uma Iniciativa Popular, modificar a legislação eleitoral par dar mais eficácia à ação da Justiça Eleitoral no combate ao crime da compra de votos.

            O projeto contou com várias etapas: pesquisas, audiências populares, elaboração do Projeto de Lei (este foi presidido por Aristides Junqueira Alvarenga, ex-Procurador Geral da República, e foi integrado por Dyrceu Aguiar Dias Cintra Jr., ex-Juiz Eleitoralem São Paulonas eleições de 1996, e José Gerim Cavalcanti, Procurador Regional Eleitoral do Estado do Ceará, além de contar com a participação de representantes de diferentes entidades que vinham acompanhando o trabalho) e coleta de assinaturas.

            A fase de coletas de assinaturas foi a mais árdua e mais prolongada. A divulgação do projeto pelos meios de comunicação em massa foram imprescindíveis a esta etapa. Apenas em 10 de agosto de 1999, o projeto de lei foi entregue ao Congresso Nacional. Para que a Lei vigorasse nas eleições do ano 2000, ela deveria ser sancionada e publicada em sete semanas, até 30 de setembro daquele ano (de acordo com o art 16 da Constituição Federal: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”).             Percebeu-se que com a análise das assinaturas e dos títulos de eleitores dos participantes da Iniciativa (um total de 1.039.175 de assinaturas), seria impossível que a Lei fosse aprovada a tempo. Optou-se, então, pela sua tramitação como um projeto de iniciativa parlamentar, subscrito por todos os partidos presentes na casa. Onze deputados os representaram e cinqüenta apoiaram individualmente. Num prazo recorde de 35 dias, o projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional. Cinco dias depois, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso sancionou a lei, que passou a ser a Lei nº 9840, de 28 de setembro de 1999, publicada no Diário Oficial da União no dia 29, um dia antes do prazo final para que pudesse vigorar nas eleições de 1º de outubro do ano 2000.

            Apesar de tramitar como projeto de iniciativa parlamentar, foi discutido como projeto de iniciativa popular, caracterizando a vitória da força democrática do povo brasileiro através da Iniciativa Popular.

            A revista Época, em sua edição nº 572 (de 02 de maio de 2009), divulgou a pesquisa “Prefeitos e Vereadores Cassados por Corrupção Eleitoral”, realizada entre os dias 10 e 20 de março de 2009 por meio de um formulário eletrônico preenchido pelos cartórios eleitorais. Este levantamento inédito revela que a Lei nº 9840 está produzindo um recorde de cassações, uma média de um prefeito cassado a cada dezesseis horas no País.

4 ALGUMAS DÚVIDAS EM RELAÇÃO À LEI COMPLEMENTAR 135/2010

 

            Mesmo após a aprovação da lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), muitas questões acerca da validade e da constitucionalidade da mesma permanecem em discussão. Destarte, será feita uma análise de algumas dúvidas mais recorrentes.          

4.1 A LC 135/2010 e o Princípio da Presunção de Inocência

            O princípio da presunção de inocência (estado de inocência ou princípio da presunção constitucional de não-culpabilidade) é um desdobramento do princípio do devido processo legal, extraído do inciso LVII do art 5º da Lei Maior “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.        

            A lei da Ficha Limpa, entretanto, não visa a considerar antecipadamente culpados possíveis candidatos, mas sim visa a adotar uma postura preventiva, em defesa da sociedade. O projeto se baseou no princípio constitucional da proteção (art. 14, § 9º, da CF). Este expressamente permite que lei complementar estabeleça normas de caráter preventivo, para proteger os mandatos, observada a vida pregressa do candidato.

            Não se trata de considerá-los culpados, mas de prevenir a sociedade da possível candidatura de alguém que não é idôneo ao exercício da função pública. O fundamento da inelegibilidade não é o reconhecimento da culpa, mas a simples existência da condenação criminal, ainda que provisória.

            Além disso, o princípio da presunção de inocência só se aplica no âmbito do Direito Penal, enquanto que no direito eleitoral se aplica o princípio da prevenção. No contexto penal, exige-se o esgotamento de todos os recursos para a aplicação da pena; no âmbito eleitoral, considera-se a vida pregressa. Inelegibilidade não é pena, mas medida preventiva.

            Os juristas Aristides Junqueira, Augusto Aras, Celso Antônio Bandeira de Mello, Edson de Resende Castro, Fábio Konder Comparato, José Jairo Gomes, Hélio Bicudo, Mario Luiz Bonsaglia, Márlon Jacinto Reis e Ricardo Wagner de Souza Alcântara enviaram uma Carta ao MCCE (esta foi divulgada no site oficial do MCCE) em apoio à aprovação da Lei 135/2010. Nesta carta exemplificam com brilhantismo:

        “Diz, por exemplo, que os cônjuges e parentes de mandatários em algumas circunstâncias não podem disputar eleição. Isso se dá não porque sejam culpados de algo, mas porque se quer impedir que se valham dessa condição para obter vantagens eleitorais ilícitas. Ninguém propôs quanto a isso que aí residisse qualquer afronta ao princípio da não-culpabilidade.

        Afirmar-se que o princípio da presunção de inocência se estende a todo o ordenamento jurídico constitui evidente impropriedade. Estender-se-ia ao Direito do Trabalho, para impedir a demissão de um empregado ao qual se atribui crime de furto até que transite em julgado a sua condenação criminal? Serviria ele para impedir que uma creche recuse emprego a alguém que já condenado por crimes sexuais contra crianças?”.

4.2 A LC 135/2010 e o art. 16 da Constituição Federal

            O art. 16 da Constituição Federal, após redação da Emenda Constitucional nº 4 de 1993, passou a prever que “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Corresponderia ao período de vacatio legis.

            O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que regras sobre inelegibilidades não se submetem ao princípio da anterioridade estabelecido pelo art. 16 da Constituição Federal.

             O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) analisou a validade da Ficha Limpa para este ano e concluiu que, como o período eleitoral ainda não começara, a mudança da regra de inelegibilidade não prejudica os possíveis candidatos. O entendimento majoritário proferido pelo TSE foi de que o processo eleitoral somente se inicia com o pedido de registro das candidaturas, ou seja, em 05 de junho do ano da eleição, sendo lícitas alterações anteriores àquela data. A Lei da Ficha Limpa, portanto, não altera o processo eleitoral pelo fato de ter entrado em vigor antes do seu início e não se enquadra no que prevê o artigo 16 da Constituição. Apenas o ministro Marco Aurélio defendeu que a norma só deveria ser aplicada às eleições de 2012.

            Acredito que a postura do TSE foi uma digna resposta à sociedade brasileira, que exigiu conduta ilibada daqueles que buscam ocupar um cargo eletivo, através de uma iniciativa popular viabilizada por uma grande manifestação popular.

            O jornal O POVO publicou em sua edição de 17 de maio deste ano, que antes mesmo da aprovação da lei, alguns partidos políticos, como PSDB e PT, já se comprometeram a impedir que entrem em seus quadros políticos “fichas sujas”, candidatos de má conduta, que prejudiquem as diretrizes partidárias.

4.3 A LC 135/2010 e as alterações textuais realizadas pelo Senado

            Configura-se outro questionamento acerca da constitucionalidade formal da LC 135/2010, uma vez que, quando o projeto desta lei chegou ao Senado Federal, o senador Francisco Dornelles (PP-RJ) apresentou uma emenda para alterar o texto da lei, trocando a expressão “os que tenham sido condenados” pela expressão “os que forem condenados”. A alteração foi feita em cinco situações, nas alíneas h, j, m, o e q do art. 1º da Lei Complementar nº 64/1990.

            O art 65 da Constituição Federal trata do processo formal de aprovação de um projeto de lei no Congresso Nacional:

“O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar.

Parágrafo único. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora”.

            De acordo com o parágrafo único do artigo acima mencionado, se o Senado realizar alterações no projeto, este deverá retornar à Câmara dos Deputados, em observância ao bicameralismo.

            A lei, entretanto, não pode ser considerada inconstitucional, uma vez que a emenda realizada pelo Senado foi de mera redação, a fim de padronizar o texto da lei e sem prejuízo para o mérito da matéria. Emenda de redação não gera a necessidade legal de retorno do projeto à Câmara, pois não modifica a natureza ou o alcance do projeto.

4.4 A LC 135/2010 e a exploração de candidatos concorrentes

            Indaga-se também se a lei não será utilizada pelos candidatos como instrumento para prejudicar seus concorrentes. Para garantir a lisura da lei, impedindo que a mesma seja usada de forma exploratória, a própria lei prevê mecanismos de defesa.

            As ações que servem de base para as condenações, por exemplo, não podem ser movidas por qualquer pessoa, sendo obrigatória a iniciativa do Ministério Público. A denúncia relativa a detentor de foro privilegiado será recebida por um colegiado composto por desembargadores ou ministros, magistrados experientes e que decidem em conjunto sobre a existência de prova da existência do crime e de indícios que demonstrem ser o acusado o provável autor do delito.

            Por fim, apenas delitos graves foram selecionados, como homicídio, estupro e tráfico de drogas. Esse fato dificulta que um candidato mau caráter acuse um adversário de haver cometido um delito, para que este seja afastado do pleito por conta de uma condenação de primeiro grau.

 

4.5 Considerações Finais

            A aprovação desta LC 135/2010 representa uma vitória do povo brasileiro. Observa-se a concretização da soberania popular, afinal de contas se “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º, parágrafo único, CF88), a vontade da população deve ser soberana e absoluta. Ouso defender que a soberania popular deve ser superior ao próprio texto constitucional e às suas cláusulas pétreas. A LC 15/2010 é um grito dos cidadãos brasileiros pela honestidade na política do País. A sociedade tem o direito de poder votar em candidatos confiáveis.

 

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965. Código Eleitoral Brasileiro.

 

BRASIL. Lei nº 9709, de 18 de novembro de 1998.

 

BRASIL. Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Lei das Inelegibilidades.

BRASIL. Lei nº 9840, de 28 de setembro de 1999.

 

CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro. Editora Edipro. 2010. 4ª Edição.

FRANÇA, Emanuela Micênia de Souza. Artigo:  Abuso de Poder Econômico e Político no Sistema Eleitoral Brasileiro. Universidade Potiguar. Natal. 2007.

JusBrasil Notícias Jurídicas. Disponível em:    

<http://www.jusbrasil.com.br/noticias/>. Acesso em: 19 de junho de 2010.

MELO FILHO, José Celso. Constituição Federal Anotada Saraiva. São Paulo. 1986. Editora Saraiva. 2ª Edição.

 

Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Disponível em: <http://www.mcce.org.br/>. Acesso em: 06 de junho de 2010.

 

PINTO, Djalma. Elegibilidade no Direito Brasileiro. Editora Atlas. 2008. 1ª Edição.

 

Resolução do TSE nº 15.727, de 10 de outubro de 1989.

REVISTA ÉPOCA: Editora Globo, nº 572, maio. 2009.