Ineficacia das medidas protetivas da Lei Maria da Penha frente à realidade da mulher cratense

Por Lays Cardoso Alencar | 23/05/2013 | Direito

  1. 1.    O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA  A MULHER

 

Existem muitas formas de violência na sociedade, mas um tipo de violência vem ganhando destaque por sua crescente evolução: a violência contra as mulheres.

“Segundo dados mundiais, o risco de uma mulher ser agredida em seu próprio lar, pelo marido, ex-marido ou atual companheiro, é nove vezes maior do que o de sofrer alguma violência na rua. O lugar menos seguro para a mulher é sua própria casa e isto se torna evidente e se revela nos altos índices de agressão da mulher pelo companheiro”. (AMARAL, LETELIER, 2001, P.162).

O fator mais preocupante nesse tipo de violência é que suas conseqüências estão além de cicatrizes superficiais na pele das vítimas, elas causam danos irreparáveis. Não ferem simplesmente suas vítimas diretas, mas todos aqueles que estão ligadas a elas, especialmente os filhos, que na maioria das vezes são crianças e adolescentes em formação. Essas crianças e adolescentes que presenciam a violência ou que, mesmo sem presenciar, sentem as conseqüências, acabam tornando-se potenciais agressores e, inevitavelmente, contribuindo para o aumento e agravamento da violência doméstica contra a mulher.

Sabe-se que esse tipo de violência é difícil de ser enfrentada porque não decorre de um único fator isolado, mas de uma diversidade deles, entre os quais merece destaque a desigualdade existente nas relações de poder entre homens e mulheres e na discriminação de gênero ainda presente tanto na sociedade como no seio da família, eis que essa cultura de dominação disseminada na sociedade há tempos continua arraigada nos indivíduos, não importando se homens ou mulheres.

Com o passar do tempo, essa violência ganha proporções e passa a alcançar milhares de mulheres, pertençam elas a qualquer nível social, tenham elas qualquer grau de escolaridade, sejam elas jovens ou idosas, brancas ou negras, sejam nascidas em países desenvolvidos ou em nações em desenvolvimento, não importa.  

           A verdade é que esse tipo de violência não reconhece e nem respeita fronteiras, mostrando crescente e assustadora mesmo diante dos esforços do Estado e da Sociedade organizada no seu combate. É, de fato, um fenômeno que vem abreviando e prejudicando a vida de inúmeras pessoas, não importando em qual lugar do planeta estejam.

1.1.        Raízes históricas

 

Não são raros os livros escritos sobre a violência de gênero, em cujos relatos são apontadas suas raízes históricas.

Mostra a literatura que, desde a antiguidade, a mulher era vista como um ser submisso, que devia respeito e obediência ao seu provedor, este entendido como pai e depois como marido. Não gozavam de liberdades e seus direitos só poderiam ser exercidos, quando podiam, através de seus responsáveis, que, diga-se de passagem, eram figuras masculinas.  As agressões físicas eram consideradas castigos legítimos, sendo alguns deles previstos legalmente.

A cultura do castigo dirigido às mulheres que não se comportavam de forma “honrosa e honesta” foi sendo disseminada por toda a sociedade e repassada de geração em geração. As próprias mulheres acreditavam, e muitas ainda acreditam, que o castigo era ou é realmente a forma ideal e adequada para corrigir atitudes “contrarregras”, passando isso para os filhos.

De acordo com SILVA (2006) “ocorre uma banalização da violência doméstica porque a sociedade ainda entende que esta é parte inexorável das relações de casal ou mesmo de ex-casais – considerando a construção de gênero que objetifica e coisifica a mulher, negando-lhe a condição de sujeito de direito e a autonomia de alguém capaz de exercitar as próprias escolhas, inclusive a de por fim ao um relacionamento – são fatores que impedem o reconhecimento da violência de gênero, tornando-a invisível não apenas para a vítimas, que se conformam com seu “destino biológico” mas também para a  sociedade  e o Estado, na medida em que recusam ao problema um caráter social e de saúde pública, a demandar ações institucionais de conscientização, prevenção e erradicação. Ao que tudo indica, ainda prevalece o adágio de que “ em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

De tão comuns, as agressões às mulheres passaram a ser aceitas sem qualquer questionamento, atingindo um “ápice” em que os homens passaram até mesmo a matar suas esposas/companheiras em defesa de sua honra ou da honra da família, fato esse ainda aceito por determinadas culturas.

Frise-se, no Brasil, até bem pouco tempo, os tribunais do júri aceitavam como tese de defesa a legítima defesa da honra, absolvendo assassinos e devolvendo-os à sociedade para fazerem novas vítimas.

Conforme preleciona Maria Berenice Dias¹, desde os tempos mais remotos, estabeleceu-se desigualdades entre homens e mulheres, criando-se dois mundos, um externo, de dominação e poder, dedicado ao ser masculino, e um outro de submissão, interno, dedicado à mulheres. Assim sendo, o homem ganhou destaque na sociedade, assumiu os mais importantes postos na vida pública, ocupou os postos de trabalhos mais bem  remunerados, enquanto à mulher, dominada e inserida em seu ambiente familiar, restou as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, passando a ser discriminada e, consequentemente, impedida de evoluir, de sequer reconhecer seu valor e seus direitos fundamentais. Esse mundo de dominação favoreceu a violência contra a mulher, a qual, durante muito tempo, acreditou que essa violência tinha uma razão para existir ao ponto de contribuir para que as estruturas que a transformam em vítimas sejam mantidas. Prova disso é que ainda hoje as mães, na criação dos filhos, impõem a eles que sejam “duros”, machos e valentes, capazes de reagir e se defender de toda e qualquer agressão.

Obs: nota de rodapé ¹ (DIAS, 2004, pg.32/33). Conversando sobre a mulher e seus direitos. Livraria do advogado

Na mesma linha de raciocínio estão as afirmativas de AMARAL, LETELIER (2001, p.28 e 29):

A dificuldade das pessoas em incorporar a valoração da mulher, negando-se a considerá-la sujeito, é reflexo de todo um processo subjetivo, presente no imaginário social, em que se evidencia a hierarquia entre os sexos. Ainda está muito presente e se reflete nas atitudes  das pessoas a ideia da mulher como um objeto de domínio e deleite dos homens. Isto, certamente, é uma das premissas para a violência generalizada contra a mulher. (...) A dominação masculina ou o simbólico da figura do macho poderoso obscurece o direito das mulheres enquanto cidadãs, e tem trazido muitas dificuldades, tanto na compreensão pelas mulheres do que venha a ser a agressão como a necessidade jurídica de um encaminhamento de uma ação para julgar os atos criminosos dos homens. Na sua subjetividade, a mulher tem culturalmente incorporado uma submissão, reconhecendo, ainda, na figura do homem (pai, irmão, namorado, marido, companheiro) um ser com plenos direitos sobre sua vontade e seu corpo.

A problemática da violência envolve várias questões onde valores/elementos e idéias foram historicamente construídos e criaram raízes em nossa sociedade dificultando o combate a violência. Uma dessas ideias é a de que as mulheres “gostam de apanhar”, este é um fato que tem a ver com a violência de gênero, mas antes de mais nada devemos percorrer o universo da violência o qual gera dor, sofrimento, frustrações. (ARAUJO e SOUSA, 2002).

Não raras vezes, vê-se mulheres criticando seus pares por exercerem sua liberdade sexual, por não se submeterem a uma relação conjugal mesmo sem ter interesse pelo marido/companheiro pelo simples fato de ter que respeitar a família, conservar o lar dos filhos e dar uma satisfação para a sociedade.

A cultura é forte demais nas pessoas e é exatamente por isso que nem mesmo a mulher consegue se libertar dela, o que acaba contribuindo para legitimar a violência contra elas, eis que na posição de mãe acaba repassando as primeiras noções de respeito, de dignidade e de justiça aos filhos permeadas de preconceitos machistas.

Por tudo isso é que a violência contra a mulher assumiu patamares assustadores, ao ponto de exigir do Estado e da sociedade uma ação conjunta e emergencial para combatê-la ou pelo menos para minimizar suas conseqüências desastrosas.

1.2.        Conceituando violência contra a mulher

 

De acordo com a Convenção Interamericana[1] para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), a violência contra a mulher é definida como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada:

a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;

b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e

c)            perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.”

Semelhantemente, a Lei 11.340/06 traz um conceito de violência doméstica contra a mulher:

Art. 5º Para os efeitos dessa Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer ralação intima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Observa-se que ambas as definições conferidas à violência contra a mulher abrangem as modalidades de violência física, sexual e psicológica, sendo que a Lei Maria da Penha foi mais além, acrescendo a violência moral e patrimonial, as quais guardam distinções a seguir explicitadas.

Logo no artigo 7º da Lei Maria da Penha estão enumerados os tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher, dentre outras a serem consideradas, senão vejamos:

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância

constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e a autodeterminação; III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que o force ao matrimônio, a gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V- Violência Moral - a violência moral, entendida como qualquer conduta configure calunia, difamação e injúria.

Como se vê, a lei já é bem clara no que diz respeito à configuração das espécies de violência, cabendo aqui tão somente exemplificar alguns casos, para melhor se fazer entender.

A violência física pode ser entendida como um ato executado com a intenção de causar dano físico a outra pessoa, este podendo ser uma imposição leve de dor, como arranhão, tapa, chutes, surras, passando para  lesões graves com perda ou inutilização de membro, sentido ou função, podendo chegar até o extremo da morte.

A violência psicológica, também conhecida como emocional, é aquela capaz de causar na vítima um temor e um medo capazes de provocar efeitos torturantes ou mesmo desequilíbrios mentais.  Esse tipo de violência é praticado por meio de ofensas, ameaças, humilhações, acusações infundadas e poderá causar traumas e seqüelas por toda a vida.

A violência psicológica não deixa marcas visíveis na pele, é meio invisível, mas pode marcar e comprometer toda uma existência.

Na concepção de Cunha e Pinho(2007), por violência psicológica compreende-se o comportamento típico que se dá quando agente ameaça, rejeita, humilha ou discrimina a vítima, demonstrando prazer quando vê o outro se sentir amedrontado, inferiorizado e diminuído, configurando a vis compulsiva.

A violência sexual é aquela em que o agressor age no intuito de agredir a liberdade sexual da vítima, forçando-a a ter conjunções carnais ou outros atos de natureza sexual contra a vontade dela, mediante agressão ou por meio de graves ameaças.  É uma forma encontrada pelo homem de obter prazer sexual através de sua força, de sua dominação.

A violência patrimonial pode se caracterizar por qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos da mulher, instrumentos de trabalho, bens, valores, direitos, e até mesmo documentos pessoais.

Já a violência moral, como bem explica o inciso V, ocorre quando o agente atinge, direta ou indiretamente, a dignidade, a honra e a moral da vítima. Manifesta-se por meio de ofensas, de humilhações, julgamentos levianos, denegrindo a imagem da vítima perante amigos e familiares, enfim, fazendo com que ela se sinta desmoralizada e desvalorizada perante todos. 

De acordo com Cunha (2007), geralmente a violência moral e patrimonial acontecem associadas à violência psicológica e física, servindo, quase sempre, como meio para tal.

Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2007, p.24) definem a violência contra a mulher como sendo:

Qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos,sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meios de enganos, ameaças,coações ou qualquer outro meio, a qualquer mulher e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papeis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais.

Há de se concordar com SOARES (2005), quando ele diz que “a violência não se caracteriza somente por aquilo que é visível e que é tipificado no Código Penal”. É muito mais, pois o hematoma, o arranhão e a ameaça revelados pela mulher e que a levam a pedir ajuda são muitas vezes apenas a ponta de um iceberg. Por trás disso existe quase sempre um risco real e iminente de um homicídio; um passado permeado de abusos físicos, psicológicos ou sexuais, o que leva a vítima a mergulhar num medo profundo que a enfraquece e paralisa; “uma longa história que envolve pequenos atos, gestos, sinais e mensagens sublinhares, usados, dia após dia, para manter a vítima sob controle”.

O agente causador dessa violência é, na maioria das vezes, o marido, companheiro, namorado, ex-marido, ex-companheiro, ex-namorado, pai, irmão, filho ou simplesmente pessoas que vivam na companhia da vítima, compartilhando moradia ou afeto.

As agressões ocorrem das mais variadas formas, nos mais variados lugares, embora ocorra mais comumente no interior das residências da vítima, local onde elas estão mais vulneráveis por acreditarem estar num ambiente seguro.



[1]              A Convenção de Belém do Pará foi adotada por aclamação na Assembleia Geral da OEA (Organização dos Estado Americanos) e ratificada pelo Brasil, em novembro de 1995.

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